Publicado na Coluna Semanal do Dr. Noronha a convite do sítio “Última Instância – Revista Jurídica”, São Paulo, Brasil, 10 de janeiro de 2007.
SÃO PAULO – Já tive inúmeras oportunidades de registrar em meus livros, artigos e conferências que o Acordo sobre Aspectos Relacionados ao Comércio dos Direitos à Propriedade Intelectual, incluindo o comércio em bens contrafeitos, mais conhecido pelo acrônimo Trips, derivado da denominação em língua inglesa, representou exclusivamente o reconhecimento dos interesses dos países desenvolvidos na matéria.
Tal situação refletiu bem o balanço do resultado das negociações da Rodada Uruguai do Gatt, que foi cerca de 80% favorável aos países ricos, em detrimento dos interesses daqueles em desenvolvimento, que têm cerca de 80% da população mundial, conforme dados da ONU, do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional.
De fato, como lembro em meu livro “A OMC e os Tratados da Rodada Uruguai”, o Trips trata de matéria já coberta há mais de cem anos por tratados internacionais e foi celebrado à margem de um outro organismo multilateral dedicado ao tema, a OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual). A OMPI foi fundada em 1967 e já contava com mais membros do que o número de Estados participantes daquela ronda de negociações do Gatt.
Ocorre, todavia, que os países desenvolvidos andavam descontentes com a OMPI, porque ela agia com independência e equilíbrio nas questões atinentes à propriedade intelectual. Note-se que, no âmbito da OMPI, sempre se buscou um equilíbrio entre o monopólio das patentes e o impacto social de seu uso. Tal postura descontentava os países desenvolvidos que buscavam a afirmação absoluta do monopólio, bem como a exeqüibilidade internacional dos direitos dele decorrentes
Assim, os países ricos buscaram, e conseguiram, a inclusão da área de propriedade intelectual no regime multilateral do comércio, apesar da existência de um organismo internacional dedicado ao tema. Essa iniciativa fora inicialmente combatida pelo Brasil, na liderança do chamado Grupo dos 11, sob a inspirada liderança intelectual do embaixador Paulo Nogueira Batista, de saudosa memória.
O professor australiano, John Ralton Saul comentou a respeito que, “se a criação da OMC, em 1995, foi a última clara vitória para a globalização, o ponto específico de maior alcance foi provavelmente a inclusão do regime de propriedade intelectual no sistema de comércio… A estrutura da propriedade intelectual, agora consagrada num patamar internacional, cria níveis de conhecimento que os recém chegados à pesquisa estão impossibilitados de alcançar. Este é um sinal de um sistema efetivo de oligopólio”. Note-se que, já no final da Rodada Uruguai, cinco países desenvolvidos já detinham 84% das novas patentes.
Acresce que o Trips subordinou as autoridades de propriedade intelectual de direito interno dos países em desenvolvimento àquelas dos principais países desenvolvidos. Isso se obteve através da institucionalização do conceito denominado “pipeline”, por meio do qual o primeiro pedido de privilégio dá automaticamente a proteção internacional.
Por outro lado, o Trips falhou clamorosamente ao deixar de tratar da importante questão da implementação de políticas de saúde pública, uma omissão imperdoável que afeta adversamente os direitos humanos de bilhões de pessoas. Essa matéria tornou-se um foco de conflito crescente entre os países em desenvolvimento e os países desenvolvidos, como evidenciado pela questão farmacêutica havida entre Brasil e EUA, levada perante a OMC.
Uma outra grande omissão no Trips, de interesse dos países em desenvolvimento, diz respeito à falta de tratamento do conhecimento tradicional, particularmente na área de medicina. Mais ainda, o Trips deixou de tratar da biopirataria, um conceito já existente durante a Rodada Uruguai e, principalmente, reconhecido pelo direito internacional, na CDB (Convenção sobre a Diversidade Biológica), assinada no Rio de Janeiro em 1992.
Segundo a CDB, o acesso às fontes genéticas dever ser feito com base no consentimento, tanto anterior quanto informado, do país de origem. As partes da convenção obrigam-se também a “tomar medidas legislativas, administrativas ou políticas com o objetivo de partilhar de uma maneira justa e eqüitativa os resultados de pesquisa e desenvolvimento e dos benefícios decorrentes do uso comercial, ou outro, dos recursos genéticos”.
De maneira a suprir essa imperdoável lacuna no tocante à biopirataria, alguns países em desenvolvimento propuseram uma alteração ao Trips de modo a incorporar os conceitos da CDB. Tal iniciativa foi recusada pela União Européia, EUA, Canadá, Suíça, Japão, Austrália, Coréia e Nova Zelândia. Por outro lado, A União Européia, EUA, Japão e Suíça propuseram na última reunião (outubro de 2006) do Conselho do Trips, no âmbito da OMC, um adensamento de medidas no combate à contrafação e a pirataria.
Essa proposta dos países desenvolvidos ignora a biopirataria, que é convenientemente excluída do problema percebido, quando deveria estar no cerne da questão. Os mais básicos princípios de direito internacional, bem como a decência humana, impõe que não se pode considerar qualquer nova alteração no regime jurídico do Trips, enquanto as assimetrias não forem resolvidas e a questão da biopirataria não receber um tratamento compatível com o CDB.
É mais do que chegada a hora de se compreender que o combate à pirataria marginal somente será eficaz se acompanhado da luta à pirataria rapaz originária em empresas situadas nos países desenvolvidos.