Sobre a literatura fantástica brasileira

Publicado no jornal Diário da Região, São José do Rio Preto, SP, 13 de agosto de 2025.

O filósofo Tzvetan Todorov situou o fantástico literário na zona cinzenta entre o excêntrico e o
sobrenatural. O primeiro sentimento diz respeito ao bizarro, ao passo que o segundo seria
relacionado aos mitos, crenças sem bases científicas. Por sua vez, Italo Calvino propôs uma
subdivisão do gênero fantástico em visionário, com elementos sobrenaturais numa narrativa
situada na realidade; ou psicológica onde, por via de sentimentos íntimos como a angústia, ele
se realiza no foro íntimo, dimensão interior dos personagens.

A literatura fantástica iniciou-se na oralidade, com a mitologia. Foi assim mundo afora, antes
da era clássica, séculos antes do registro por escrito. Os mitos eram narrados e cantados. Isso
também se deu na mitologia indígena brasileira, composta por subsídios de muitas nações
distintas, os quais refletem o meio ambiente, a cultura, a identidade, a história e a riqueza
léxica das línguas faladas em nosso atual território nacional. Afinal, a literatura é uma
linguagem.

Posteriormente, a mitologia indígena expandiu-se para a escrita e inspirou gerações de
escritores brasileiros no gênero fantástico. À mitologia indígena vieram se juntar contribuições
europeias, africanas e asiáticas, as quais engrossaram a formação do caldo cultural daquilo
que depois ficou conhecido como “realismo mágico”, a mais rica modalidade da literatura
fantástica. Dentre nós, a cultura africana teve uma influência de destaque.
O fundador da literatura fantástica no Brasil foi o genial carioca Machado de Assis, com o
magnífico “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, lançado em 1881, que narra a morte do

defunto-autor seguida por fatos de sua vida. O pioneirismo de Machado de Assis foi
acompanhado de perto pelo maranhense Coelho Neto, com “Sertão”, de 1896. Enquanto o
primeiro romance faz parte da vertente excêntrica, o segundo situa-se naquela sobrenatural,
conforme Todorov. Ambos são reluzentes.

Contudo, o pioneiro do realismo mágico na literatura brasileira, e seu precursor na América
Latina, foi o paulista Mário de Andrade, com “Macunaíma”, publicado em 1928. A obra conta a
história do herói indígena cujo irmão, Maanape, era negro. O enredo mescla elementos míticos
de origem indígena e africana, ao relatar a turbulenta trajetória do personagem, em fuga do
Curupira, do gigante Piaimã e dos avanços casamenteiros de Vei, a Sol. No epílogo, o
desalentado Macunaíma faz um feitiço e se transforma na constelação Ursa Maior.

A tradição brasileira no realismo mágico foi seguida com brio pelo escritor baiano, Jorge
Amado, em “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, de 1966, um extraordinário romance no qual o
falecido marido, Vadinho, retorna ao mundo, saudoso de Dona Flor, quem resolve mandá-lo de
volta, auxiliada pelos orixás. A temática da cultura afro-brasileira é retomada em “A Tenda dos
Milagres”, que explora as crenças e o misticismo daquele segmento popular.

O realismo mágico de Jorge Amado foi perseguido por outros escritores brasileiros, como o
paraibano Ariano Suassuna, em “O Auto da Compadecida”, de 1955, e o baiano João Ubaldo
Ribeiro, em “Viva o Povo Brasileiro”, de 1984. Até mesmo o meu heterônimo, António Paixão,
Bardo do Bixiga, fez incursões na escola. Numa delas, refugiado numa barrica de vinho em
fuga do Covid-19, é entrevistado por marcianos sobre suas opiniões políticas. Noutra, o vate
antevê como Lúcifer se incorporaria em Donald Trump.

DURVAL DE NORONHA GOYOS JR.
Ex-presidente da União Brasileira de Escritores. Da Academia de Letras de Portugal. Diretor do
Sindicado dos Escritores (SP). Escreve quinzenalmente neste espaço às quartas-feiras