O fim do Acordo Multifibras e o futuro do setor têxtil

Publicado na Coluna Semanal do Dr. Noronha a convite do sítio “Última Instância – Revista Jurídica”, 28 de julho de 2004, São Paulo, Brasil.

SÃO PAULO – Dois editoriais recentes do jornal O Eestado de S. Paulo: “Mercosul, um projeto frustrado”, de 13 de julho de 2004 e “Oportunidades e riscos no comércio com a China”, de 14 de julho de 2004, ilustram abundantemente a duplicidade e a xenofobia em questões atinentes ao comércio exterior brasileiro. No primeiro artigo mencionado, o editorialista chama o Mercosul de projeto frustrado, de fracasso quanto a união aduaneira e de risível enquanto concepção geopolítica.

SÃO PAULO – O mecanismo idiossincrático de quotas de importação de produtos têxteis, existente na prática internacional, passou a integrar a formatação multilateral de comércio do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (o GATT) em 1974, apesar de violar diversos de seus princípios básicos, inclusive a chamada cláusula da nação mais favorecida, sob o nome de Acordo Multifibras. Desde então, os países em desenvolvimento têm denunciado a duplicidade e a hipocrisia dos países desenvolvidos, que patrocinavam o livre comércio seletivo apenas para as áreas de seu interesse direto, deixando ao largo do sistema multilateral os setores têxtil e agrícola.
Durante a rodada do Uruguai do GATT, ambos os setores mencionados foram objeto de duras demandas por parte dos países em desenvolvimento, que desejavam a liberalização do setor têxtil com a eliminação do Acordo Multifibras. Do embate havido com os países desenvolvidos, houve o compromisso de renovar o Acordo Multifibras no âmbito multilateral por um período de 10 anos, prevendo-se a desgravação progressiva das quotas no período e sua total eliminação a partir de 31 de dezembro de 2004.

Dessa forma, o processo que começou com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1° de janeiro de 1995, determinou a integração no sistema multilateral de 16% das importações de cada Estado-membro nessa data. Em 1° de janeiro de 1998, 17% adicionais foram desgravados, seguidos por 18% em 2002. Os produtos restantes, representando os 49% remanescentes das mercadorias importadas, ou a fina flor do protecionismo, serão liberalizados em 31 de dezembro do corrente ano.

Aquilo que deveria ser uma ocasião de júbilo por parte dos países em desenvolvimento produtores têxteis, e comemorado à altura, passou todavia a representar uma preocupação estratégica considerável, a ponto de alguns Estados-membros nessa categoria pleitearem a prorrogação do Acordo Multifibras. O que teria havido de novo no setor? Nada menos do que a acessão da República Popular da China à OMC, em 11 de dezembro de 2001, com suas enormes vantagens comparativas na área têxtil, que incluem para além da mão-de-obra barata, uma base legislativa competitiva, uma infra-estrutura eficiente e tecnologia de ponta. A combinação desses fatores deu à China a decisiva vantagem no setor têxtil: qualidade com preço.

Um ano após a acessão da China à OMC, o país já dominava cerca de 25% das exportações mundiais de vestuário, com um valor estimado de US$ 52 bilhões. Previsões conservadoras estimam que esse percentual de mercado deverá dobrar até o ano de 2008. Alguns países potencialmente competidores com a China, como Bangladesh, com renda per capita inclusive inferior, deixam de ser eficazes por terem uma estrutura legislativa onerosa, com altos tributos e excessiva burocracia, por exemplo. Outros, como o Vietnã, não têm investimentos adequados no setor.

Assim, parece que os únicos instrumentos à disposição das indústrias têxteis nacionais ameaçadas de extinção pela competição chinesa sejam aqueles contemplados nos artigos 15 e 16 do Protocolo de Acessão da China à OMC. O artigo 15 permite às autoridades dos países importadores o uso de uma metodologia alternativa para a determinação de preços domésticos nos casos anti-dumping, pelo período de 15 anos, devido à presunção de,jure de que a China não é uma economia de mercado. Por outro lado, o artigo 16 estabelece um mecanismo especial de salvaguardas para a proteção da indústria doméstica do país importador, válido pelo período de nove anos para o setor têxtil e de 12 para as demais áreas.

Essa tendência já começou a se manifestar. A União Européia e os Estados Unidos da América já promoveram medidas de salvaguardas contra produtos têxteis chineses, e foram seguidos por diversos países, entre os quais a Índia, a Coréia e, na América do Sul, o Peru. Hoje, a China já é sofre mais de 500 medidas anti-dumping e responde por aproximadamente 50% dos casos de salvaguarda existentes no mundo. Esses números deverão aumentar a partir deste momento.

Todavia, medidas como anti-dumping ou salvaguardas servem apenas para um alívio transitório, de curto e médio prazo. Sem reformas estruturais de fundo, incluindo aquelas destinadas à redução do chamado custo país, o setor têxtil fora da China sofrerá muito para manter-se viável.