A irreverente Shanghai Lilly

Resenha feita por Claudio Willer sobre o livro lançado pelo meu heterônimo António Paixão, São Paulo, Brasil, agosto de 2017.

O Bildungsroman, romance de formação, já existia antes, mas foi consagrado como modalidade de narrativa a partir de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister de Goethe, publicado em 1795. É um gênero ou modalidade falsamente biográfica, mostrando o desenvolvimento de um indivíduo. Na origem, é edificante; e Wilhelm Meister suscitou críticas, entre outros do poeta-filósofo romântico Novalis, que o classificou como “livro pretensioso e piedoso – não-poético no mais alto grau” por reintegrar o protagonista à sociedade burguesa. Contudo, logo se fundiria com outra modalidade também falsamente biográfica e bem mais antiga, o romance picaresco. Paródias satíricas tomariam a frente, em um gênero que se expandiu, a ponto de caber nessa classificação o relato da ruptura que é Retrato do artista quando jovem de James Joyce, algo tão corrosivo como Apanhador em campo de centeio de J. D. Salinger, e falsas biografias do fracasso e não da ascensão, como Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, entre tantas outras grandes obras.

Um novo exemplo de ampliação e atualização do gênero é dado por Shanghai Lilly – publicado pela editora portuguesa Chiado neste 2017. Suposta biografia de “Vivian Salomon”, é atribuída a “Antonio Paixão”: um heterônimo (e não apenas pseudônimo, por apresentar-se com identidade própria) de Durval de Noronha Goyos Júnior, advogado e atual presidente da União Brasileira de Escritores.

É um bom registro das transformações do gênero. No caso, rumo ao deboche, à passagem da narrativa edificante para a sátira desenfreada. Apresenta afinidade com outra modalidade que prosperou no Brasil, o relato memorialístico dos filhos ou descendentes de imigrantes; especificamente, dos que vieram do Líbano, com uma expressão forte através de autores como Milton Hatoum, Raduan Nassar e Betty Milan. Mas “Antonio Paixão” / Durval Noronha procede à reversão dessa corrente – dupla reversão, diria, do Bildunsroman e da memorialística dos descendentes de imigrantes. Sua Vivian Salomon / Shanghai Lilly é uma perversa. Sua ascensão profissional se confunde com a desenvoltura na vida sexual. Mais que ascensão, visa a reintegração, a conquista do que lhe é devido, de seus direitos. Ambivalente, alterna encontros e relações com um propósito definido e a pura realização do desejo, em um modo que confunde fetichismo e bissexualidade.

De nada adianta o enredo substancioso sem um estilo compatível, que provoque a empatia do leitor. É onde Noronha acerta a mão, de um modo que surpreende a quem o conhecia por sua produção de cunho mais ensaístico. O relato na primeira pessoal, coloquial sem ser banal, flui da primeira á última página do livro. Transmite a impressão de que “Vivian”, a cínica protagonista, de fato está relatando sua agitada vida. Língua falada, mas ajustada ao idioma literário; por isso não soa falso, nem por um lado (do acabamento literário), nem pelo outro (do coloquial).

Um desafio é saber fechar narrativas; ser capaz de encerrá-las de modo convincente. O final de Shanghai Lilly, circular, metalingüístico, relacionando-se ao início, impressionará leitores. Outra qualidade: sem perder a coloquialidade, transmite informação sobre a China contemporânea e histórica (que Noronha conhece bem). Naõ poupa o estado atual de coisas no Brasil e outras praças; mostra bastidores de mercados financeiros, da especulação de alto coturno. Cosmopolita ao fazer a protagonista circular pelo mundo, expõe o novo-riquismo ao modo brasileiro; especialmente dos descendentes de imigrantes que cortaram laços com origens, renegando-as, nada mais tendo a oferecer que uma fátua ostentação. Isso, com uma segurança que me fez achar que Noronha, mesmo com esse sobrenome, também descendesse de emigrantes do Oriente Médio.

Ambivalência pode ser um componente do valor literário. Vivian Salomon / Shangai Lilly tem essa qualidade; principalmente, para cinéfilos. O nome é inspirado na personagem principal de um filme extraordinário, Shangai Express / O expresso de Xangai de Josef von Sternberg, de 1932, protagonizado por Marlene Dietrich. Uma China de estúdio, irreal, com um ator sueco, Warner Oland, fazendo um vilão chinês, e figurinos, criados para a atriz, que se tornaram peças de uma estética surrealista. Assim como o anterior O anjo azul, também da dupla Sternberg / Dietrich, celebra o triunfo do desejo: a vitória de Eros sobre as convenções, o moralismo rasteiro. Burgueses tacanhos acabam por curvar-se diante daquela que os salvara do bandido chinês. Termina com a sugestão do beijo mais longo da história do cinema, em um drible nos códigos de uma censura já forte naquela época.

Por Claudio Willer