Publicado em “A Folha de São Paulo” – Caderno Dinheiro, página nº 2, 3 de fevereiro de 1999.
A ordem jurídica internacional estabelecida pelo Tratado de Bretton Woods consagra dois regimes cambiais básicos: o da livre conversibilidade e o da inconversibilidade. No primeiro, temos presentemente duas variantes: o do câmbio flutuante, como nos EUA, Japão, Reino Unido e Suíça; e o da paridade fixa, como na Argentina e em Hong-Kong. No segundo, temos o caso de grande número dos países em desenvolvimento, inclusive o Brasil. Apesar do Tratado de Assunção de 1991, que criou o Mercosul, ter estabelecido entre os objetivos do bloco comercial a livre circulação de moedas, o Brasil persistiu por todos estes anos como o único país da área com um anacrônico regime de controles cambiais.
Este obcecado apego aos controles cambiais por parte dos governantes brasileiros é explicado pelo mecanismo da âncora cambial, mediante o qual se assegurou que a população e a iniciativa privada do Brasil pagasse pelo custo da ineficiência do Estado. Isto porque o câmbio super-valorizado barateava as importações e reduzia as pressões inflacionarias. Por outro lado, o custo decorrente era a perda de competitividade dos produtos brasileiros. Evidentemente, tal mecanismo, pela sua superficialidade, primariedade e falta de consistência, só podia funcionar em regime de curto prazo e permitiria apenas ganhar tempo enquanto reformas substanciais fossem realizadas no Estado brasileiro e na ordem jurídica nacional. Na falta destas, agravaram-se os indicativos econômicos e financeiros e a exposição da fragilidade política nacional levou à perda de credibilidade do Brasil ante os mercados internacionais. Como resultado, o Brasil está sem acesso aos mercados financeiros voluntários internacionais e não tem condições sequer de manter um nível adequado de linhas comerciais, indispensáveis às trocas internacionais.
Um dos maiores beneficiários desta esdrúxula política cambial brasileira foram nossos parceiros do Mercosul em geral e particularmente a Argentina, que adotou um regime de liberdade cambial fixa ao dólar norte-americano. Este regime teve a característica de não penalizar o produtor interno, já beneficiado pela política brasileira e, devido à conversibilidade livre, adquiriu maior credibilidade junto aos investidores internacionais. Sua grande vulnerabilidade estava justamente na enorme dependência dos expressivos saldos comerciais obtidos com o Brasil e na fragilidade da política cambial brasileira. No ano passado, somente o Estado de São Paulo adquiriu mais produtos argentinos do que os EUA. Prevendo a inexorável marcha dos acontecimentos, há mais de um ano os argentinos propõem a união monetária no Mercosul, polidamente rechaçada pelos negociadores brasileiros.
A desvalorização do Real realizada nos últimos dias, sem que as condições para alternativas viáveis existissem, era o cenário de pior hipótese previsto pelos observadores estratégicos tanto do setor privado como do setor público, neutralizando todas as conquistas da estabilização monetária. De fato, na política de desvalorização havida não há nenhuma medida de ordem estratégica. A alegada liberdade cambial implantada recentemente pelo Banco Central trata unicamente da livre fixação da taxa cambial e não de livre conversibilidade. Por conseguinte, trata-se de apenas de tímida medida reativa, como resultado da incapacidade da autoridade monetária sustentar artificialmente o Real nos níveis elevados onde se mantinha e de contar com medida política de caráter estratégico que permitiria agir com alguma esperança.
Sem a livre conversibilidade e as políticas que a permitam, o Brasil continuará acuado, diminuto em sua incompetência de formulação e implantação de políticas estratégicas indispensáveis para a afirmação de sua credibilidade na comunidade internacional e da competitividade dos agentes produtivos brasileiros. Da mesma forma, as pressões dos parceiros do Mercosul serão enormes no sentido de recuperação de vantagens competitivas. Devido ao fato de que a paridade fixa, na Argentina, é fixada por lei, a desvalorização do peso não se pode operar por decisão da autoridade monetária, como no Brasil, mas depende de ato do Congresso. Assim, as pressões argentinas serão provavelmente concentradas em medidas tarifárias contra o Brasil, que certamente colocarão em risco a tarifa externa comum e a própria iniciativa do Mercosul.
Não se deve menosprezar a gravidade do momento. A Nação tem tudo a perder pela inoperância e incompetência de seus políticos. A vulnerabilidade do Brasil é hoje muito maior do que na era Sarney e maiores as aspirações de seu povo. Hoje já não bastam as medidas acertadas no recente acordo com o Fundo Monetário Nacional. É necessário ir além. O governo deve deixar de apenas aumentar impostos para também implantar a eficiência administrativa e, ao invés de medidas cambiais anódinas e paliativas, fazer formulações estratégicas que assegurem a prosperidade do País.