Publicado na Coluna Semanal do Dr. Noronha a convite do sítio “Última Instância – Revista Jurídica”, São Paulo, Brasil, 04 de novembro 2004.
LONDRES – O Reino Unido celebrou na quinta-feira, dia 28 de outubro, os trezentos anos do falecimento do filósofo inglês, John Locke (1632-1704), com a tradicional circunspeção e alguma fantasia dos setores conservadores. John Locke, nascido em Somerset e educado em Oxford, foi um homem polimático: estudou medicina e tornou-se um brilhante filósofo e um importante jurista. Morou na França, onde estudou os trabalhos de Descartes, e na Holanda, exilado, onde publicou sua primeira obra notável, Carta a Respeito da Tolerância, Epistola de Tolerantia, escrita em latim.
Locke foi um dos iluministas europeus, juntamente com René Descartes (1596-1650); Montesquieu (1689-1755) e Voltaire (1694-1766). Ele foi o principal representante inglês do empiricismo, recusando o conceito das idéias inatas e considerando o indivíduo no nascimento como uma tabula rasa. Sua filosofia política, expressa nos Tratados sobre o Governo Civil, Two Treaties on Civil Government, escritos em inglês arcaico mas prontamente traduzidos para o francês, inspirou Montesquieu de maneira ampla, inclusive na questão da separação dos poderes e do contrato social, tema que seria retomado por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) com maior profundidade.
Desta maneira, direta e indiretamente, o pensamento de John Locke, inspirado pela tirania inglesa que precedeu a Revolução de Cromwell de 1688, influenciou tanto o movimento da independência de 13 das colônias inglesas da América Norte, conhecido como a Revolução Americana de 1776, como o próprio ideário da própria Revolução Francesa de 1789. Sua influência direta em seu próprio país foi proporcionalmente muito menor, já que sua obra foi publicada após a Revolução Inglesa e as transformações políticas no Reino Unido foram, como é sabido, muito mais lentas que alhures.
Dentre os juristas, foi o primeiro a discernir a distinção entre a obrigatoriedade da lei da eficácia da norma. Assim, a existência da lei não implica em que ela seja de fato obedecida, muito embora continue a ser uma norma. Como precursor do Estado de Direito, Locke condicionou a tributação pelo Estado ao consentimento dos súditos, sem o que estaria plenamente configurada a tirania, ordem anômala.
Neste sentido, foi ele quem escreveu que “onde termina a Lei, começa a Tirania”, ao analisar quatro formas de degeneração da sociedade civil: a conquista; a usurpação; a tirania; e a dissolução de governo. A partir deste ponto, Locke conclui que se a resistência individual ao abuso de poder é legítima, muito mais o seria quando a vítima do abuso é a coletividade. Neste caso, conforme Locke, “não saberia como se lhes pode impedir a resistência à força ilegal usada contra eles.”
No início deste artigo, aludi a uma marcada fantasia na celebração da efeméride ora comentada, por parte de autores conservadores, que desejam celebrar a memória de John Locke como se tivesse sido ele o inspirador do liberalismo econômico, querendo chegar ao falso corolário de que, sem o liberalismo econômico, não haveria o Estado de Direito. Neste esforço, tais pessoas colocam fantasiosamente Locke como o iniciador de uma corrente de pensamento que mais tarde viria a atingir o apogeu com as teorias de Adam Smith (1723-1790). Ora, nos aproximadamente 100 anos que separam as obras de Locke de A Riqueza das Nações (publicada em 1776), o Reino Unido passou de uma sociedade primitiva e periférica à situação de poder imperial global.
De fato, Locke examinou os fundamentos da propriedade, sob a perspectiva filosófica de realização do ser e de maneira muito diversa dos pensamentos de Adam Smith. Nas palavras de Bobbio, por exemplo, “para Locke, seguidor dos escritores jusnaturalistas que o tinham precedido, as coisas do mundo externo eram, no estado da natureza, res communes. A situação original do estado da natureza se caracterizava não mais pela ausência da propriedade, mas pela sua universalidade”. Enquanto isso, Adam Smith já tratava a respeito de pactos bilaterais de comércio, que só deveriam ser assinados quando trouxessem benefícios aos interesses empresariais locais.
Assim, passados 300 anos de sua morte, o importante trabalho jurídico e teórico político de John Locke não merecia estar sendo mistificado para sustentar uma ordem econômica e situações políticas que ele não podia contemplar, como a necessidade de um referendo sobre a Constituição Européia!