Texto básico da palestra proferida por ocasião da Semana de Comércio Exterior, promovida pela Universidade UNIBERO, em São Paulo, no dia 10 de outubro de 2001.
O perfil macro-econômico brasileiro impõe a dura necessidade da geração de aproximadamente US$ 57 bilhões, neste ano, para fazer frente ao déficit em contas correntes e às amortizações. Descontados os investimentos diretos previstos no valor de aproximadamente US$ 18 bilhões, o País terá que buscar, a título de empréstimos ou de financiamentos, US$ 39 bilhões nos mercados financeiros internacionais. Como a vulnerabilidade do Brasil é manifesta, os juros internacionais aplicáveis ao País e a suas companhias são muitas vezes superiores aos praticados para outros países e suas empresas. Esta diferença é brutal, situando-se hoje em aproximadamente 10% ao ano, o que representa uma enorme desvantagem às companhias exportadoras brasileiras no confronto da concorrência internacional, tanto no financiamento à produção, como no financiamento das vendas externas. De um modo geral, tal situação aplica-se a todos os países em desenvolvimento de um modo geral, principalmente àqueles signatários da cláusula de controles cambiais do Tratado do Fundo Monetário Internacional (FMI).
O Tratado do FMI reconheceu o tratamento diferenciado para os países nesta referida condição, o que já era ratificado pelo Acordo Geral de Tarifas e Comércio de 1947 (GATT 47) e foi também expressamente aceito pelo Tratado de Marraqueche de 1993, que “inter-alia” criou a Organização Mundial do Comércio (OMC). Desta forma, o Brasil, à semelhança de todas as economias industrializadas, criou, ainda que tardiamente, em 1991, o comparativamente muito modesto, embora altamente necessário, Programa de Financiamento às Exportações (PROEX), com o objetivo de propiciar aos exportadores brasileiros acesso a financiamentos em níveis compatíveis com o mercado internacional. O PROEX foi estruturado para atender aos exportadores em duas modalidades: o financiamento e a equalização.
Nas economias desenvolvidas, as Agências de Créditos à Exportação (ACEs) tem um papel importante no fomento das vendas externas. Os recursos disponíveis para as ACEs representam 10% do comércio mundial de mercadorias1, ou US$ 550 bilhões de dólares anuais, uma importância superior a todos os montantes dispendidos em conjunto pelo Banco Mundial, pelo FMI e pelos bancos de desenvolvimento regional, no mesmo período2. De um modo geral, em outros países, suas modalidades vão além do financiamento e da equalização para compreender, também créditos diretos, refinanciamento, seguros e garantias, e são objeto de ação de diversas agências governamentais, como ocorre no Canadá e nos Estados Unidos da América (EUA).
Voltando ao PROEX, esclareça-se que a equalização é a modalidade de financiamento às exportações destinada a neutralizar o chamado “risco Brasil”, que são as taxas de juros cobradas pelos bancos internacionais de empresas brasileiras, muito mais elevadas do que aquelas cobradas das empresas concorrentes de países desenvolvidos. Assim, se uma empresa estrangeira pode financiar a aquisição de uma sua manufatura em 15 anos com juros de 2% ao ano, uma empresa brasileira não teria grandes condições de concorrência oferecendo um financiamento de 6 anos, a taxas de 13% ao ano, por exemplo, ainda que a qualidade de seu produto fosse equivalente e o preço relativamente inferior.
O PROEX criado em 1991, PROEX 1, admitia um prazo de financiamento de 15 anos, sendo que 10 anos para aeronaves, e um montante financiável de 100% do valor da operação. O montante disponível para equalização, de aproximadamente 3,8 ao ano, era até reduzido, e insuficiente, face às enormes dificuldades de acesso das empresas brasileiras aos mercados voluntários financeiros internacionais, porém minimizava as desvantagens das empresas domésticas face à concorrência internacional. Ocorre que algumas poucas empresas brasileiras, por volta de 133 em 19973, começaram a fazer uso do PROEX e a incomodar concorrentes internacionais. Dentre estas empresas estava a EMBRAER, que concorre diretamente com a empresa canadense BOMBARDIER, em segmento particular de aeronaves a jato de transporte regional.
O Canadá é um país que não é estranho aos subsídios e às manobras insidiosas do comércio externo. Vizinho dos EUA, depende em 90% de seu comércio externo das trocas com este país e cerca de 35% do seu Produto Interno Bruto advém deste comércio específico. Esta dependência vem de há muitas décadas e o Canadá, como nenhum outro país, habituou-se aos embates contenciosos do comércio internacional, como resultado de sua vasta experiência com os EUA, país que tem não somente um vasto arsenal legislativo unilateral em comércio internacional, como também tribunais específicos para questões de comércio internacional. De tão acostumado às lutas comerciais internacionais e a seus truques sujos, o Canadá até mesmo foi o criador do conceito “anti-dumping”, adotado em legislação doméstica por volta de 1912, instrumento infame que tem sido utilizado há décadas como eficiente arma do protecionismo comercial.
A BOMBARDIER contatou o governo canadense para uma ação comercial contra o Brasil, no âmbito da OMC, com o objetivo de, em eliminando os financiamentos do PROEX, obter maiores vantagens competitivas. O Canadá, por sua vez, não hesitou em patrocinar o pleito, apesar de ser a BOMBARDIER uma empresa que recebe subsídios diversos, alguns deles ilegais. O país está habituado a promover os interesses comerciais internacionais de suas empresas como sendo interesse nacional e dispõe de um pessoal altamente qualificado na área, tanto no governo canadense, que não usa diplomatas para tais questões, como na iniciativa privada. As consultas preliminares levadas a efeito com o Brasil não surtiram efeito e, concomitantemente, em 1997, Brasil e Canadá solicitaram a abertura de painéis de arbitragem no âmbito do sistema de resolução de disputas da OMC. Cada país atacava o(s) programa(s) de subsídios do outro.
No sistema de resolução de disputas da OMC, partes privadas não tem direito de ação, que é reservado aos hoje 142 membros da referida organização multilateral4. Assim, o Brasil fez-se representar por seus diplomatas acreditados na missão brasileira em Genebra que, além de serem despreparados para a representação de interesses comerciais, devido a sua formação profissional e falta de vocação, são absolutamente inaptos na área legal, de uma maneira geral, e no contencioso, em particular. O governo brasileiro contratou, sem licitação, para tal importante disputa, um advogado canadense, sócio de um escritório de advocacia norte-americano. O mesmo que, também sem licitação, havia já representado o Brasil em outras questões perante a OMC.
O laudo arbitral dos respectivos painéis, confirmados em grau de apelação, foi no sentido do reconhecimento das alegações e ganho de causa ao Canadá no caso movido por este contra o Brasil; e desconhecimento das alegações do Brasil no caso movido por este contra o Canadá. O Brasil perdera duplamente! Mais ainda, no caso movido pelo Canadá, o Brasil foi condenado à maior compensação comercial da história da OMC, no montante de US$ 232 milhões por ano, num período de seis anos, o que importa em sanção de US$ 1,4 bilhão! Esta derrota de proporções gigantescas e única na história do País, trouxe duas repercussões estratégicas de grande importância. A primeira diz respeito à condenação do programa de financiamento às exportações, o que fez com que o Brasil se tornasse a única dentre as oito maiores economias mundiais a não ter um respectivo sistema lícito, face à ordem legal multilateral, embora fosse o menor deles. A segunda repercussão adversa é pertinente à derrogação de direitos básicos conferidos pelo Tratado do FMI, que conferem certo tratamento especial aos países em desenvolvimento. O perigoso precedente legal para o Brasil, assim como para os demais países em desenvolvimento, foi dado pela omissão em alegar, em sua defesa, o conflito de tratados internacionais e, por decorrência, denunciar a incompetência do foro da OMC, para dirimir tal questão.
É curioso ainda observar que o precedente utilizado contra o Brasil foi estabelecido no caso movido pelos EUA contra a Índia, a respeito de restrições quantitativas para a importação de certos produtos agrícolas, têxteis e industriais, no qual o painel decidiu, sem competência originária e “contra-legem”, que não havia conflito entre os tratados mencionados. O presidente do painel a proferir tal desditosa decisão foi um brasileiro, o Embaixador Celso Lafer. Este injudicioso laudo arbitral, acusado na Índia de ter sido em todo ou substancialmente redigido pela divisão jurídica do secretariado da OMC, veio de encontro aos interesses das grandes potências econômicas a descaracterizar como economias em desenvolvimento aquelas dos maiores países da categoria. Ressalte-se ainda que, na ocasião, era diretor da divisão jurídica do secretariado da OMC uma canadense.
Como decorrência de tal descaracterização, o Brasil perdeu a oportunidade de equalizar os juros na medida da diferença existente entre as taxas de juros efetivamente pagas por suas empresas e aquela taxa de juros aplicável às empresas concorrentes nos países em desenvolvimento. A “equalização” brasileira ficou restrita aos tetos de juros estabelecidos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), um clube de países desenvolvidos do qual não fazemos parte. O corolário financeiro desta decisão é que, para fins de equalização, deve-se presumir que as empresas brasileiras pagam juros como as empresas dos países membros da OCDE e não os juros que efetivamente pagam! Isto significa que a equalização efetiva deixou de ser permitida ao Brasil, pela ordem jurídica multilateral da OMC.
A contundente derrota foi apresentada pelo Itamaraty à opinião pública nacional, ainda pouco habituada às questões litigiosas no âmbito da OMC, como uma importante vitória obtida pelo País. Tal farisaísmo visava a preservar as sinecuras do corpo diplomático decorrentes de sua função de guardiões oficiais dos interesses comerciais internacionais brasileiros e a própria situação política da administração pública federal e do governo brasileiro.
Discordâncias entre o Brasil e o Canadá na interpretação dos laudos arbitrais, quanto à respectiva implementação, levaram os países a duas novas disputas. Uma delas, movida pelo Brasil, ainda sem decisão, volta a atacar os subsídios canadenses. A outra, de iniciativa do Canadá, questionava as modificações feitas pelo Brasil no PROEX, em novembro de 2000, aquilo que se convencionou denominar PROEX 3. Este laudo confirmou o teto de equalização de juros da OCDE; reduziu o montante de financiamento total para 85% do montante da operação; e impossibilitou financiamentos a prazos superiores a 10 anos, o que era uma realidade em alguns casos, no PROEX 1, e uma possibilidade para a indústria aeronáutica. Nem o Brasil nem o Canadá apelaram da decisão. Mais uma vez, o laudo arbitral foi saudado pelo governo brasileiro como uma grande vitória5.
Contudo, tal exercício sofístico não resiste a uma análise, ainda que superficial, dos resultados de tais painéis, senão vejamos. Além da condenação ao Brasil de composição tarifária de US$ 1,4 bilhão, resultado do primeiro painel, o segundo resultou na confirmação da impossibilidade de equalização efetiva; na redução do montante financiável em 15% ; e na redução do prazo do financiamento de 15 para 10 anos. O conjunto de tais medidas é devastador e implica na diminuição das vantagens do PROEX 3 em cerca de 70% daquilo que representava anteriormente o PROEX 1. Como resultado, as condições financeiras de apoio às exportações brasileiras são muito inferiores às disponíveis às empresas estrangeiras. Desta forma, uma empresa exportadora brasileira terá muito melhores condições se tiver estabelecida comercialmente e estiver financiando suas exportações…do Canadá!
Entende-se que o Canadá não tenha apelado da decisão. Mas a omissão brasileira foi puramente política, resignada a sacrificar os interesses comerciais do País, nos mercados internacionais, para sustentar o mito da competência do governo no trato de tais questões. De fato, hoje o PROEX, com um orçamento de minguados US$ 740 milhões para 20016, é uma sombra daquilo que era em 1997, quando chegou a desembolsar aproximadamente US$ 3 bilhões. Assim, temos uma redução de cerca de 75% do montante de recursos para o apoio às exportações brasileiras, com uma diminuição de 70% das vantagens. Decididamente, com mais uma ou duas de tais vibrantes e contundentes “vitórias”, o Brasil estará alijado do comércio internacional.
Mais ainda, o Brasil tem sido o inequívoco campeão das derrotas no sistema de multilateral de resolução de disputas desde 1994, tendo sucumbido nas três disputas contra o Canadá, na área da indústria aeronáutica; duas contra a União Européia (UE), no caso do leite e seus derivados e no caso dos frangos; e uma contra os EUA, UE e Japão, no caso do regime automobilístico. Contra tais derrotas de escomunais proporções e graves implicações, o Brasil teve duas vitórias, uma apenas subsidiária, no caso movido pela Venezuela contra os EUA, na questão dos padrões ambientais para a gasolina; e, a outra, contra as Filipinas, no caso do leite de coco, do qual o País é importador!
Nos casos pertinentes ao leite e aos frangos, o Brasil foi derrotado em questões formais, muito embora o mérito da questão fosse eminentemente claro e incontroverso. Na questão da indústria automobilística, o Brasil sucumbiu nas consultas oficiais, o que deu ensejo a declarações jactanciosas da Sra. Charlene Barshefsky, a então representante do comércio dos EUA. Em todos os casos, o País foi representado pelo mesmo escritório de advocacia americano e seu sócio canadense. Coube a um brasileiro, todavia, o labéu de estabelecer o precedente da derrota!
A tibieza demonstrada pelo Brasil na defesa de seus interesses no sistema de resolução de disputas no foro multilateral de comércio traz, ainda, outras implicações colaterais em nada desprezíveis, como o encorajamento a outros países para tomar medidas unilaterais e arbitrárias ilegais contra o País, como fizeram recentemente o Canadá, no caso da carne; a Argentina, na área fundamental da Tarifa Externa Comum (TEC) do Mercosul; os EUA nos casos da soja e do aço, etc. Não se pode esquecer que, inspirados pelos EUA, os países desenvolvidos, como demonstrou o Canadá entendem que a ação unilateral é um importante catalista em comércio internacional. Mais ainda, o desempenho, tanto caricatural quanto auto-devastador por parte da diplomacia comercial brasileira, desencoraja o recurso a medidas contenciosas de defesa dos interesses nacionais, da mesma forma que estimula até mesmo países em desenvolvimento, como fez o Chile na questão do açúcar, a tomar medidas unilaterais altamente prejudiciais aos interesses comerciais do País.
A derrota estratégica do Brasil na questão aeronáutica, por comprometer decisivamente a capacidade dos países em desenvolvimento apoiar suas exportações, levou a Índia e ao Paquistão a apresentar a questão como integrante de sua agenda de lançamento de uma eventual rodada de negociações do sistema multilateral de comércio, a ser debatida na Reunião Ministerial da OMC programada para tomar lugar em Doha, no Qatar, no próximo mês de novembro. O Brasil, todavia, silenciou. E mais, enquanto o País era fragosamente derrotado nos contenciosos da OMC, nossos diplomatas assim comentavam o funcionamento do sistema: “Tudo indica, portanto que (o sistema de solução de controvérsias da OMC) se trata de uma ‘success story” (sic) e talvez não apenas um dos pontos altos da implementação da Rodada Uruguai, como também um dos grandes exemplos de contribuição, que pode dar o Direito Internacional Público, ao aprimoramento da convivência internacional, por meio das técnicas jurídicas.”7
Tal monumental dislate dramatiza o preço a ser pago pelo País como resultado da condução de suas questões comerciais internacionais por um governo que se revelou carente de discernimento para formulação estratégica, sem a perspicácia para entender o processo de desvio dos objetivos do sistema multilateral de comércio, incapaz de compreender como tais desvios comprometem seriamente os interesses nacionais, e sem a honestidade para, reconhecendo os fracassos, reformular sua ação do sentido da afirmação das condições que permitam aos agentes econômicos brasileiros uma competição eqüitativa nos mercados internacionais.