A Reforma da Advocacia Inglesa face o Direito Internacional

Publicado na Coluna Semanal do Dr. Noronha a convite do sítio “Última Instância – Revista Jurídica”, em 14 de abril de 2004, São Paulo, Brasil.

XANGAI – O governo do Reino Unido nomeou Sir David Clementi, um alto executivo do mercado financeiro (sic), para liderar uma comissão com a tarefa de rever a formatação regulatória dos serviços legais na Inglaterra e Gales.

Uma primeira minuta do trabalho foi submetida à consulta pública no final do mês de março de 2004 (Documento de Consulta). Aos observadores atentos, ela plenamente justificou o temor de muitos em mais uma trapalhada do governo Blair na área jurídica, após sua atabalhoada proposta de reforma constitucional.

O Documento de Consulta submete ao debate público três matrizes alternativas de organização das profissões legais quanto à regulamentação. A primeira delas contempla a regulação governamental. A segunda dispõe a respeito da auto-regulamentação, enquanto a terceira trata da hipótese de co-regulação entre o governo e a entidade profissional.

Em cada uma dessas matrizes, todavia, admite-se duas vertentes: uma de sociedades profissionais e, outra, de sociedades multidisciplinares, entendidas essas como, por exemplo, sociedades de advogados com corretores, contadores, auditores, banqueiros, médicos, etc. Por sua vez, cada uma das referidas vertentes aceita duas variantes: uma com as sociedades profissionais tendo partes sociais de propriedade exclusiva dos advogados, e, outra, contemplando a existência de acionistas não advogados.

Essa formatação confirmou os piores receios dos advogados ingleses e galeses, e alarmou as profissões legais no mundo todo, pelo potencial desequilíbrio regulatório e concorrencial que poderá gerar, se implementada.

De fato, um dos cenários admitidos pelo Documento de Consulta é o de uma profissão legal regulada pelo governo, constituída em parte de não-advogados, e com capital social parcialmente de terceiros, inclusive aberto. Este cenário grotesco foi denominado pela imprensa britânica de advocacia de supermercado.

Todavia, à exceção de apenas uma variante, ou seja, aquela que contempla a advocacia auto-regulada em sociedades exclusivas de advogados e com partes sociais de propriedade de membros de profissão legal, todas as outras onze apresentam-se absolutamente ilegais face a ordem jurídica internacional.

Pouco se escreve sobre a regulamentação internacional da advocacia mas, desde dezembro de 1990, a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) adotou os Princípios Básicos sobre a Função dos Advogados, que tem força de tratado internacional. Assim, os Princípios Básicos são hoje o tratado internacional de mais alta hierarquia a regular a advocacia.

De acordo com os Princípios Básicos, os advogados têm o direito de formar e de se associar a entidades profissionais auto-reguladoras, que representem seus interesses, promovam sua educação continuada e protejam sua integridade profissional.

Por outro lado, os Princípios Básicos permitem que os códigos deontológicos da advocacia sejam criados pelas entidades profissionais ou por legislação, mas sempre de acordo com os padrões internacionais.

Os Princípios Básicos também deixam claro que o agente da advocacia é sempre e exclusivamente uma pessoa física. A Recomendação n° 21 do Conselho da Europa, de outubro de 2000, reforça os Princípios Básicos e enaltece a importância da garantia da independência da advocacia.

Por sua vez, o Acordo Geral de Comércio em Serviços (GATS), de 1994, um tratado internacional de hierarquia inferior aos Princípios Básicos, não contempla as sociedades multidisciplinares e submete a regulação nacional aos padrões internacionais da advocacia.

Mais ainda, o GATS requer um mecanismo internacional de consultas aos 146 Estados que são membros da Organização Mundial do Comercio (OMC), antes da implementação de uma regulamentação que altere o status quo à época em que os compromissos foram feitos, durante a Rodada Uruguai do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT).

Por conseguinte, a reforma da advocacia inglesa atualmente em cogitação é potencialmente contrária ao direito internacional. Dependendo ainda de se e como for implementada, ela poderá descaracterizar a natureza profissional do advogado da “nova advocacia” inglesa. Mais ainda, o “novo advogado” inglês, uma cadeia de supermercado ou um banco, por exemplo, poderá oferecer concorrência desleal no âmbito internacional a advogados de outros paises.