A quebra de patentes farmacêuticas e o SGP

Publicado na Coluna Semanal do Dr. Noronha a convite do sítio “Última Instância – Revista Jurídica”, São Paulo, Brasil, 10 de agosto de 2005.

SÃO PAULO – O Brasil e os Estados Unidos da América estão envolvidos em uma nova disputa comercial no tocante à ameaçada quebra da patente, pelo Ministério da Saúde, do anti-retroviral Kaletra, produzido pelos laboratórios Abbot, de origem norte-americana. Como retaliação, o governo dos EUA ameaça retirar o Brasil da relação de países qualificados perante o SGP (Sistema Geral de Preferências) daquele país, por ocasião da revisão anual, a se encerrar em 30 de setembro próximo. O tema da quebra de patentes de parte do Brasil, no passado já foi levado ao sistema de resolução de disputas da OMC (Organização Mundial do Comércio) pelos EUA, que retiraram o caso sob pressão da opinião pública internacional.

O SGP foi promovido no âmbito da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento), como resultado de sua segunda conferência, realizada em Nova Dehli, Índia, em 1968. De acordo com o sistema patrocinado pela Unctad, certos produtos selecionados originários de países em desenvolvimento receberiam tarifas zero ou reduzidas com relação aos patamares da cláusula de NMF (Nação Mais Favorecida) do sistema multilateral do comércio. O objetivo do SGP foi o de aumentar as exportações, promover a industrialização e o crescimento econômico nos países em desenvolvimento. Os países menos desenvolvidos têm um tratamento ainda mais favorecido.

Cerca de 30 Estados administram programas do SGP, dentre os quais os componentes do bloco QUAD: os EUA, a União Européia, o Canadá e o Japão. Dentre outros, contam-se a Federação Russa, a Austrália, a Suíça e a Noruega. Por não ser um tratado, mas apenas um memorando de entendimento, o SGP não cria obrigações a seus signatários, mas também não lhes dá diretrizes éticas. Os EUA aderiram ao SGP apenas em 1976, originalmente por um período de dez anos, que vem sendo prorrogado periodicamente. Os EUA vislumbraram no SGP a oportunidade de interferir nos negócios internos e bem assim limitar a soberania dos países beneficiários.

Assim, para a qualificação ao programa, nos EUA, um beneficiário deve constar da lista de países elegíveis. Da mesma forma, o produto tem que constar de uma lista de itens qualificados, deve atender aos requisitos de valor agregado, deve ser importado diretamente pelos EUA e o exportador tem a obrigação de claramente identificar a mercadoria como parte do programa. Os produtos “sensíveis” naturalmente não constam do elenco de itens elegíveis. Nessa categoria estão a maioria dos produtos têxteis, os relógios, os sapatos, outros derivados de couro, o aço, o açúcar, o vidro, o suco de laranja e os eletrônicos.

A lista dos países e dos produtos qualificados é modificada anualmente pelos EUA. São mantidos da lista do SGP os países que oferecem acesso razoável aos produtos e serviços americanos, os que protegem os direitos de propriedade intelectual de interesse norte-americano; os que reduzem as distorções ao comércio nas políticas e práticas de investimentos; os que eliminam práticas não leais de exportação; e os que protegem os direitos dos trabalhadores. A lista é tão subjetiva que se presta claramente ao arbítrio. Pode-se inclusive argumentar que nem mesmo os EUA passariam no teste, que é administrado arbitrariamente.

Hoje, estima-se que o Brasil exporte aos EUA, de um total de cerca de US$ 20 bilhões, um volume anual de US$ 3,9 bilhões de produtos que constam na lista do SGP. Todavia, apenas US$ 1,5 bilhão qualifica para os fins do benefício, ou pela ignorância do sistema pelos exportadores, ou pela sua reduzida margem de preferência, ou ainda pelas dificuldades de acesso. Levando-se em consideração, numa premissa muito otimista, uma tarifa média americana de cerca de 2%, e um benefício de igual valor, os exportadores brasileiros em sua totalidade beneficiar-se-iam com uma redução tarifária de US$ 48 milhões.

A essa pífia vantagem comercial, devem-se contrapor alguns argumentos de importância, para se avaliar a questão da conveniência da eventual quebra de patente farmacêutica. O primeiro deles é o do princípio da legalidade, já que a medida é expressamente autorizada pelo tratado multilateral de regência, o TRIPS. Acresce que a medida é ainda respaldada pelos direitos humanos, já que o efeito é pertinente à saúde pública e ao tratamento gratuito dos infectados pelo vírus HIV. Mais ainda, em termos puramente econômicos, mais vale a economia de mais de US$ 260 milhões que o Ministério da Saúde fará do que participar do pífio programa norte-americano do SGP.

Dessa maneira, os princípios da legalidade e do atendimento aos direitos humanos de parcela de sua população de longe compensam abundantemente o risco da alienação do Brasil do programa iníquo do SGP administrado pelos EUA. Isso seria válido ainda que as desvantagens comerciais superassem os benefícios, o que não é verdade. De resto, é chegado o momento de desenvolver, no âmbito do direito internacional, um sistema ético para a administração dos SGPs.