Posfácio do livro: A nova Constituição de Cuba de 2019

Posfácio por Renato Rabelo, São Paulo, 05 de março de 2020.

Cuba: Histórica Jornada Democrática de 2005 a 2019

J. Renato Rabelo*

O doutor Durval de Noronha Goyos Jr. nos oferece uma obra singular, atento e primoroso escriba, autor de vasta obra escrita, desta vez tendo como ensaio a Constituição da República de Cuba de 2019, resultando numa elaboração que promove um exame precioso sob a luz do direito comparado. Vai além disso. É um trabalho abrangente, situado no contexto histórico da significativa resiliência da luta do povo cubano, orientada por líderes capazes de estabilizar o poder político revolucionário em meio a tantas vicissitudes. Nesse curso peculiar, o autor, no emprego de uma justa metodologia, procurou expor a evolução constitucional do país face a seu embate permanente por sua independência e soberania, em todos os terrenos, e bem-estar do povo.

O seu trabalho analítico apresenta uma conclusão sobre a promulgação da Constituição cubana de 2019, realçando o feito, como um “extraordinário marco democrático”. A nova Constituição traduz, como ele acentua, “combativo apego aos valores da liberdade, da independência, da justiça social, da solidariedade humana e consciência social”. A nova Constituição “é igualmente um paradigma para a promoção dos direitos humanos, individuais e sociais de uma maneira geral, para todos os povos”. É em grande medida uma resposta ao imperialismo da nação cubana na luta incessante por sua dignidade e soberania.

Inspirado nesse singular e candente trabalho do doutor Durval Noronha, reporto-me à minha viagem a Cuba – então, como presidente do Partido Comunista do Brasil –, de 9 a 12 de novembro de 2011, conduzindo uma delegação desse Partido , no âmbito da relação permanente de partido a partido, com o propósito de intercâmbio de opiniões, cooperação mútua e solidariedade ao indômito povo cubano.

Mas desta feita fomos preparados para uma troca de ideias, buscando uma relação de observação e estudo no auge de um longo e amplo debate pela atualização e o desenvolvimento do socialismo, aberto desde 2005 por Fidel Castro, do alto da sua autoridade de principal líder revolucionário. Ele asseverava que o “inimigo principal” da Revolução é a incapacidade desta de enfrentar suas deficiências, e o risco de a Revolução “autodestruir-se” .

A delegação do PCdoB teve a oportunidade de conhecer os fundamentos dos Lineamientos (diretrizes) da nova política econômica e social e o início do trabalho de sua aplicação através de destacadas lideranças do Partido Comunista de Cuba e autoridades do governo: José Ramon Balaguer, membro do Secretariado do Comitê Central do Partido Comunista de Cuba e chefe do Departamento de Relações Internacionais desse partido; Jorge Arias, vice-chefe desse Departamento; Ricardo Alarcon, deputado e presidente da Assembleia Nacional do Poder Popular; Abel Prieto, ministro da Cultura e também ex-presidente da União Nacional dos Escritores e Artistas Cubanos (Uneac). E através do Encontro com os pesquisadores do Centro de Estudos da Economia Mundial (Ciem), à frente Ramon Pichs, seu subdiretor, além de Reunião com lideranças de Comitês Provinciais do PCC, das províncias recém-formadas de Artemisia e Mayabec, e da Cooperativa de Produção Agropecuária dessa última província.

Finalmente, um Encontro específico com economistas da Comissão Permanente do Governo, criada pelo Conselho de Ministros e chefiada por seu vice-presidente, Mariano Murillo Jorge, membro do Birô Político do PCC. Esse fórum tinha a responsabilidade de aplicar as decisões econômicas aprovadas no 6º Congresso do Partido, da atualização do socialismo, informando bimestralmente o governo sobre a marcha de sua implementação.

A fim de uma compreensão de conjunto, decorre desse longo período de processo democrático uma primeira parte que abarca a definição e a concretização de reformas estruturais: desde 2005, com o chamamento de Fidel Castro, passando pelo grande debate nacional convocado por Raúl Castro, resultando nas decisões do 6º Congresso do Partido Comunista de Cuba, realizado em 16 de abril de 2011. Este Congresso também convoca a 1º Conferência Nacional do PCC, no final de janeiro de 2012, para colocar a termo as medidas para aplicação da nova política econômica e social de atualização do socialismo, centrando-se no debate para uma nova ordem econômica.

Deriva daí, ao cabo de dois anos, a partir de 2014, no âmbito da Assembleia Nacional do Poder Popular (ANPP), uma segunda parte do período tendo em vista tomadas de decisões para uma modernização da ordem constitucional, a fim de dotar a República de um substrato legislativo formal. A partir de uma minuta apresentada pela ANPP, a mesma passou por um sistema de consulta popular promovida pela Assembleia Constituinte, e em seguida por um referendo popular, tendo seu desfecho com a promulgação da nova Constituição da República de Cuba, em 10 de abril de 2019.

Durval de Noronha, neste minucioso e abrangente trabalho, faz uma análise elucidativa da nova Constituição de Cuba. Compreende, assim, a segunda parte do período dessa singular jornada democrática, na qual insere amplamente a sociedade civil do país.

Neste Posfácio, procuro agregar ao valioso trabalho de Durval de Noronha um breve retrospecto da primeira parte do período da jornada democrática que engloba a nova política econômica e social para renovação e desenvolvimento do socialismo cubano, acrescendo-lhe algumas notas sobre a nova luta pelo socialismo na contemporaneidade.

Em 31 de julho de 2006, logo após seu legítimo chamamento – que abriu caminho para o extenso debate sobre o destino do socialismo cubano –, Fidel deixa a liderança principal do país devido a uma enfermidade. Raúl Castro assume a presidência da República e um ano depois, em 26 de julho de 2007, nas comemorações do assalto ao Quartel de Moncada ocorrido em 1953 , ele convoca um grande debate nacional sobre o futuro do socialismo em Cuba.

Esse amplo debate preparatório vai culminar na convocação do 6º Congresso do Partido Comunista de Cuba, realizado em abril de 2011, concentrado na temática sobre a reforma econômica, proposta em seu documento central, intitulado Lineamientos de la Política Economica e Social del Partido y de la Revolucion (Diretrizes da Política Econômica e Social do Partido e da Revolução).

No curso do 6º Congresso, os Lineamientos aprovados foram anteriormente debatidos atingindo a marca de 163 mil reuniões, com a participação de 8,9 milhões de cubanos, dos 11 milhões de habitantes. Esse amplo debate resultou em que, dos 291 Lineamientos originais, 181 foram modificados, 36 novos criados e 94 mantiveram a redação. A 1ª Conferência do PPC, após o 6º Congresso, chegou a debater nove versões de documento-base para sua aplicação.

O conteúdo do debate partiu das propostas da base social mobilizada, tendo por objetivo “ir forjando um consenso nacional sobre os traços que devem caracterizar o modelo econômico e social do país”, conforme assinalado por Raúl Castro, no Relatório Central do 6º Congresso . E ainda, segundo ele, avançar numa estratégia nacional com apoio das massas para “garantir a continuidade e irreversibilidade do socialismo”. Ou seja, a construção de um projeto nacional de desenvolvimento lastreado no socialismo. Então, era essa a questão central em debate aos 53 anos da revolução cubana.

Na sua trajetória, duas características marcantes vincaram a revolução cubana de 1959 : é a primeira experiência de uma revolução de libertação nacional que triunfa no Ocidente e logra, a partir daí, iniciar a transição ao socialismo; ademais, resultou de uma frente ampla democrática, que ia do movimento guerrilheiro surgido da Serra Maestra à classe média intelectualizada urbana e à Central dos Trabalhadores de Cuba (CTC), organizada no país; portanto, empreendeu a ampliação da componente democrática da luta revolucionária, favorecendo seu avanço. Esses são fatores do êxito da revolução e da sua perenidade, mesmo enfrentando dramáticos momentos, como no período especial após o fim da União Soviética.

Assim, a legitimidade da Revolução de 1959 está expressa no interesse nacional básico, na sua garantia para salvaguarda da independência. Acossada pelo imperialismo desde o começo, dada sua tarefa histórica, proclamou seu caráter socialista em 1961 – única viabilidade, nesse estágio histórico, para manutenção do poder político que assegurasse a independência nacional. Refletindo essa origem e sua convicção, a consigna que perpassou todo o debate popular estava afirmada como uma ode que brota da consciência e do sentimento: “Só o socialismo salva a Nação”.

No começo, pós-revolução de 1959, é gerado o Partido Comunista de Cuba, que existe na sua forma atual desde 1965, fruto da fusão de três forças antiditatoriais principais – expressão da frente ampla, como assinalamos, que protagonizou o êxito revolucionário . Entre os dirigentes cubanos e emanado da consciência popular, temos testemunhado, nos vários contatos na ilha, que o Partido Comunista de Cuba é afirmado como o “Partido da Nação cubana”. Ele é representativo do núcleo básico do interesse nacional, expressa assim, o interesse maior civilizatório da nação cubana.

Desse fato, reconhecem os comunistas cubanos, com amplo apoio social, o Partido Comunista de Cuba como o único partido do país. “É quem garante, junto ao povo, a continuidade histórica da nação”, segundo Raúl Castro . Para este dirigente comunista, sendo o país uma “praça sitiada” pelo imperialismo estadunidense distante a 150 quilômetros, “renunciar ao princípio de um só Partido equivaleria, claramente, a legalizar o partido, ou partidos, do imperialismo em solo pátrio e sacrificar a arma estratégica da unidade de todos os cubanos” .

Desde a Constituição de 1976 e agora na Constituição de 2019, o Partido Comunista de Cuba tem aí assento constitucional. Segundo a compreensão predominante, o Partido Comunista de Cuba deve representar a diversidade de setores e grupos sociais que representam a síntese da Nação. O componente democrático é inseparável do Partido. O Partido Comunista de Cuba tem sido a força dirigente de todo esse processo, com sua elevada autoridade perante a Nação cubana.

A tarefa em curso de atualizar o socialismo em Cuba, naquele final de 2011, concretizada nesse ano pela materialização dos Lineamientos definidos no 6º Congresso – com as premissas de “continuidade e irreversibilidade do socialismo” e centralidade na questão econômica – nos levou a dar significativo interesse ao debate de sentido estratégico em andamento na Comissão de Implementação e Desenvolvimento dos Lineamientos, seus diagnósticos, causas e origens, e a busca de como desatar os nós górdios de estrangulamento da economia cubana.

Nossa delegação visitante procurou compreender o realce na identificação de questões de fundo – de fato percebidas pelos dirigentes cubanos em meio ao debate –, das quais ficaram para nossa apreciação algumas referências. Nesse sentido, ao cabo de mais de 50 anos, observa-se no curso da revolução cubana um hiato entre a infraestrutura e a superestrutura da sociedade. Destacamos que nesse extenso tempo, desde os primórdios de 1959 – marcado por odioso bloqueio norte-americano, tentativas de invasão e de derrocamento do regime originário da Revolução –, o imperialismo não conseguiu lograr os seus intentos, mas ao contrário se consolidou o poder político hegemonizado pelo Partido Comunista de Cuba. Contudo esse decisivo legado – consolidação do poder político – confronta-se crescentemente com impasses e vulnerabilidades que se acumularam, derivados do baixo e precário desenvolvimento das forças produtivas que, desse modo, vão se tornando insuficientes para perenizar a revolução. Não se podia subestimar o que estava em jogo para o destino da revolução.

Por conseguinte, os dirigentes do partido e do governo, com base no amplo debate popular, definem nos Lineamientos aprovados no 6º Congresso que “a batalha econômica constitui hoje, mais do que nunca, a tarefa principal” para a continuidade do socialismo em Cuba.

O debate sobre a principalidade da tarefa econômica expõe uma visão predominante na construção socialista cubana de um idealismo igualitarista, representado pela tentativa de manter um Estado de bem-estar social sem equivalente capacidade estrutural produtiva que permitisse sua sustentação. Ademais o debate e o estudo desnudam distorções, sendo a mais saliente a que se refere ao princípio distributivo: um indivíduo que não trabalha praticamente tem as mesmas condições de quem trabalha. E o desvirtuamento na alocação da força de trabalho evidenciada pela prática das “plantillas infladas” (excesso de pessoal) em serviços da burocracia estatal, em contraposição ao qual registrava-se grande déficit, por exemplo, de professores e agricultores.

A falta de pessoal no trabalho agrícola era uma das distorções mais sentidas, devido ao forte impacto econômico. O país importava US$ 1,7 bilhões em alimentos, sem autossuficiência alimentar. Um verdadeiro problema de soberania, já constatada sua dimensão, porquanto nesse período o país importava 80% dos seus alimentos básicos. Desde então, pela emergência da situação pós-período especial, o governo decidiu pela massiva distribuição de terras ociosas (cerca de um milhão de hectares) para quem nela queira trabalhar. E ainda novas experiências institucionais já em curso nas províncias, sobretudo nas recém-criadas.

Tendo presente o desatar dos nós, presenciamos o decidido empenho para a consecução das medidas econômicas norteadoras, produto dos Lineamientos, entre as quais se evidenciaram: a busca de novas formas avançadas de planejamento; as alternativas de investimentos e equilíbrio no setor externo em função do desenvolvimento econômico; a edificação dos meios para transferir cerca de meio milhão de trabalhadores à modalidade trabalho por conta própria. E isso requeria incentivo a um vigoroso setor privado da economia, no contexto de um modo de produção socialista dominante, sem haver nenhuma marginalização social. Edificar empresas estatais com base na forte potencialidade científica e tecnológica já existente no desenvolvimento da indústria da biotecnologia. O estabelecimento de uma moeda única e a formulação de grandes projetos infraestruturais e formas adequadas para contar com o investimento do capital estrangeiro. Tudo isso sob um permanente cerco draconiano do imperialismo estadunidense, ameaçando e sancionando inclusive os que desejassem negociar e investir em Cuba. Situação que vem se tornando cada vez mais drástica na vigência do governo atual do presidente da República dos Estados Unidos, Donald Trump.

A transição socialista no olhar de Marx – transição do capitalismo ao comunismo –, em sua Crítica do Programa de Gotha (1875), em período mais ou menos extenso, prossegue com instituições e valores da velha sociedade que se busca suplantar. Não cabe nessa transição um “socialismo” de inspiração igualitarista. A relação de distribuição deriva ainda do “igual direito”, “princípio do direito burguês” – a cada um segundo seu trabalho . O socialismo tem como pressuposto elevada riqueza social. Não há socialismo na pobreza, cujo efeito seria generalizar a miséria, retrocedendo ao conflito pelas necessidades, característica do capitalismo.

Deng Xiaoping, líder principal da deflagração do extraordinário desenvolvimento chinês, na etapa de transição socialista, oferece a seguinte definição: “Ao que o marxismo atribui maior importância é o desenvolvimento das forças produtivas. (…). Para isto, a grande tarefa do socialismo consiste em desenvolver as forças produtivas. A superioridade do socialismo deve se manifestar, ao final, num maior e mais rápido desenvolvimento das forças produtivas do que sob o capitalismo, e num melhoramento incessante, sob a base do desenvolvimento das forças produtivas, das condições de vida cultural e material do povo”.

Na nossa visão, com base no estudo e pesquisa na atualidade, realizados com a programação e participação da Fundação Maurício Grabois, sobre A China e o “Socialismo do Século XXI” – dos quais constam ensaios recentes conduzidos por Elias Jabbour e Alberto Gabriele , e outros economistas –, sublinha-se o seguinte: o caráter desenvolvimentista a ser advogado pelos comunistas é uma resposta tanto à velha questão sobre o socialismo ter ocorrido em países antes submetidos ao regime colonial-escravista global, e às forças imperialistas e sem prévia base material. Isto, quanto ao “catching-up” (emparelhamento) aos países centrais. Assim, o socialismo é distinguido como um projeto essencialmente desenvolvimentista.

A partir dessa visão, a China e o que ocorreu à União Soviética demonstram que ao socialismo só cabe uma alternativa: a redução da desigualdade entre países da periferia e do centro do sistema internacional, podendo variar a dinâmica para isso, conforme a realidade de cada país. Quebrar o monopólio exercido pelos países capitalistas desenvolvidos do aparato científico e tecnológico é a principal condição ao sucesso de qualquer alternativa ao capitalismo no mundo. O contrário seria a proscrição das próprias experiências. Assim, a partir desse enfoque, segundo esses pesquisadores, baseados em Marx, o grande desafio em geral, Cuba em particular, é planificar a construção de um macrossetor produtivo compatível e capaz de sustentar um macrossetor improdutivo. Marx afirmava que o “trabalho improdutivo”, relacionado com o desenvolvimento humano (saúde, educação cultura etc.) deveria ser subsidiado pelo “trabalho produtivo” .

A primeira parte do período de amplo debate para definir a atualização e o aperfeiçoamento do socialismo cubano, nos deixou a percepção de um grande esforço de elaboração coletiva e início da execução de um projeto nacional, tendo como eixo central uma estratégia de desenvolvimento de orientação socialista. O objetivo visava a permitir ao país atingir, no terreno da construção econômica, e especificamente da sua infraestrutura, a conquista de uma viável transição socialista. Isso é possível em função do avançado legado desse mais de meio século, conduzido pelo Partido Comunista de Cuba, e aplicado pelo Estado nacional cubano, que formou um povo consciente do seu papel patriótico, culto e saudável, fruto de destacadas conquistas sociais que vigoraram, na maior parte do tempo, decorrentes das vantagens nas relações de intercâmbio no âmbito do outrora campo socialista.

Talvez não tenhamos exemplo de tanta significação – relativo ao percurso de ampla mobilização democrática e popular – que envolvesse ativamente tamanha proporção da população de um país, como na extensa jornada transcorrida em Cuba desde 2005, pela atualização do desenvolvimento socialista, reformas e sua aplicação; derivando disso outro amplo processo contínuo, mobilizador, para a modernização da ordem constitucional, até a promulgação da nova Constituição em abril de 2019.

No terreno constitucional, o doutor Durval de Noronha no seu olhar de experiente advogado e jurista considera que a Constituição de 2019 de Cuba traz elementos próprios em muitos setores, sendo, na área dos direitos sociais e humanos, “uma das mais avançadas do mundo”. E numa conclusão que responde ao liberalismo ocidental enfatiza: “Transparece claramente da Carta Máxima que a democracia em Cuba é tanto participativa quanto representativa, o que lhe dá grande legitimidade e, ao mesmo tempo, um maior valor intrínseco”.

Insisto num arremate final sobre a questão de onde se situa Cuba no contexto da nova luta pelo socialismo no alvorecer do século XXI. Podemos dizer dessa significativa experiência percorrida por Cuba, num balanço resumido da sua história, que a revolução anticolonial iniciada em 1959 está hoje em seu segundo estágio da luta pela independência, contra a neocolonização econômica, financeira, cultural e tecnológica. É uma gigantesca tarefa diante das muitas adversidades, no entanto, favorecida pela comprovada persistência do povo cubano.

Penso que o projeto de atualização do socialismo em Cuba alinha essa singular experiência latino-americana, atingindo seus sessenta anos, à tendência de como se dá a ressignificação da teoria da transição do socialismo na forma e na lógica contemporâneas.

Nas experiências contemporâneas do socialismo, os dilemas decisivos para os projetos socialistas têm hoje, nas experiências chinesas (desde 1978), vietnamita (desde 1986) e mais adiante a Cubana (desde 2005), alternativas próprias que vêm conseguindo superar os impasses estruturais, num mundo predominante de capitalismo, e dar materialidade ao socialismo na atual quadra histórica. Essas experiências se distanciam do “modelo soviético” de um período excepcional, abrindo caminho na transição socialista atual e incorporando novas estruturas e formas institucionais. Essa trajetória dá origem a uma nova classe de formações econômico-sociais, cujo exemplo mais avançado é realçado na experiência da República Popular da China.

O eminente marxista italiano Domenico Losurdo (1941-2018), ao traçar o balanço histórico do século XX, afirma: “temos que reconhecer a contribuição fundamental oferecida pelo comunismo à derrubada do sistema colonial-escravista mundial (…). Apesar de assumir novas formas em relação ao passado, a luta entre anticolonialismo, de um lado, e colonialismo e neocolonialismo, de outro, não cessou. A revolução anticolonial ainda não chegou a sua conclusão” . O colonialismo e a escravidão nas suas diferentes formas são da essência do imperialismo.

Em nossa época de desesperanças, é alvissareira, e se deve reconhecer, a gigantesca tarefa emancipacionista social e nacional dos países que têm atrás de si uma revolução anticolonialista e que agora se desvelam para encontrar o próprio caminho, evitando sobretudo cair numa condição de dependência (financeira, econômica e tecnológica) neocolonial.

O problema da construção de uma sociedade pós-capitalista está situado num quadro novo e imprevisto. Não é estranho, ao projeto marxiano de emancipação política e social, o que acontece atualmente nas construções de novas formações econômico-sociais em desenvolvimento nas revoluções remanescentes do século passado, na China, no Vietnã e em Cuba.

A República de Cuba chega aos 60 anos, celebrando a continuidade do seu projeto socialista, defendendo esse caminho de forma autônoma e soberana, não se submetendo à imposição neocolonial do imperialismo na atualidade. Hoje seu lugar histórico e sua inserção no sistema internacional se situam no curso de uma transição na ordem mundial, marcada pela tendência de viragem para um mundo multipolar, na perspectiva do avanço civilizacional assinalado pelo benefício mútuo entre nações e povos, e um sistema global de futuro compartilhado, sem imperialismo.

* J. Renato Rabelo é presidente da Fundação Maurício Grabois, ex-presidente do Partido Comunista do Brasil.