O Mercosul, a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e a Organização Mundial do Comércio (OMC)

publicado na Revista Crítica Jurídica, editada em conjunto pela Fundación Iberoamericana de Derechos Humanos – FIDH e pelas Faculdades do Brasil, edição nº 20 – Janeiro 2002, páginas 161 a 180, Curitiba, PR, Brasil.

A constatação, pelos Estados Unidos da América (EUA) e União Européia (3) (UE), que os seus setores de serviços representavam, no início da década de 80, quase 70% das respectivas economias levou os seus estrategistas comerciais a exigir sua inclusão no sistema multilateral de comércio, quando do lançamento, em 1986, da Rodada Uruguai do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT). Este posicionamento foi imediatamente rechaçado pelos países em desenvolvimento liderados por Brasil e Índia, no chamado Grupo dos Dez, o que causou pela primeira vez um impasse nas negociações multilaterais, desde a criação do sistema em 1947. Alegava o Grupo dos Dez que a inclusão do setor de serviços no GATT não faria sentido enquanto as áreas tradicionais de comércio, como a agricultura e o setor têxtil, estivessem injustificadamente excluídas do sistema multilateral. Mais ainda, alegavam os países em desenvolvimento que a inclusão do setor no GATT faria com que estes se tornassem compradores e não prestadores de serviços. Por último, argüía ainda o Grupo dos Dez que os países em desenvolvimentos seriam levados pela lógica do sistema a compradores de tecnologias não apropriadas às suas especificidades.

Este impasse durou cinco anos, até que uma campanha de desestabilização dos países em desenvolvimento levada a efeito principalmente pelos EUA, mas com a conivência da UE, induzisse os resistentes à insolvência e à chamada “década perdida”. Assim, em 1991 houve o consenso necessário para a aceitação do modelo imposto de uma formatação para um tratado sobre serviços, no âmbito multilateral do comércio, que resultou no Acordo Geral sobre Comércio em Serviços (GATS) (4), um dos chamados tratados da Rodada Uruguai, assinados em 1994. Contemporaneamente, foi criada a Organização Mundial do Comércio (OMC), entidade reguladora do comércio internacional, que passou a existir a partir de janeiro de 1995.

Os princípios sobre os quais deveria, em tese, ter sido assentado o GATS foram: a transparência; a liberalização progressiva; o tratamento nacional; a cláusula da nação mais favorecida; o acesso a mercado; o direito à regulamentação; e a participação crescente dos países em desenvolvimento. A transparência diz respeito à legislação doméstica de regência dos países membros da OMC. O acesso a mercado, por sua vez, deveria ser assegurado através diversas modalidades. A cláusula da nação mais favorecida, também conhecida pela sigla MFN, é o princípio não discriminatório entre os estados membros. O tratamento nacional é o princípio não discriminatório entre fornecedores estrangeiros e provedores nacionais, após o pagamento tarifário. Os demais princípios tem o mesmo significado semântico, bastante claro.

Por outro lado, são seis os setores de serviços objeto do GATS: telecomunicações; construção; transportes; turismo; serviços financeiros (incluindo o setor bancário, o de mercado de capitais e os de seguros e resseguros); e serviços profissionais (incluindo os serviços legais, os de auditoria e contabilidade, publicidade, administração, arquitetura, saúde, engenharia e programas de computação). As modalidades de prestação de serviços no GATS são: o transfronteiriço, ou seja do território de um membro para o território de qualquer outro membro; movimento de consumidor; presença comercial; e mediante representante ou agente temporário de vendas.

As negociações de serviços na Rodada Uruguai caracterizaram-se por uma marcante contradição entre princípios especiosos e uma realidade dura, insana e cruel que visava, única e exclusivamente, o ganho comercial estratégico para os países desenvolvidos, notadamente os EUA. Neste quadro realista, não faltaram imposições, pressões e ameaças, que freqüentemente não foram trazidas ao conhecimento da opinião pública internacional. Para a consecução de seu objetivo tanto hegemônico quanto rapace, os países desenvolvidos não hesitaram em associar-se naquilo que descrevi na época como o “cartel da vergonha”.

De fato, de sua perspectiva, os países desenvolvidos desejavam a inclusão de seus serviços no sistema multilateral de comércio (aqueles prestados por pessoas jurídicas), ao mesmo tempo em que pretendiam a exclusão dos serviços mais competitivos dos países em desenvolvimento, ou aqueles prestados por indivíduos. Para tanto, não hesitaram a UE, o Japão e o Canadá em adotar, antes do fechamento da Rodada, a infame e notoriamente restritiva legislação de imigração dos EUA, com o objetivo de limitar drasticamente o acesso a seus mercados (5). Para os países desenvolvidos, o GATS era um tratado para os seus banqueiros de investimento, e não para as cabelereiras dos países em desenvolvimento, como seus negociadores freqüentemente alardeavam.

Operava-se então um irresistível e avassalador movimento de pinças que tinha, numa ponta, os negociadores dos países desenvolvidos unidos numa matilha a atacar as presas individuais dos países em desenvolvimento; e, noutra, os agentes de diversos organismos multilaterais controlados pelas potências hegemônicas a induzir, às vezes mediante extorsão, uma política de abertura e liberalização unilaterais de encontro com o que era desejado pelos predadores. Dentre tais organismos contavam-se não somente o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, mas também o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (6). Desta maneira, acumularam-se as concessões dos países em desenvolvimento, criteriosamente registradas em planilhas pelo secretariado do GATT, divididas em compromissos plenos ou parciais (incluindo o congelamento do tratamento legal).

O resultado foi um previsível desastre para os países em desenvolvimento. Já ao cabo da Rodada, o próprio Banco Mundial e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) apontavam os países em desenvolvimento como perdedores da ronda de negociações. Segundo uma ominosa análise do Banco Mundial datada de 1993, os resultados da Rodada Uruguai beneficiariam em 64% os países desenvolvidos, contra 36% para os países em desenvolvimento (7). A realidade provar-se-ia muito pior. De acordo com um recente estudo do FMI, os países desenvolvidos ficaram com 73% dos benefícios durante os subseqüentes 6 anos de vigência da OMC, contra apenas 27% dos países em desenvolvimento (8).

No setor de serviços, os benefícios decorrentes da Rodada Uruguai couberam, quase que na totalidade, aos países desenvolvidos que se aproveitaram também da combinação de um regime mais favorável nas áreas de investimentos (Acordo TRIMS) e propriedade intelectual (Acordo TRIPS). Assim, desde a fundação da OMC em 1995, as exportações de serviços dos EUA cresceram aproximadamente 10% ao ano; as do Reino Unido 7%; as da França 5.7%; e as do Japão 4.8%. Por sua vez, as exportações de serviços do Brasil cresceram aproximadamente 0.6% ao ano; as do México 0.9%; as da Índia 1.2%; e as da África do Sul 0.3%. Como resultado, a UE, os EUA e o Japão tem, sós, aproximadamente 70% do volume total mundial da exportação de serviços, segundo dados da própria OMC, com forte tendência de crescimento, como vimos.

Todavia, a questão da liberalização dos mercados de serviços não repercutiu, para os países em desenvolvimento, apenas na crescente perda na participação nas exportações mundiais, pois teve semelhantemente um forte impacto nas suas economias domésticas. Isto se deu por decorrência das privatizações e das desnacionalizações de grandes segmentos econômicos havidas após 1995. O défice da balança comercial do Brasil no mesmo período foi de cerca de US$ 22 bilhões, o que representou a exportação de aproximadamente 3.5 milhões de empregos. O crescimento econômico do Brasil no período posterior a 1995 ficou em aproximadamente 2.1%, insuficiente para a absorção do crescimento populacional, tanto no volume quanto na alocação desproporcional para os diversos setores sociais.

De fato, no Brasil, desde 1995, mais de 60% do importante volume de investimentos estrangeiros ingressados foi destinado ao setor de serviços, notadamente para as privatizações e/ou liberalizações nas áreas financeira, de telecomunicações e de energia. Note-se que, para cada dólar investido houve um endividamento exterior de aproximadamente dois, tendo a dívida externa quase que duplicado. Observe-se, ainda, que a “racionalização” havida no setor financeiro importou na perda de mais da metade dos postos de trabalho existentes em 1995. A maior presença comercial de bancos estrangeiros repercutiu ainda no maior oferecimento de produtos financeiros existentes no exterior, o que contribuiu para o crescimento da fuga de capitais, dotada de novos e mais eficientes instrumentos. Tanto na área de energia, como no setor financeiro, houve uma diminuição da capacidade de planejamento estratégico do Brasil. A situação mostrou-se ainda pior na Argentina e no México, onde o setor financeiro foi quase que totalmente desnacionalizado. De um modo geral, a privatização das empresas de serviços públicos como energia, transportes aéreos, saneamento, etc., mostrou-se falha nos países em desenvolvimento, em função da falta de compromisso do setor privado, em geral, e do capital estrangeiro, em particular, com as questões sociais.

Desta maneira, vimos como a inclusão do setor de serviços no âmbito do sistema multilateral de comércio veio a beneficiar, quase que exclusivamente, um núcleo central de países desenvolvidos, em detrimento dos países em desenvolvimento e da grande maioria da população mundial. Os prestadores de serviços dos países em desenvolvimento ficaram alijados dos mercados das grandes potências econômicas como resultado das discriminatórias medidas impeditivas à sua livre movimentação, implantadas como resultado do conluio havido por ocasião da formação do chamado “cartel da vergonha”. Com isso, os prestadores de serviços dos países desenvolvidos, a quem tais restrições não são naturalmente aplicáveis, adquirem a possibilidade de atuação global, com marcantes vantagens de escala, que se fazem sentir como um todo, mas principalmente no setor de serviços profissionais.

Por força do disposto no artigo 24 do GATT 47, os acordos regionais de comércio somente são compatíveis com a ordem jurídica multilateral se representarem um avanço liberalizante com relação ao acordado no âmbito do sistema. Assim ocorreu no Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), assinado em 1992, mas que entrou em vigor em 1.1.1994, entre os EUA, México e Canadá. O fato que o NAFTA foi negociado pelo México por uma administração notoriamente corrupta e incompetente permitiu aos EUA a formatação de um modelo idiossincrático de acordo regional comercial altamente vantajoso, para aplicação a outros países. Neste modelo, pretende-se a abertura mais ampla dos mercados de serviços dos países em desenvolvimento, que seriam providos desde o núcleo central ou mediante presença comercial, de acordo com as modalidades objeto do GATS. Ao mesmo tempo, procura-se assegurar os meios eficazes para tal intento, como fluxo livre de moedas e garantia de conversibilidade, de modo que os pagamentos e os lucros possam fluir livremente.

Por outro lado, procura-se impedir a movimentação dos prestadores de serviços dos países em desenvolvimento, como o ocorrido no caso do NAFTA, que tem uma quota anual de 5 mil indivíduos para o México, mas não tem quota para os EUA e o Canadá. Da mesma forma, procura-se auferir vantagens substanciais com relação aos concorrentes de outros países hegemônicos. Tais vantagens manifestam-se nas concessões específicas feitas no âmbito da ALCA, mas também pela influência na legislação doméstica e no sistema de resolução de disputas, que emasculará o Poder Judiciário. Os EUA desejam ainda a expansão do campo de concessões formuladas no âmbito do GATS pelos países em desenvolvimento, em favor de seus prestadores de serviços, como na questão dos serviços profissionais. Desejam ainda a inclusão de novas áreas de concessões, como na questão das compras governamentais.

Assim, na formatação da ALCA, os serviços de alta complexidade seriam desnacionalizados, inclusive pela perda de economia de escala decorrente da falta de acesso aos mercados dos EUA por decorrência das barreiras horizontais de movimento de prestadores de serviços. Assim, os bancos comerciais serão estrangeiros e os de investimentos serão situados em Nova Iorque. As Bolsas de Valores e de Mercadorias regionais desaparecerão. Os advogados, auditores, contadores e consultores especializados em tarefas de alta complexidade serão os estadunidenses. O mesmo ocorrerá com os serviços médicos e hospitalares, arquitetônicos e de informática. Este último setor, com grande potencial de crescimento, será aniquilado pelas barreiras horizontais.

O setor educacional nos países em desenvolvimento sofrerá grandemente, pois estará fornecendo a educação mínima necessária para o desempenho de tarefas meniais, como servir merendas gordurosas e refrigerantes gasosos. De fato, os setores domésticos de serviços dos países em desenvolvimento serão condenados à função de depósitos de mão de obra qualificada, fabricas de pobreza (9). No sistema formatado pelo NAFTA, um país é competitivo na direta dimensão de sua miséria. Somente terão oportunidade de trabalho nas empresas americanas aqueles nacionais dos países miseráveis que puderem estudar nos EUA, o que criará uma satrapia dentro das tradicionais classes oligárquicas. As línguas regionais degradarão, cedendo lugar ao crescimento de um patoá fundado no dialeto do inglês falado nos EUA.

Numa ALCA erigida sobre os infames alicerces do NAFTA, os setores culturais dos países em desenvolvimento tenderão à redução à insignificância. Assim, a imprensa escrita será de propriedade dos estadunidenses, que empregarão, não jornalistas, mas tradutores do dialeto americano para os patoás locais. As televisões transmitirão audiovisuais americanos, com a reconhecida falta de qualidade, confeccionados a um preço baixíssimo pela escala, o que eliminará a possibilidade de competição. Os habitantes dos países em desenvolvimento serão, assim, inexoravelmente convertidos em desesperançados servos econômicos reduzidos a perplexos observadores da prosperidade alheia, desde a triste perspectiva de suas miseráveis senzalas.

NOTAS DE RODAPÉ

(1) Texto preparado a pedido de “Cadernos Diplo – Le Monde Diplomatique”.

(2) Advogado no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Sócio sênior de Noronha-Advogados. Árbitro do GATT e da OMC. Autor de “A OMC e os Tratados da Rodada Uruguai”, “GATT, MERCOSUL & NAFTA” , “Ensaios de Direito Internacional” e dos verbetes MERCOSUL e NAFTA da Enciclopédia da Paz, da ONU. Foi negociador brasileiro de serviços durante a Rodada Uruguai e presidente da Comissão da OAB sobre o GATT.

(3) Então Comunidade Econômica Européia (CEE).

(4) Para uma análise circunstanciada do GATS, V. “A OMC E OS TRATADOS DA RODADA URUGUAI”, por Durval de Noronha Goyos jr., Observador Legal Editora, São Paulo, 1995, páginas 49 a 71.

(5) V., por Durval de Noronha Goyos jr., “GATT, MERCOSUL & NAFTA”, Obs. Legal Editora, São Paulo, 2a. edição, 1996, página 15

(6) V. por Noam Chomsky, “World Order’s Old and New”, Pluto Press, Inglaterra, 1997, página 179.

(7) V. “Trade Liberalization: Global Economic Implications”, Ian Goldin et al, 1993, the World Bank and the OECD.

(8) “Meeting in Quatar looks likely to disappoint the WTO optimists”, The Times, Londres, 23 de outubro de 2001, página 26.

(9) V., por Samuel Pinheiro Guimarães, “A ALCA e o fim do Mercosul”, em “ALCA e Mercosul: riscos e oportunidades para o Brasil”, IPRI, Brasília, 1999, página 290.