Palestra proferida no Sindicato dos Fiscais de Rendas do Estado de São Paulo, Brasil, no programa “Encontro com Notáveis” com transmissão pela TV Comunitária, São Paulo, Brasil, 9 de setembro de 1999.
1. A Rodada Uruguai foi a única das sete rondas de negociações da história do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), desde sua assinatura em 1947 que, ao invés de promover o aumento das trocas comerciais internacionais e a prosperidade geral dos países signatários, foi seguida por uma crise econômica e social sem precedentes para os países em desenvolvimento. Já ao final da Rodada Uruguai, uma ominosa análise do Banco Mundial apontava que 64% dos resultados da ronda beneficiariam os países desenvolvidos1, apesar do maciço esforço de propaganda que alardeava uma especiosa prioridade aos países em desenvolvimento2.
2. De fato, nos quase cinco anos, que se seguiram à fundação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1995, a prosperidade mundial ficou mais do que nunca circunscrita aos países desenvolvidos, particularmente aos Estados Unidos da América (EUA) e à União Européia (UE). Durante mais de 50 anos de retórica de livre comércio no GATT e na OMC, o setor agrícola mundial, que é o mais tradicional e do qual mais dependem os países em desenvolvimento de um modo geral, continua totalmente administrado e distorcido pelas montanhas de subsídios praticados pela UE, pelos EUA e pelo Japão.
3. Como resultado, nestes últimos cinco anos aumentou a concentração de renda nos países desenvolvidos; cresceu a participação dos países desenvolvidos no comércio mundial; instaurou-se a volatilidade financeira mundial; desencadeou-se uma crise econômica internacional; promoveu-se a miséria e a desesperança nos países em desenvolvimento. Segundo dados da própria OMC, tanto a América Latina como a Ásia tiveram um desempenho pior no comércio de mercadorias nos quatro anos seguintes a 1995 do que em igual período anterior.3 Os preços das mercadorias agrícolas, de cujas exportações depende a maior parte dos países em desenvolvimento, caíram em cerca de 30% desde 1998 segundo dados da OMC e cerca de 16% apenas em 1999.4 De fato, segundo dados da OMC, os países africanos tem na agricultura 19% e os latino-americanos5 36% de sua pauta de exportação.6
4. A tal crise econômica, seguiu-se necessariamente a instabilidade política e social em vastas regiões do planeta. Na Rússia, o escambo tornou-se o principal meio de troca. O quadro africano continua dramático e mesmo as experiências institucionais internas bem sucedidas, como é o caso da África do Sul, não contaram com maior acesso de suas mercadorias e serviços aos principais mercados. A situação da América Latina tornou-se crítica com movimentos armados internos no México, Peru, Colômbia e, até certo ponto, no Brasil. O Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), meritória iniciativa, está a pique de implodir, em virtude das desavenças entre Brasil e Argentina, causadas pelas grandes desvalorizações cambiais havidas em 1999 no Brasil. O Paraguai, a Colômbia, a Venezuela e o Equador passam por graves crises institucionais.
5. Por sua vez, a Ásia foi fortemente vitimada pelos marcantes desajustes da economia mundial, a começar pelo próprio Japão, em recessão desde o término na Rodada Uruguai. É ainda digno de nota o fato de que a recente crise financeira internacional afetou até mesmo os países asiáticos com política fiscal equilibrada, como a Coréia do Sul, as Filipinas, a Tailândia, a Indonésia e a Malásia. De outro lado, a China ainda continua à margem da OMC, apesar de sua expressiva economia e da maior população nacional.
6. Sob a perspectiva dos países em desenvolvimento, até o momento, a experiência da OMC não foi positiva, em termos comerciais, de vez que no período aumentou a concentração de riquezas e do comércio mundial nos países desenvolvidos. Da mesma forma, as modestas concessões feitas na área agrícola e têxtil não foram suficientes para dar uma vantagem competitiva aos países em desenvolvimento, porque foram feitas dentro de um patamar que permitisse aos países desenvolvidos a manutenção do controle dos respectivos mercados. A inclusão das áreas novas permitiu aos países desenvolvidos o acesso ao mercado de serviços dos países em desenvolvimento, mas não permitiu aos países em desenvolvimento o acesso ao mercado de serviços de seus parceiros desenvolvidos, fechado através de barreiras horizontais com políticas comuns de imigração.7 O acordo de investimentos deixou de tratar da espinhosa questão da escandalosa cumplicidade dos países desenvolvidos à fraude fiscal nos países em desenvolvimento, mediante a guarida, pelos seus setores financeiros, do respectivo produto em regime de paraíso fiscal.8
7. O acordo sobre a propriedade intelectual subordinou as autoridades nacionais dos países em desenvolvimento às dos países desenvolvidos, em injustificável renúncia à soberania, através do princípio denominado “pipeline”. O acordo sobre regras de origem permite o protecionismo institucionalizado nas áreas de livre comércio e seu uso para desviar correntes tradicionais de comércio. O acordo subsídios não é eqüitativo com os países em desenvolvimento. O acordo anti-dumping não coibiu o uso arbitrário do instituto na legislação doméstica, principalmente dos EUA, mas também de alguns países em desenvolvimento.9 A prática do “dumping” financeiro e tecnológico, comum em empresas dos países desenvolvidos, não foi coibida.
8. Mesmo o sistema de resolução de disputas da OMC, no qual tantas esperanças se depositou, deixou muito a desejar nos anos em que está em funcionamento. Seus problemas decorrem de falta de normas processuais adequadas, comprometendo a juridicidade e a eficácia do sistema. Seu mecanismo de arbitragem carece desde de terminologia jurídica até de institutos legais básicos, como o da reconvenção. Decorrem ainda da falta de transparência no papel desempenhado pelo Secretariado, e sua divisão jurídica, no trabalho dos painéis. O próprio sistema de eleição do Diretor-Geral da OMC tem sido acerbamente criticado pela falta de transparência.10 Desta forma, parece claro e cristalino que os resultados da Rodada Uruguai carecem de um aperfeiçoamento e de um aprofundamento antes que a comunidade internacional se lance nas águas gélidas e incertas de uma nova rodada, sob pena da irremediável perda de credibilidade do sistema multilateral. Por quê, então o lançamento de uma nova rodada, neste momento?
9. Durante a conferência ministerial da OMC, a tomar lugar em Seattle, Washington, EUA, de 29 de novembro a 3 de dezembro de 1999, espera-se seja lançada nova rodada de negociações do sistema multilateral de comércio. A iniciativa partiu, desta vez, da UE. No caso da Rodada Uruguai, pela primeira vez, a origem da proposta havia sido de um país outro que os EUA, o Japão. Os EUA, após simularem uma discordância por algumas semanas, emergiram com uma agenda tentativa para a proposta nova rodada, que gostariam de denominar Rodada Clinton (sic). O objetivo da UE com a rodada do milênio é o de assegurar a manutenção de sua competitividade relativa através de novos mecanismos a serem criados para compensar os efeitos do uso decrescente de subsídios agrícolas e do custo menor de produção de serviços, industrial e agrícola dos países em desenvolvimento. Os EUA partilham dos mesmos objetivos gerais da UE e o Japão pretende se manter uma força comercial importante.
10. Dos países em desenvolvimento, a Índia, que é tradicionalmente o mais alerta para as manobras hegemônicas e neocolonialistas, foi inicialmente contra o lançamento de uma nova rodada, por acreditar mais importante a implementação dos temas acordados na Rodada Uruguai. Posteriormente, todavia, concordou em negociar a agricultura e o setor de serviços, posição também adotada pela Colômbia. A África do Sul instou os países em desenvolvimento a uma maior união na defesa de seus interesses comuns. É certo que alguns dos setores objeto de certos tratados da Rodada Uruguai estão sujeitos a uma revisão para o ano 2000, como o agrícola; o têxtil; e o de serviços, que devem forçosamente ser incluídos na agenda da nova rodada. Por sua vez, o Grupo dos 15, como resultado de uma reunião preparatória havida em Bangalore, na Índia, em 17 e 18 de Agosto de 1999, estabeleceu três linhas de ação para a Rodada do Milênio. A primeira seria a remoção de iniqüidades nos tratados existentes para restabelecer o equilíbrio de direitos e obrigações. A segunda diz respeito aos setores distorcidos da agricultura e dos produtos têxteis. A terceira é pertinente às exceções para os países em desenvolvimento11. O G-15 também recusou a inclusão dos temas de “dumping” social e ambiental nas questões atinentes ao comércio internacional.
11. Para os parceiros comerciais, no âmbito da OMC, os EUA apresentaram uma agenda relativamente anódina para a conferência ministerial incluindo agricultura; medidas sanitárias; barreiras técnicas ao comércio; serviços; propriedade intelectual; valoração alfandegária; regras de origem; inspeção de pré-embarque; investimentos; subsídios e têxteis, todas matérias objeto dos tratados da Rodada Uruguai.12 Todavia, a real agenda dos EUA para a nova rodada é somente discutida internamente naquele país e deve incluir a questão trabalhista, ou “dumping” social; a questão ambiental; o comércio eletrônico; o acordo multilateral de investimentos; compras governamentais; e, na área da agricultura, até a questão da licitude de produtos modificados geneticamente.13 Todos estes pontos representam riscos enormes para os países em desenvolvimento, de vez que as matérias serão tratadas, não objetiva, eqüitativa e altruisticamente, mas como instrumentos de alavancagem de vantagens comerciais relativas para os EUA e de promoção de seus interesses hegemônicos.
12. Senão vejamos, o efeito do argumento do “dumping” social não é o de promover o bem estar do trabalhador dos países em desenvolvimento; ao contrário, ele leva à perda de competitividade do país e ao desemprego.14 O acordo multilateral de investimentos tem o objetivo de assegurar o livre fluxo financeiro e a garantia de conversibilidade cambial da fuga de capitais, do produto da fraude fiscal e do crime organizado para os bancos norte-americanos, gerentes, conselheiros e, principalmente, beneficiários de mais da metade deste capital espúrio.15 A questão da política ambiental não visa a preservação e a recuperação do meio ambiente, mas sim impedir que os países em desenvolvimento coloquem em produção as áreas agrícolas que forçosamente mantiveram ociosas por conta da perda de mercado induzida pela escandalosa política de subsídios dos EUA e UE. A questão do comércio eletrônico visa a impedir que o país consumidor tribute o consumo por essa modalidade, já que os EUA se consideram mais vendedores do que consumidores por tal meio. O objetivo da inclusão do tema das compras governamentais é o de ampliar a hegemonia comercial. E o objetivo da promoção do reconhecimento da legalidade da tecnologia de transformação genética é o da dominação da tecnologia e da produção de alimentos, ainda que os efeitos ambientais e médicos de tais técnicas sejam desconhecidos.
13. Por sua vez, a UE mostrou que aprende rápido e, mais do que os EUA, apresentou uma agenda vaga e genérica defendendo, por vezes, platitudes diversas como “continuar esforços para aumentar a liberalização do comércio em bens e serviços e evitar recaídas protecionistas” e, ocasionalmente, lançando mão de demagogias surpreendentes pelo desbragado cinismo como “medidas que beneficiem os países menos desenvolvidos”.16 Em sua agenda real, estará, certamente, a manutenção de sua política agrícola comum (a PAC), através da qual e dos 300 bilhões de dólares de subsídios anuais, promove uma festa para os produtores agrícolas europeus e condena grande parte da população mundial à miséria. À exceção da agricultura, a tendência é que UE e EUA partilhem da mesma agenda contra os países em desenvolvimento, como na questão de investimentos; serviços; trabalhista; ambiental; compras governamentais; comércio eletrônico, etc. As divergências ocorrerão apenas nos detalhes e especificidades, ou seja, em definir quem fica com que parte do butim.
14. O Japão ainda não apresentou uma agenda específica, como a UE, mas pode-se esperar que venha a apoiar todas as medidas que impliquem em um aumento da juridicidade do sistema multilateral, no que poderá ser um importante aliado dos países em desenvolvimento. O Canadá freqüentemente, mas nem sempre, defende os mesmos pontos de vista dos EUA. Na agricultura, pode-se esperar que os canadenses sejam a favor de maior liberalização. O Canadá defenderá também um regime multilateral para a concorrência ou direito de competição, tema que concentra riscos e oportunidades para os países em desenvolvimento. Riscos em que certos parceiros desejam avocar-se as decisões de concentração e concorrência desleal em prejuízo das autoridades locais e oportunidades para regulamentar questões importantes como o “dumping” financeiro e tecnológico.
15.- O Brasil e o Mercosul elegeram a agricultura como área prioritária, tendo procurado coordenar a questão dentro do pacto comercial assim como no âmbito do Grupo Cairns17. De fato, conforme dados da OMC, o setor agrícola corresponde a 82% do total de exportações do Paraguai; 61% do Uruguai; 53% da Argentina; e 35% do Brasil, o que torna a prioridade bastante óbvia. No entanto, a agenda agrícola brasileira, se existente, ainda não é pública. Da mesma forma, outros pontos eventuais da agenda do Brasil e do Mercosul não foram submetidos à opinião pública nacional. Certo é que o Brasil apresentou à OMC, em 26 de julho de 1999, três comunicados para os preparativos da conferência ministerial de 1999 pertinentes a pontos tópicos do acordo anti-dumping; do acordo sobre subsídios e medidas compensatórias; e a respeito do acordo sobre medidas de investimentos relacionadas com o comércio (TRIMS).
15.1.- No tocante ao acordo anti-dumping, o Brasil sugere melhoria de critérios para definição de produtos e determinação de margens, bem como alterações nos artigos 15 e 17. No primeiro, com o objetivo de assegurar o já avençado, mas não implementado, tratamento preferencial aos países em desenvolvimento. No segundo, pretende que os poderes dos árbitros sejam ampliados para analisar a conformidade de uma medida aos temos do acordo anti-dumping.
15.2.- No que diz respeito ao acordo sobre subsídios e medidas compensatórias, o Brasil denuncia a inexistência de clausulas concedendo um tratamento especial e diferenciado permitindo o uso de incentivos por países desenvolvidos no tocante a necessidades específicas pertinente a medidas econômicas, financeiras ou sociais. Para tanto, pede maior claridade de linguagem e revisão dos procedimentos e metodologia de cálculo das medidas compensatórias. Pede ainda que seja permitido aos países em desenvolvimento que financiem suas exportações em condições competitivas àquelas oferecidas pelos países desenvolvidos (sic).
15.3.- Respeitantemente ao acordo sobre medidas de investimentos relacionadas com o comércio, o Brasil mais uma vez releva genericamente a inexistência de tratamento especial e diferenciado no tocante a medidas atinentes a políticas econômicas, financeiras ou sociais e propõe que seja outorgada aos países subdesenvolvidos a necessária flexibilidade para implementar políticas de desenvolvimento que possam reduzir a disparidade com os países desenvolvidos.
16.- Peca a posição brasileira pelos vícios habituais da tibieza, da falta de abrangência e pouca densidade dos comentários. Tais baldas são agravadas pela apresentação relativamente tardia dos comentários e pelo uso deficiente da língua inglesa em que foram estes formulados, mas ao menos podem ainda ser corrigidas pela reserva formulada de complementação das propostas. Particularmente, é de pasmar que não tenha sido formulado um pedido de revisão completa do sistema de resolução de disputas, tendo os três pontos da proposta brasileira sido derivados de derrotas sofridas por laudos ou na iminência de decisões arbitrais adversas. Tais derrotas ocorreram nos painéis do leite, contra a UE, no tocante a subsídios; da indústria aeronáutica, contra o Canadá, que com graves conseqüências impediu o Brasil de equalizar o equivalente do risco país nos juros internacionais; e a iminente derrota da política automotiva, contra a UE, EUA e Japão. Neste particular, é de se salientar que a pouca credibilidade do sistema de resolução de disputas e a experiência desastrosa que nele teve o país, levaram o Brasil a formular alguns infames acordos de contenção voluntária contrários aos seus interesses, como na questão anti-dumping do aço nos EUA, e que se esperava tivessem terminado com a conclusão da Rodada Uruguai.
17.- Igualmente, causa estranheza que o Brasil não tenha abordado, no âmbito das TRIMS, a questão dos fluxos financeiros, levantada anteriormente tanto pelo Sr. Presidente da República, como por seu Chanceler, em outros foros. De fato, existência de regime de paraísos fiscais em quase todos os países desenvolvidos funciona como instrumento de fraude contra a ordem legal interna dos países em desenvolvimento e induzem os mais graves desequilíbrios. Tampouco o Brasil apresentou oposição à inclusão das áreas ambientais e trabalhistas, do comércio eletrônico, de compras governamentais e de tecnologia de informação no sistema multilateral. Da mesma forma, o Brasil deixou de levantar a importante questão do conflito dos tratados internacionais, que ocorre nas áreas de propriedade intelectual, trabalhista, ambiental e, principalmente, na área monetária, como demonstrou a questão da equalização das taxas de juros, na disputa contra o Canadá. O Brasil também deixou de abordar a importante situação da pirataria ambiental e dos benefícios da diversidade biológica no âmbito do acordo sobre medidas de comércio relacionadas com a propriedade intelectual. Por último, deixou o Brasil de tratar do problema da livre movimentação dos prestadores de serviços e da questão têxtil, ambas de grande importância.
18.- Cabe às autoridades brasileiras, primeiramente, evitar que no âmbito da Rodada do Milênio venhamos a sofrer uma derrota de desastrosas dimensões, à semelhança do que ocorreu na Rodada Uruguai. A ordem social, econômica e política do Brasil não suportará tamanha adversidade. Em segundo lugar, trata-se de uma oportunidade para corrigir os malefícios que nos afligem desde a fundação da OMC. Para tanto, são necessários discernimento, coragem e competência.