Texto publicado no jornal “Portugal em Foco”, por Albino Castro, Lisboa, 16 setembro de 2021.
Obras de ficção literária possuem, invariavelmente, personagens criados pelo autor. São exceções, naturalmente, os romances históricos, que se tornaram sucesso mundial na segunda metade do século passado, bem como as biografias, que nunca saíram de moda, desde os primórdios bíblicos – a partir dos primeiros livros do austero Velho Testamento. Mas existem obras de ficção nas quais os próprios autores são, igualmente, irreais. Não, exatamente, um pseudônimo, porém, um heterônimo, isto é, um personagem, que é escritor e narra, sob seu olhar, um universo que nem sempre ele mesmo, com nome e sobrenome originais, seria capaz de descrever com tamanha destrezza. Um dos mestres dos heterônimos, na nossa língua, foi o lisboeta Fernando Pessoa (1888 – 1935), intelectual de vocação renascentista, reunindo talentos de poeta, filósofo, dramaturgo, ensaísta e exímio crítico literário.
Maior homem de letras do Portugal do século XX, na minha opinião, Pessoa construiu, em seus versos, três extraordinários heterônimos – Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caieiro. “Pessoa inventava poetas inteiros” – sublinhou, com razão, o poeta americano Robert Hass, de 80 anos, nascido em San Francisco e professor da Universidade da Califórnia. Outro mestre dos heterônimos é o meu caríssimo amigo Durval de Noronha Goyos, de 68 anos, paulista de São José do Rio Preto, descendente, por parte do pai, de nobre família lusitana, vinculada aos cruzados hospitalários do Crato, ao Norte de Portugal, e, pela mãe, italianíssimo – e cujo avô, um de seus inspiradores, bateu-se contra o nazifascismo no Bel Paese. Noronha Goyos, com o heterônimo de António Paixão, lançou o memorável “Annus Horribiblis 2020” – saudado, inclusive, em Lisboa, na celebrada Feira do Livro de 2021, inaugurada no último dia 26 de agosto.
António Paixão, embora seja um personagem de São Paulo, é, a rigor, um clássico jornalista dos anos dourados do Rio de Janeiro, que mescla, com rara desenvoltura, um bom trago com posturas esquerdistas. Como Millôr Fernandes (1923 – 2012), carioca do Meyer, criador do “Pif-Paf”, o genial Sergio Porto (1923 – 1968), carioca de Copacabana, que usava o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, ou o apaixonado austo Wolff (1940 – 2008), meu querido e saudoso sogro, pai de Dona Andrea Wolffenbüttel, gaúcho de Santo Ângelo, mas carioquíssimo da gema e um dos fundadores do semanário “O Pasquim”. O personagem de Noronha Goyos, o jornalista boêmio e desempregado, por opção, é uma mistura de todos os velhos e rebeldes homens de imprensa da época na qual as composições dos textos eram feitas a chumbo, em pesadas máquinas Linotype, os linotipos, e as fotos reproduzidos em clichês de zinco.
“Annus Horribiblis” é uma obra de autor ficcional, entretanto, com crônicas verdadeiras do cotidiano brasileiro nestes quase dois anos de pandemia. “É um livro de combate”, afirma, no prefácio, o poeta e jornalista Adalberto Monteiro, curador da prestigiosa Fundação Maurício Grabois e membro da Direção Nacional do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), aliás, como António Paixão. Noronha Goyos cultiva, como Pessoa, diversos heterônimos valiosos, entre os quais, o napolitano Beppe Molisano, morador do paulistano bairro do Bom Retiro, o poeta inglês Tony Malvern, mercenário da pena, que vive no Reino Unido, porém, seu principal cliente é um irlandês, e o chinês Yuese Fajing, professor de Economia na Universidade de Pequim. “Annus Horribilis 2020” é um título inesquecível.