Publicado na versão eletrônica no sítio do JB On Line (http:\\www.jbonline.com.br), bem como na versão impressa no Jornal do Brasil, caderno Economia & Negócios, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 24 de agosto de 2008.
Rio de Janeiro – O grande filósofo e jurista italiano, Norberto Bobbio, ensinava que uma norma incoerente era aquela que ao mesmo tempo em que autorizava, negava um certo ato ou proposição. Mutatis mutandis, aplica-se o conceito a qualquer enunciado, inclusive na área da política externa.
Pois bem, a política exterior do governo Lula foi formatada com base na tríade do fortalecimento do Mercosul, da prioridade às relações com outros grandes países emergentes do hemisfério sul, e do engajamento nas negociações multilaterais de comércio no âmbito da OMC (Organização Mundial do Comércio).
Essa formatação parece correta, pois o Mercosul é uma importante iniciativa regional, com sérias implicações políticas e econômicas para os povos do Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Por sua vez, a crescente importância estratégica de países como a China e Índia, a coincidência de muitos interesses comerciais e o importante, vibrante e ascendente fluxo de trocas bilaterais com suas economias, também justificam a prioridade. Finalmente, a flagrante e onerosa derrota sofrida pelo Brasil na Rodada Uruguai está a exigir uma ampla revisão de fórmulas prejudiciais ao Brasil, o que poderia em tese ter sido feito na Rodada Doha.
Contudo, a ação tanto atabalhoada como contraproducente da diplomacia brasileira na última reunião ministerial da OMC fizeram por denegar aqueles postulados, deixando o Brasil com uma política externa incoerente e com seus gestores desacreditados tanto perante a opinião pública interna como junto aos nossos tradicionais parceiros e aliados externos pela injustificável reviravolta havida. Note-se que o desempenho de nossos negociadores foi pífio desde a formatação da agenda dos trabalhos, em 2001.
De fato, ao aceitar a proposta conjunta formulada pelos EUA (Estados Unidos da América) e UE (União Européia) na fase final das negociações, e de maneira isolada, o Brasil abandonou seus tradicionais aliados asiáticos, africanos e sul-americanos. Enquanto os EUA e a UE são os tradicionais adversários dos países em desenvolvimento no âmbito multilateral, a Índia, em particular, é o mais antigo aliado brasileiro, desde o chamado Grupo dos 11 da Rodada Uruguai, ampliado e revigorado já com a China e a África do Sul para a Rodada Doha. A Argentina é o maior aliado e destacado parceiro comercial regional do Brasil.
Não se argumente que as vantagens oferecidas pela UE e pelos EUA eram de extraordinária importância para os interesses brasileiros, porque foram decididas unilateralmente, em época anterior à ministerial e consagradas no orçamento europeu da Política Agrícola Comum (PAC) e no Farm Bill americano, aprovadas com várias semanas de antecedência, e atendiam principalmente, como é feito vigorosa e tradicionalmente por aquelas potências, aos seus exclusivos interesses.
Assim, em troca de nada além de um protagonismo individual estéril, arma sistematicamente utilizada pelos americanos e europeus para cooptar o apoio de muitos países em desenvolvimento representados por negociadores vaidosos, sobranceiros e incompetentes, renegamos nossa política externa e hoje nos encontramos diante da árdua tarefa de redefini-la e de recuperar a credibilidade perdida nos foros internacionais.
Por muito menos e diante do clamor da opinião pública doméstica, noutros países com maior tradição de serviço público, como o Reino Unido e o Japão, pediria demissão o responsável pela malfadada aventura das trôpegas negociações, no caso do Brasil o ministro das relações exteriores, de maneira a permitir tanto uma reformulação da política externa bem como a reconstrução da credibilidade perdida e bem assim da rede de alianças comerciais e políticas destruída.
Dentre nós, e em particular no Itamaraty, desgraçadamente constata-se com muita nitidez o ethos da prevalência do peso das muitas sinecuras corporativas sobre aquele do interesse nacional e, assim, é de se esperar que, na falta da consciência, não se ouça a sua voz. Até quando conviveremos com tal silêncio?