Às portas do inferno?

Publicado no jornal Diário da Região, São José do Rio Preto, SP, 10 de setembro de 2025.

Numa manhã do final do verão europeu, cheguei mais uma vez ao Aeroporto da Portela, em
Lisboa, Portugal, cujo nome oficial é, desde 2016, Humberto Delgado. Eu conheci o aeródromo
em 1974, depois derrubado e reconstruído com rara infelicidade, pelo que tenho o direito
adquirido de usar a velha denominação. A temperatura era amena, os ventos marítimos
delicados e o sol brilhava com esplendor. Sentia-me bem. Despejado com ultraje no edifício
principal por autocarro, mudei rapidamente de humor. Ademais, havia uma enorme
aglomeração de passageiros desorientados, logo junto à escada rolante.

O modesto e anacrônico aeroporto está subdimensionado face a demanda atual; a
infraestrutura sanitária é insuficiente; o local é imundo e os funcionários de imigração são
escassos. As barreiras das filas de controle começavam bem mais adiante e havia uma grande
confusão. Uma mulher logo diante a mim sentiu-se mal e foi deitada no chão, sem
atendimento. O início de minha espera de 2 horas e meia, um horror Dantesco, levou-me a
uma reflexão literária baseada no tema do ingresso no Inferno.

Virgílio, no Livro VI da Eneida, um poema épico de 19 a.C., trata da entrada do herói Enéas,
filho de Vênus, no Reino dos Mortos, domínio de Plutão, onde busca encontrar o pai, falecido
pouco antes. Segundo Virgílio, a porta de ingresso seria no Lago de Averno, um sítio vulcânico
sujeito até hoje a manifestações sísmicas e situado ao norte de Nápolis, na cidade de Pozzuoli.
Iniciada a viagem, conduzido por Sibilla, uma vidente inspirada por Apolo, o percurso foi
afetado por aparições terríficas, como a Dor, a Doença, a Velhice, a Fome e a Guerra, além de
diversos monstros. Virgílio usa a linguagem do mito na obra que antecede o Cristianismo.

Por sua vez, o poeta Dante Alighieri, já no século XIV, retomou a questão em seu poema épico,
A Divina Comédia, que é dividida em 3 seções: o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Enquanto
Virgílio tratou de problemas políticos e morais de Roma sob a perspectiva de mitos clássicos,
Dante adota uma roupagem cristã e um sentimento de moralidade teológica, situando-se
como um pecador penitente em busca da redenção pessoal. Dante inspira-se em Virgílio para
situar as portas de Hades no lago de Averno, no III canto do Inferno, sobre as quais havia uma
tétrica advertência: “abandonai toda a esperança vós que aqui entrais”.

Para Dante, quem se confessa angustiado, trêmulo e hesitante face ao sombrio aviso, o
ingresso no Inferno tem uma dramaticidade Cristã. Numa construção fantástica de Dante,
Virgílio quem acompanha o Sumo Poeta em sua expedição religiosa o encoraja a prosseguir,
valendo-se de convincentes argumentos. Enquanto em A Eneida, o Inferno se apresenta como
um assustador sítio geográfico, mas com elementos de sacralidade pagã, em A Divina
Comédia, o Hades não é apenas um ponto geográfico, mas principalmente uma sentença
moral e religiosa, no reino do Juízo Eterno.

Estava eu assim entretido e ocupado no seguro e confortante paraíso dos nefelibatas quando,
após 2 horas e meia, minha mulher me alertou: “Amor, chegou a nossa vez”. “Que bom,”
respondi, “tenho que ir à casa de banhos. Será que ainda existe?”

DURVAL DE NORONHA GOYOS JR.
Escritor polígrafo brasileiro, italiano e português. Ex-presidente da União Brasileira de
Escritores. Da Academia de Letras de Portugal. Diretor do Sindicato de Escritores do Estado de
São Paulo. Escreve quinzenalmente neste espaço às quartas-feiras