Publicado no jornal Diário da Região, São José do Rio Preto, SP, 17 de dezembro de 2025.
Raimundo Faoro, grande jurista brasileiro, escreveu que a Proclamação da República foi um golpe militar oportunista expresso numa parada. O novo regime manteve a ordem patrimonialista até então vigente, desde os tempos coloniais, mas a alterou elevando os militares para uma posição de protagonismo no seio do Estado, “mero dispenseiro de recursos, para o jogo interno da troca de vantagens”. Uma parcial exceção deu-se no tocante ao Itamaraty, o qual manteve o seu viés aristocrático e forma idiossincrática de perversão dos interesses nacionais.
Dentro de sua longa e consistente prática de ocultação das vergonhas, infâmias e incompetências, em 5.11.2025, o ministério publicou uma portaria (sic), firmada pelo titular, Mauro Vieira, institucionalizando o sigilo eterno ao vedar o acesso por tempo indeterminado de documentos “independentemente de classificação” (sic). O meio utilizado evoca os arbítrios havidos durante o regime ditatorial de 1964. De fato, trata-se de uma violação aos termos da Lei de Acesso à Informação de 2011 e cerceamento de Direitos assegurados pela Constituição, inclusive pelo artigo 5º XXXIV, que assegura a postulação em Juízo em caso de ilegalidade, lesão ou abuso de poder. A não observância deste dispositivo impede o uso de remédios constitucionais da cidadania como a ação popular, o habeas corpus e o mandado de segurança.
Infelizmente, o Itamaraty tem longa tradição na prática do mais escabroso patrimonialismo, em detrimento dos interesses públicos e a favor daqueles pessoais e de classe, frequentemente de caráter ilegal e escandaloso. Ocasionalmente, há ações favoráveis a terceiros países, cuja existência pretende-se varrer para debaixo dos tapetes da chancelaria e das opulentas embaixadas, destinadas a atender os vorazes egos diplomáticos e prover meios para a promoção de seus interesses. A respeito de tais atos, dentre outros, há registros por José Maurício Bustani e Luís Alberto Moniz Bandeira, no governo FHC. Às vezes, procura o Itamaraty acobertar uma fraude à Lei. De fato, em 2007, o ministério promoveu no exterior um concurso para a contratação de advogados estrangeiros, mediante anúncio no jornal ECHO, de Bruxelas, em flagrante violação à legislação brasileira de licitações públicas. A publicação no exterior visava fugir ao escrutínio da cidadania. A fraude havia sido armada no próprio gabinete do ministro de Estado, Celso Amorin, por sua amiga, a Lelé Farani de Azevêdo, uma diplomata de ideologia espúria e lealdades transversas.
Diante dos fatos, impetrou-se mandado de segurança para declarar a nulidade do referido processo, distribuído para a 15ª Vara Federal de Brasília, sob o número 2007.34.00.030189-7. A correspondente medida liminar foi prontamente concedida. Sem alternativas, face às severas consequências de seu ato, o Itamaraty anulou ele mesmo o edital do embuste, o que causou a perda do objeto da postulação. O propósito da medida foi alcançado, mas o anúncio, formalmente em ordem, foi refeito com o objetivo disparatado de contratar o mesmo escritório de advogados dos EUA, então concretizado. O episódio demonstrou as vilanias possíveis no seio do governo, sem o respaldo da publicidade, e deixa o alerta sobre as medidas que ensejem o vilipêndio das garantias legais e constitucionais.
DURVAL DE NORONHA GOYOS JR.
Advogado (Brasil, Inglaterra e Portugal). Jurista e escritor polígrafo. Escreve quinzenalmente neste espaço às quartas-feiras