Luís Antonio Paulino

Prefácio da obra “Diário da Crise” apresentado por Luís Antonio Paulino, outubro 2009.

luis-paulinoSegundo o historiador inglês Eric Hobsbawn, que quem caminha muito próximo dos acontecimentos corre o risco de ter os calcanhares mordidos pela história. Trata-se de um risco que todos os que acompanham a conjuntura inevitavelmente correm. Nem sempre é fácil perceber as tendências quando se é testemunha dos fatos. É preciso aliar sólidos conhecimentos históricos com uma aguçada capacidade de análise para, no turbilhão de acontecimentos da vida diária, perceber as verdadeiras sementes do futuro. Diante da avalanche diária de informações que os meios de comunicação despejam sobre as pessoas diariamente, minuto a minuto, é cada vez mais difícil refletir sobre a realidade que nos cerca e separar os acontecimentos que efetivamente constituem o fio da história. Mais do que ciência, é uma arte que poucos chegam a dominar, só depois de muitos anos de paciente prática diária. Digo isso, porque “Diário da Crise” de Durval de Noronha Goyos Jr. é um desses raros exemplos. Escrito ao longo dos últimos três anos, este diário é muito mais que uma simples crônica da primeira crise financeira do século 21, a maior em quase oitenta anos de história, desde a Grande Depressão de 1929. Cada um dos artigos revela ao leitor o que é essencial para quem deseja compreender a realidade que o cerca: os acontecimentos mais relevantes, o cenário em que ocorrem, os atores e interesses envolvidos e a relação de forças existentes.

Como em toda boa análise de conjuntura, o que leitor encontra neste diário é uma rica mistura de conhecimento e descoberta, onde o autor se apóia em sólidos conhecimentos históricos para inferir da análise dos fatos cotidianos cenários futuros que, à medida que a leitura avança, revelam-se, invariavelmente, tal qual previstos. Noronha conduz sua obra como um velho e experiente marinheiro, que leva seu barco em meio ao nevoeiro dos acontecimentos diários sem medo de apontar com segurança para a direção que os anos de experiência e a condição de privilegiado observador da política internacional lhe permitem fazer como poucos.

O leitor não vai se deparar com o óbvio, com o lugar comum, com a análise falsamente neutra dos defensores do status quo, que freqüentemente propõem correções de rota para que tudo permaneça como está, como na clássica formulação de Lampedusa, em “O Leopardo”. Em “Diário da Crise”, o que salta aos olhos é uma leitura especial da realidade, objetiva, mas não neutra, pois sempre relacionada com o ponto de vista dos que desejam reordenar os elementos da realidade, não para manter o funcionamento do sistema a partir de uma perspectiva conservadora, mas de transformá-lo, segundo uma ótica humanista e nacionalista.

Humanismo e Nacionalismo. São esses os dois temas centrais que balizam todas as análises, que, na melhor tradição da economia política, costuram, num painel amplo e coerente, as diversas dimensões da crise: financeira, comercial e política. Como o leitor perceberá em todos os artigos, cada acontecimento é, como nos ensinou Herbert de Souza, o Betinho, uma realidade com um sentido atribuído, não um fato puro, mas um fato lido e visto por interesses específicos que, no caso de Noronha, denotam seu compromisso inarredável com o humanismo e uma dedicação obstinada à causa nacional. Não se trata, portanto, de análise diletante, mas de uma análise interessada em produzir um tipo de intervenção política e que não omite a clara intenção de influir na organização da política, na definição de estratégias e táticas das diversas forças sociais em luta. Não é, assim, uma análise timorata; ao contrário, com elegância e cortesia, mas com a necessária dureza de quem tem compromisso com as causas que defende, não vacila em colocar com firmeza o dedo na ferida, mas não o faz com o propósito de magoar, mas de sanar.

Assim o faz quando analisa as falhas gritantes da política externa brasileira na defesa dos interesses do Brasil no jogo complexo das relações políticas e econômicas internacionais no mundo globalizado. Ao expor as crônicas deficiências e reiterados equívocos do Itaramaty na condução das negociações no âmbito multilateral – na Organização Mundial do Comércio – e regional, nas quais o Brasil se enreda em uma profusão de iniciativas retóricas e redundantes – Mercosul, Unasul, OEALC, Alba – sem que nenhuma funcione como deveria, Noronha tem a coragem de dizer que o “rei está nu”. E não faz o propósito de escarnecê-lo, mas, ao contrário, de não permitir que uma das mais respeitadas tradições do Brasil – a sua diplomacia – se apequene na vala comum dos interesses corporativos e da fogueira de vaidades que tomaram de assalto inúmeros setores do Estado brasileiro.

Denuncia a incoerência da política econômica brasileira com a desconcertante simplicidade de quem captou a essência do problema. Temerosa de enfrentar os interesses do sistema financeiro encastelados no coração do próprio governo, tenta resolver os problemas da falta de competitividade da produção nacional por vias tortas, que só fazem tornar ainda mais complexo o já caótico sistema legal e tributário nacional. De quebra, expõe desnecessariamente os flancos do País às estocadas das injustas e draconianas regras impostas pela Organização Mundial do Comércio às nações em desenvolvimento. Muito mais simples, pondera o autor, seria baixar os juros, a carga tributária e controlar o câmbio, ao invés de tentar inutilmente remediar os efeitos deletérios da má gestão dessas variáveis macroeconômicas sobre a competitividade das exportações brasileiras por meio de medidas ad hoc, que só fazem aumentar os custos administrativos das empresas brasileiras, obrigadas a lidar com uma das mais complexas estruturas tributárias do mundo, e gastar seu tempo e dinheiro em opacas atividades de lobby, que só contribuem para deformar uma estrutura política e administrativa já eivada de vícios.

O autor não se dobra ao discurso fácil, falsamente progressista, dos que se escondem atrás de causas meritórias, como o direito das minorias, para, de forma sorrateira, solapar os interesses nacionais. Ao analisar a questão da autodeterminação dos povos e a Declaração da ONU sobre Direitos Indígenas não tergiversa ao afirmar com todas as letras tratar-se de atitude irresponsável do Itamaraty assinar uma declaração em flagrante e direto conflito com as normas constitucionais brasileiras, cujas conseqüências, prevê ele, não tardarão a aparecer, na forma de pressões para permitirmos a criação de Estados estrangeiros dentro do território brasileiro.

O leitor se surpreenderá a cada página, a cada artigo deste livro com informações novas e análises esclarecedoras sobre o desdobrar da crise, que dificilmente encontraria no noticiário diário da imprensa. Às vezes porque os analistas, por não compreenderem a essência do problema, têm dificuldade de explicar. Com mais freqüência, contudo, porque tentam mistificar a realidade, procurando apresentar como natural e inevitável aquilo que é apenas o resultado de um complexo jogo de interesses no qual prevalece, invariavelmente, o ponto de vista do poder dominante.

Para quem preferir ler este livro se orientando não pela ordem temporal da crônica, mas dos temas abordados, o artigo “O colapso da Rodada Doha da OMC e os países em desenvolvimento” é absolutamente essencial. Resultado de uma conferência do autor na Universidade Central de Finanças e Economia, em Pequim, a artigo faz a exegese perfeita daquela rodada de negociação, cujo fracasso até agora assombra os fóruns internacionais como cadáver insepulto, que muitos tentam, em vão, trazer de volta à vida, como forma de exorcizar a crise. O autor condensa ali, em poucas páginas, de forma magistral, a crônica daquela rodada, sob ótica dos países em desenvolvimento. Difícil não lê-la sem dar-se conta da mais arrematada hipocrisia com que agem as grandes potências em materia de comércio internacional. Hipocrisia que, de resto, o autor procura desvendar nas diversas dimensões da crise.

Assim, quando comenta o desenrolar da crise financeira, que deflagrada no coração do capitalismo financeiro mundial, os Estados Unidos, espalhou-se como um rastilho de pólvora pelo mundo, produzindo a maior crise econômica global desde o Crash de 1929, o autor denuncia o mundo de mentiras criado pelas agências de classificação de risco. A soldo dos bancos e outras instituições financeiras, cujo risco deveriam analisar, estas agências contribuíram para criar a falsa imagem de solidez para um quantidade exorbitante de moedas privadas, que essas instituições colocaram em circulação na economia mundial, sem nenhum lastro econômico ou legal. Quando tais papéis revelaram ser o que realmente eram, ou seja, apenas títulos privados, sem nenhuma correspondência com ativos reais, dos quais não eram nem a mais pálida sombra, por obra e graça da mágica dos derivativos, e sem nenhuma garantia soberana de qualquer Estado emissor, essas agências foram vergonhosamente poupadas pela mídia, como se não tivessem nada a ver com o mundo de mentiras que ajudaram a criar.

Hipocrisia, igualmente revelada quando o autor demonstra a contradição entre o discurso neoliberal, consubstanciado no chamado “Consenso de Washington”, o qual atribui ao mercado uma suposta capacidade de auto-regulação, que a crise demonstrou ser pura ficção, e a corrida alucinada dos detentores daquelas moedas privadas aos cofres públicos, na desesperada tentativa de trocá-las por moedas públicas – dinheiro ou títulos do governo – que tivessem a credibilidade conferida pelo Estado e, em última instância, pelo bolso dos contribuintes.

Não há, enfim, como ler este “Diário da Crise” sem deparar-se a cada passo com um golpe demolidor na retórica neoliberal das grandes potências, que mandaram às favas o discurso livre-cambista e lançaram mão de tudo aquilo que condenavam de forma veemente na política econômica dos países em desenvolvimento. O protecionismo comercial, aberto ou disfarçado, adotado de forma indiscriminada por quase todos os países como mecanismo defesa dos empregos frente ao quadro recessivo que se alastrou pelo mundo desenvolvido é analisado em suas diversas modalidades, desde as mais abertas, como o American buy act ou o recurso indiscriminado e abusivo às medidas anti-dumping, até as indiretas, como estatização dos maiores ícones do capitalismo americano como a General Motors e o Citygroup.

Também não passam em branco, nesse amplo painel, os desafios e oportunidades que a crise coloca para as grandes economias emergentes – os chamados Brics – e, particularmente, o Brasil e a China. Nos diversos artigos dedicados à China, tema sobre o qual o autor é notório especialista, evidencia-se como a blindagem do sistema econômico e financeiro chinês em relação ao cassino em que se transformou o sistema financeiro mundial impediu, para sorte do sorte do Brasil e do mundo, que a China fosse tragada pelo buraco negro da crise financeira global. Não fosse o fato de a China, ainda que duramente afetada pela crise, dada a grande participação das exportações na formação de seu Produto Interno Bruto e suas imensas reservas denominadas em dólares, ter mantido uma perspectiva de crescimento de 8% para 2009 – o que é um desempenho excepcional no momento em que países com perspectiva de crescimento zero, como o Brasil, soltam fogos para comemorar o fato de não terem encolhido – a crise global teria sido muito mais profunda. O discurso do ex-secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Lawrence Summers, em 2001, de que a economia mundial era como um avião voando com uma só turbina, naquela época a economia americana, aplica-se, agora, à China, que responderá, em 2009, por pelo menos ¾ do crescimento econômico global.

Diante desse quadro, que traz ao mesmo tempo ameaças e oportunidades, Noronha analisa as diversas dimensões da crise comercial e chama a atenção para as deficiências da estratégia comercial brasileira, que potencializam os efeitos deletérios da crise e dificultam a captura das oportunidades. Especial atenção é dedicada pelo autor o tema do câmbio. Em diversos artigos ele evidencia como a política monetária brasileira, que mais de uma vez ele qualifica de insana, ao manter as taxas reais de juros nos níveis mais elevados do mundo, atrai capitais especulativos para o País, cujo único resultado é uma valorização artificial da moeda nacional, resultando em prejuízo para os exportadores brasileiros, que recebem menos dólares em troca das mercadorias que exportam, e para os cofres públicos, que financiam com dinheiro dos contribuintes os ganhos de arbitragem dos que especulam com a moeda brasileira.

O “Diário da Crise” é, enfim, uma obra que se alinha às melhores tradições do pensamento crítico brasileiro. Trata-se de um poderoso antídoto àquela força perniciosa a que o próprio autor chama a atenção quando cita Gabriel Garcia Marquez, para quem “hay uma fuerza perniciosa y profunda que se siembra en el corazón de los hombres y que no es possible derrotar a bala: la colonización mental”. É contra essa colonização mental que Noronha trava dura batalha, com uma argumentação poderosa, da primeira à última linha deste livro.

Com esta obra, Durval de Noronha Goyos Jr. se soma à cada vez mais rara estirpe de intelectuais e juristas brasileiros, comprometidos, sobretudo, com a questão nacional, sem negar, contudo, a essencialidade da dimensão democrática e social. Por isso, me parece que a resposta do grande jurista Pontes de Miranda, à pergunta “Devemos ser nacionalistas?” resume o espírito deste belo livro:

crise“O socialismo dos proletários dos povos exploradores pode ser universalista e não-patriótico; mas o dos povos explorados tem de atender ao duplo problema: o da submissão do trabalho ao capital e do corpo social aos outros corpos sociais. Portanto, seria errôneo não associar ao movimento trabalhista de tais países o cuidado e o interesse pelos assuntos nacionais, pelo que poderíamos denominar de socialismo dos povos. Enquanto existir a opressão econômica e política entre Estados, entre nações, o socialismo dos oprimidos tem de ser nacionalista”(1).

Luís Antonio Paulino(2)

(1) – Miranda, Pontes de. Preliminares para a Revisão Constitucional. In Cardoso, V. L. À Margem da História da República. Tomo II. Biblioteca do Pensamento Republicano. Brasília: Câmara dos Deputados, Editora Universidade de Brasília, 1981.

(2) – Luis Antonio Paulino é professor de economia internacional na Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp de Marília e diretor do Instituto Confúcio na Unesp. Foi secretário executivo do Ministério da Coordenação Política e Assuntos Institucionais da Presidência da República (2003-2005).