Duas décadas do final da questão Beagle

Publicado na Coluna Semanal do Dr. Noronha a convite do sítio “Última Instância – Revista Jurídica”, São Paulo, Brasil, 01, de dezembro de 2004.

BUENOS AIRES – Um de meus mui estimados sócios argentinos relatou-me que, quando ainda jovem e pouco experiente advogado, em 1978, ao regressar à sua residência em alta madrugada, após uma prazenteira ocasião social, deparou-se na estação ferroviária central de Buenos Aires com o açodado descarregamento de milhares de caixões de defunto em alumínio, com as armas do exército argentino impressas no metal, e seu imediato re-embarque em vagões ferroviários.

Eram os tenebrosos tempos da ditadura militar argentina e aquele jovem advogado, tomado pela estupefação, paralisou-se momentaneamente ante a suposição de que os caixões estariam sendo enviados para regiões fronteiriças ao Chile, tanto frustrado quanto revoltado com aquela cena disparatada, quando foi bruscamente afastado do local, sob a mira de fuzis, pela polícia do exército.

A insólita e lúgubre situação confirmava os rumores e boatos correntes em Buenos Aires, bem como as especulações da imprensa internacional no sentido de que a disputa territorial entre Argentina e Chile a respeito do Canal de Beagle estava prestes a se degenerar numa guerra entre os dois países sul-americanos. Temia-se inclusive o seu alastramento regional, dados os problemas fronteiriços resultantes da chamada Guerra do Pacífico, no século 19, entre o Chile, de um lado, e Bolívia e Peru, de outro.

Por sua vez, o Chile estava igualmente sob o jugo de uma brutal ditadura militar instalada sob a inspiração nefasta, sombria e deletéria dos serviços de inteligência dos Estados Unidos da América e comandada pelo infame general Augusto Pinochet. A ditadura chilena instalara-se mediante um sanguinário golpe militar que resultara no assassinato do presidente democraticamente eleito, Salvador Allende, no próprio palácio presidencial.

As tropas dos dois países estavam já com suas ordens de combate e marcha quando, literalmente minutos antes da abertura das hostilidades e da conseqüente confrontação militar, a diplomacia do Vaticano, apelando para as comuns raízes culturais e católicas entre os dois países irmãos, conseguiu um consenso de suas lideranças sobre a mediação do papa João Paulo 2º a respeito da disputa em questão.

Os esforços da diplomacia do Vaticano, liderada pelo hábil e experiente cardeal Casaroli, levaram nada menos do que seis anos de tratativas e entendimentos minuciosos e frustrantes até que, em 29 de novembro de 1984, superado o mais recente impasse, foi finalmente firmado o Tratado de Paz e Amizade entre a Argentina e o Chile, respectivamente pelos chanceleres Dante Caputo e Jaime del Valle.

Na ocasião, a Argentina já estava com um governo democrático, sob a liderança do presidente Raul Afonsín, que assinaria também um acordo de cooperação econômica com o Brasil, o qual evoluiu posteriormente para aquilo que mais tarde seria o Mercosul. A celebração do Tratado de Paz e Amizade entre a Argentina e o Chile, além de evitar as mortes, a infelicidade e a miséria decorrentes da guerra, afastou um pretexto para o prolongamento da ditadura Pinochet no Chile.

O Tratado de Paz e Amizade entre a Argentina e o Chile, que completou 20 anos na última segunda-feira, é um documento de extraordinária importância regional e um feito memorável da diplomacia da Santa Sé e do papa João Paulo 2º, pelo qual todos os amantes da paz, da democracia e do direito internacional são muito gratos.