publicado na Revista Anual “Revista Jurídica Mater Dei”, Vol. 6, número 6, dezembro de 2005, Pato Branco, Paraná, Brasil.
RESUMO:
Partindo das influências históricas e traçando aspectos da conjuntura política e social do mundo atual, o artigo traça um panorama da organização jurídica da ONU (Organização das Nações Unidas). O poder de influência da ONU também é abordado no texto, salientando que esta padece do vício de anacronismo, face à realidade geo-política mundial de hoje. Depreende-se do artigo que a formatação atual da ONU estaria sofrendo de falta de legitimidade democrática, em razão da ausência de poderes adequados por parte da Assembléia Geral. O autor sugere ampla reforma estrutural na ONU, mesmo diante das dificuldades inerentes à sua implementação.
HISTÓRICO
A Organização das Nações Unidas (ONU) foi a segunda tentativa de criação de um organismo multilateral para regular ampla e profundamente as relações internacionais soberanas. A primeira iniciativa neste sentido havia sido a Liga das Nações,(1) estabelecida em 1920, no final da Primeira Grande Guerra Mundial, e que resultou num grande fracasso porque sua sorte esteve intimamente ligada ao disparatado Tratado de Versailles. Assim, a Liga das Nações deixou de existir com a eclosão da Segunda Grande Guerra Mundial. Todavia, já durante esse último conflito, as potências aliadas, que se contrapunham às chamadas potências do eixo, utilizaram a denominação “nações unidas”, conforme declaração de 1 de janeiro de 1942, logo após a entrada dos Estados Unidos da América (EUA) na guerra. Em abril de 1945, no final da confrontação bélica, representantes de 50 Estados, inclusive o Brasil, reuniram-se na Conferência das Nações Unidas sobre a Organização Internacional, na cidade de São Francisco, Califórnia, EUA, para deliberar sobre a Carta das Nações Unidas, que foi assinada no dia 26 de junho de 1945. A ONU passou a existir formalmente a partir do dia 24 de outubro de 1945, com sede na cidade de Nova Iorque, EUA.(2) A formatação da Carta das Nações Unidas foi inspirada principalmente pelo EUA, a principal potência ocidental vencedora do conflito mundial e subsidiariamente pelo Reino Unido (RU) e pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).(3) A estrutura adotada levou muito em consideração a experiência pregressa da Liga das Nações, mas com o cuidado de distanciar a nova organização internacional daquela infeliz que a precedeu. Assim, poderes executivos mais substanciais foram alocados ao recém criado Conselho de Seguran- ça, bem como foram contempladas diversas agências especializadas, com o objetivo de promover e sustentar uma ordem global econômica e mundial. Todavia, as premissas básicas da velha ordem persistiram, a saber os conceitos de “soberania dos estados” e de “segurança coletiva”. Por segurança coletiva, deve-se entender os mecanismos adotados pelos membros da ONU com o objetivo de afirmar o princípio da pax est quaerenda e assim obter a manutenção da paz mundial, o principal objetivo da Organização. Esse sistema conferiu ao Conselho de Segurança os poderes bonum faciendum, male vitandum para determinar se há uma ameaça à paz e/ou segurança coletiva e adotar medidas econômicas ou militares contra o Estado agressor. Em retrospectiva, pode-se dizer que o mecanismo de segurança coletiva deixou de funcionar a contento desde os primórdios da criação da ONU, tendo em vista a bipolarização do mundo em dois blocos distintos: o capitalista e o comunista, ambos competindo pela hegemonia. A partir da derrocada da URSS em 1991, o mecanismo de segurança coletiva passou a ser sistematicamente minado pela ação da política externa unilateral dos EUA.
A CARTA DA ONU E SEU CARÁTER CONSTITUCIONAL
A Carta da ONU é não somente a lex maior da Organização, mas o tratado internacional da mais alta hierarquia, por tê-la afirmada intrinsecamente no sentido de que “no evento de um conflito4 entre as obrigações dos Membros das Nações Unidas sob a presente Carta e suas obrigações sob qualquer outro tratado internacional, prevalecerão suas obrigações sob a presente Carta”.(5) A Carta é também universal, já que firmada pelos 191 membros atuais da ONU. Igualmente, a Carta da ONU oferece um mecanismo para o desenvolvimento do direito internacional, qual seja mediante o consenso obtido na Assembléia Geral, sobre a qual trataremos mais adiante, no item pertinente aos órgãos da Organização. Os propósitos da ONU estão elencados no artigo 1 da Carta e são:
a) a manutenção da paz e da segurança internacionais, e para este fim: tomar medidas coletivas efetivas para a prevenção e remoção de ameaças à paz, e para a supressão de atos de agressão ou outras violações da paz, e promover pacificamente e de conformidade com os princípios de justiça e direito internacional, a solução de disputas internacionais ou de situações que possam levar a uma violação da paz;
b) desenvolver relações amistosas entre nações baseadas no respeito aos princípios de isonomia e auto-determinação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas para o fortalecimento da paz universal;
c) catalisar a cooperação internacional na solução de problemas de caráter social, cultural ou humanitário, e promover e encorajar o respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; e
d) configurar um centro para a harmonização das ações nacionais na persecução dos objetivos comuns.(6)
O artigo 2 da Carta da ONU estabelece quais são os fundamentos operacionais da Organização, dentre os quais encontra-se o cânone no sentido que o tratado não está sujeito a reservas ou denúncia. Por outro lado, a Carta reconhece que seus termos não autorizam a ONU a intervir em assuntos que estão dentro da jurisdição soberana interna de seus membros. (7) Exceções expressas a este princípio são as violações do direito internacional, a viola- ção dos direitos de outros Estados, as violações graves de direitos humanos e situações de colonialismo.(8) A Carta afirma o princípio da resolução pacífica das disputas, outorgando ao Conselho de Segurança apósitos poderes para a manutenção da paz(9) . Por outro lado, é expressamente reconhecido o direito à auto-defesa decorrente do princípio vim vi repellere licet, é lícito repelir a violência com a violência.(10) A Carta da ONU tem dado inúmeros problemas de interpretação, devido ao fato de haver sido redigida por políticos e diplomatas e não por advogados, sendo vaga, imprecisa e, às vezes, dúbia. Nas palavras de Peter Malanczuk, “não é nenhum exagero afirmar que toda a história da ONU tem sido uma série de disputas sobre a correta interpretação da Carta”.(11)O método de interpretação utilizado com maior freqüência é o da literalidade, de acordo com o qual as palavras são interpretadas no sentido semântico, ou léxico ordinário. Há, evidentemente, outros métodos de exegese, muito menos utilizados, inclusive o histórico, que se baseia nos trabalhos preparatórios e negociações. A afiliação à ONU é tratada pelo capítulo II da Carta. Além dos membros originais, a afiliação é aberta a todos os Estados. A admissão é aprovada pela Assembléia Geral, após recomendação do Conselho de Segurança.(12) Todavia, durante a Guerra Fria, em 12 ocasiões distintas a admissão de novos Estados foi recusada por motivos políticos. Da mesma maneira, a Assembléia Geral tem poderes para suspender a afiliação de Estados e, na hipótese de violação persistente da Carta, de expulsar um membro.
OS ÓRGÃOS PRINCIPAIS DA ONU
A ONU tem seis órgão principais: a Assembléia Geral, o Conselho de Segurança, o Conselho Econômico e Social, o Conselho Fiduciário, o Secretariado e a Corte Internacional de Justiça.
A ASSEMBLÉIA GERAL DA ONU
A Assembléia Geral da ONU é o órgão parlamentar universal, configurando ao mesmo tempo um foro de debates que exerce autoridade de supervisão e coordenação de todas as agências da Organização. Ela é composta dos membros da ONU,(13) cada qual com um voto.(14) Um quorum qualificado de dois terços é necessário para decisões importantes, que incluem recomendações com respeito à manutenção da paz e da segurança internacionais; a eleição dos membros não permanentes do Conselho de Segurança e dos membros dos outros órgãos da ONU; a suspensão de direitos de afiliação; a expulsão de membros; e questões orçamentárias.(15) A sistemática de um voto por país tem sido criticada por alguns observadores, notadamente nos EUA, porque impede o exercício hegemônico daquele país nas decisões da Assembléia Geral da ONU. O argumento utilizado é que Estados com poucos meios e com pouca população tem um peso igual a Estados poderosos e com grande população. Assim, os norte-americanos usam o argumento de que a China, com um bilhão e trezentos milhões de habitantes tem o mesmo poder na Assembléia Geral que Palau, um Estado com uma população inferior a quinze mil habitantes. Trata-se de um argumento falacioso. O presente sistema de um voto por país tem sido, na ordem multilateral, o único meio mediante o qual os países em desenvolvimento têm podido manifestar sua opinião. De mais a mais, as resoluções da Assembléia Geral, infelizmente, têm caráter não vinculativo(16) e se apresentam apenas como recomendações aos membros e ao Conselho de Segurança.(17) Mesmo o direito de fazer recomendações é limitado.(18) Por seu caráter democrático e representativo, o papel desempenhado pela Assembléia Geral da ONU tem crescido substancialmente com o correr dos anos. Esta crescente importância tem sido reforçada pelo fato de que o número de membros da Organização cresceu consideravelmente desde 1945, passando dos 51 signatários originais aos 191 afiliados de hoje, muitos dos quais ex-colônias. O anacronismo da formatação do Conselho de Segurança e sua ilegitimidade representativa e funcional, que causaram sua perda de credibilidade, igualmente reforçaram a relevância da Assembléia Geral no sistema multilateral. Como resultado, a Assembléia Geral da ONU constituiu uma variedade de organismos como o objetivo de acompanhar um número expressivo de questões de interesse coletivo. Os seus seis principais comitês tratam de desarmamento e segurança coletiva; assuntos financeiros e econômicos; questões culturais, sociais e humanitárias; matérias políticas e atinentes à descolonização; orçamento e administração; e questões jurídicas. A Assembléia Geral criou ainda um número expressivo de comissões ad hoc para tratar de temas específicos, dentre as quais a Comissão de Direito Internacional e a Comissão sobre Direito do Comércio Internacional. Da mesma maneira, a Assembléia Geral da ONU tem prestado um grande serviço à humanidade na área do desenvolvimento do direito internacional, em que desponta a Declaração sobre Princípios de Direito Internacional referentes a Relações Amistosas e Cooperação entre Estados de acordo com a Carta das Nações Unidas.(19) Nesta declaração foram afirmados princípios básicos e subsidiários de direito internacional. Por exemplo, foi estabelecido o princípio de que “os Estados devem se abster em suas relações internacionais da ameaça ou do uso da força contra a integridade territorial ou independência política de qualquer Estado, ou de qualquer outra maneira inconsistente com os propósitos da ONU(20) ”. Subsidiariamente, foi afirmado que “uma guerra de agressão configura um crime contra a paz, o qual é sancionado pelo direito internacional”.(21)
O CONSELHO DE SEGURANÇA
O Conselho de Segurança da ONU foi concebido pela Carta como o poder executivo da Organização, cabendo-lhe a responsabilidade primária pela manutenção da paz e segurança internacionais.(22) Por sua vez, os membros da ONU acordaram em aceitar as decisões do Conselho de Segurança, nos termos da Carta.(23) O Conselho de Segurança é composto por 15 membros da ONU, dos quais 5 são membros permanentes: a República Popular da China, a Federação Russa, a República Francesa, o Reino Unido e os EUA.(24) A Assembléia Geral elege os 10 outros membros por um período de 2 anos.(25) Dos 10 membros não permanentes, é convencionado que 5 sejam reservados para os países Afro-Asiáticos, 1 para a Europa Oriental, 2 para a América Latina e dois para a Europa Ocidental e outros poderes.(26) Cada membro do Conselho de Segurança tem direito a um voto.(27) Os 5 membros permanentes do Conselho de Segurança tem o chamado poder de veto, ex vi do dispositivo que requer o seu voto afirmativo para a tomada de deci- sões.(28) O Conselho de Segurança está organizado de maneira a funcionar continuamente. Dessa forma, todos os membros do Conselho de Segurança devem estar permanentemente representados na sede da Organização.(29) As regras procedimentais do Conselho de Segurança são de incumbência do próprio órgão.(30) A formatação do Conselho de Segurança atendeu à realidade geo-política do final da Segunda Grande Guerra Mundial, colocando as principais potências vencedoras nos postos permanentes e com poder de veto no órgão executivo da ONU. Registra a história que o então presidente norte-americano, Franklin D. Roosevelt, teria sugerido o Brasil para integrar a relação, proposta vetada pelo então primeiro-ministro inglês, Winston Churchill, que considerava o país um estado cliente dos EUA. Se a sistemática então adotada fazia algum sentido no pós-guerra, rapidamente esta lógica limitada desapareceu com a transformação da ONU de uma organização multilateral de aliados de guerra num órgão de cooperação internacional. Outra razão para o rápido anacronismo do instituto foi o célere retorno das potências vencidas no conflito para o âmbito da cooperação internacional, como atores de grande peso no cenário político e econômico internacional. De fato, a Alemanha demonstrou não somente uma grande recuperação econômica, mas seus esforços de cooperação internacional da iniciativa que é hoje a União Européia (UE) foram não apenas notáveis, como decisivos. Por sua vez, o Japão tornou-se uma potência econômica ao mesmo tempo que um membro solidário e responsável da comunidade das nações. Até mesmo a Itália apresentou importantes progressos, mas certamente num patamar bem abaixo de Alemanha e Japão. Da mesma forma, nas seis décadas que se seguiram à Conferência de São Francisco, verificou-se inicialmente um movimento de descolonização, para em seguida dar-se um notável progresso econômico e social em nações outrora submetidas aos grilhões do imperialismo colonial, como foi por exemplo o caso da Índia. No continente africano, houve a generalizada independência nacional, de um lado, e de outro a democratização nacional, como no caso da República da África do Sul, que se livrou do abominável regime ditatorial racista do apartheid. Na América Latina, constatou-se um substancial crescimento econômico, desenvolvimento social e grande amadurecimento político, com a consolidação das democracias, amadurecimento do estado de direito e das liberdades individuais e coletivas. Essas transformações, com o conseqüente aumento dos membros da ONU, comprometeram irremediavelmente a representatividade da composição original do Conselho de Segurança. Por outro lado, desapareceu do cenário internacional o conflito denominado guerra fria, o que fez diminuir as tensões geo-políticas. Mais ainda, se por um lado constata-se o expressivo crescimento político e econômico da República Popular da China, por outro verifica- se a marcada decadência relativa do Reino Unido e da França, tanto relativamente à economia mundial, quanto comparativamente ao próprio significado da UE, hoje com nada menos de 25 Estados Membros e com uma marcada vocação de maior crescimento. É de se observar ainda que a política externa unilateral de países como os EUA e o Reino Unido entrou em direto conflito com os cânones do regime legal multilateral, tendo comprometido irremediavelmente a liderança ética, social e política daquelas potências no cenário internacional. Esse vácuo de liderança ética, social e política tem sido rapidamente preenchido pela diplomacia das forças emergentes das relações internacionais, vindas não somente dos países em desenvolvimento como o Brasil, África do Sul, China e Índia, mas como de países desenvolvidos que figuravam dentre as potências derrotadas na Segunda Guerra Mundial, como a Alemanha e o Japão, e ainda da França, país que figurava dentre as potências aliadas naquele conflito.
O CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL
Grande parte do trabalho desenvolvido pela ONU nas áreas econômica e social é de incumbência do Conselho Econômico e Social, um de seus órgãos principais. O Conselho Econômico e Social é constituído por 54 membros eleitos pela Assembléia Geral,(31) por um período de 3 anos.(32) Ele tem a capacidade de deliberar, por maioria simples,(33) sobre uma gama variada de matérias, incluindo direitos humanos e liberdades fundamentais,(34) contudo seus poderes são limitados e suas recomendações não são mandatórias ou vinculativas aos membros da ONU. O Conselho Econômico e Social poderá iniciar ou promover estudos sobre assuntos vários, fazer recomendações à Assembléia Geral, aos membros da ONU e suas agências especializadas.(35) Ele poderá ainda preparar minutas de convenções a respeito das áreas de sua competência,(36) bem como convocar conferências internacionais.(37) Da mesma maneira, mediante requisição de outros órgãos da ONU, o Conselho Econômico e Social poderá prestar- lhes serviços nas matérias de sua especialização.(38) Na sua atuação prática, O Conselho Econômico e Social conduz uma ampla variedade de programas, incluindo o Programa do Meio Ambiente e o Programa de Controle a Drogas. Ele ainda criou alguns outros organismos especializados, como o Alto Comissariado Das Nações Unidas para os Refugiados e a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento. Como resultado, grande parte das conquistas da ONU, nestes quase 60 anos de existência, é devida à atuação direta e indireta do Conselho Econômico e Social.
O CONSELHO FIDUCIÁRIO
O Conselho Fiduciário da ONU sucedeu a Comissão de Mandatos da Liga das Nações. Seu propósito foi o de supervisionar a administração dos territórios fiduciários criados após a Segunda Guerra Mundial e que consistiam em áreas subtraídas às potências inimigas ao final do conflito.(39) Da mesma forma, outras áreas foram submetidas ao sistema de mandato sob a égide do Conselho Fiduciário, como territórios coloniais de potências inimigas. Os objetivos do sistema de mandatos eram o de promover a paz e a segurança internacionais, promover o desenvolvimento político, social, econômico e educacional dos habitantes dos territórios fiduciários até a obtenção da respectiva independência.(40) Com a independência, em 1994 de Palau, o último território fiduciário remanescente, o Conselho Fiduciários suspendeu suas operações em novembro daquele ano. Tais atividades, contudo, poderão ser retomadas pela Organização a qualquer momento em que forem julgadas necessárias.
O SECRETARIADO
O Secretariado da ONU compreende o Secretário-Geral, o principal administrador da Organização, e mais o pessoal necessário ao desempenho de suas atividades. O Secretário- Geral é nomeado pela Assembléia Geral, mediante recomendação do Conselho de Segurança, (41) por um termo renovável de 5 anos. O pessoal administrativo contratado é selecionado com base na eficiência, competência e integridade, tomada em consideração a importância de sua diversidade geográfica.(42) A Carta procura assegurar e zelar pela independência do Secretário-Geral da ONU ao determinar que, no desempenho de seus deveres, os quadros do Secretariado não deverão buscar ou receber instruções de qualquer governo ou outra autoridade externa à Organização(43) . O Secretário-Geral deverá atuar nesta capacidade em todos as reuniões da Assembléia Geral, do Conselho de Segurança, do Conselho Econômico e Social e do Conselho Fiduciário, desempenhando as funções a ele delegadas por estes órgãos(44) . Mais ainda, o Secretário-Geral poderá trazer à atenção do Conselho de Segurança qualquer questão que, em sua opinião, possa ameaçar a manutenção da paz e da segurança internacionais.(45)
A CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA
A Carta da ONU afirma a Corte Internacional de Justiça como o principal órgão judicial da Organização.(46) A Carta da ONU traz como anexo os Estatutos da Corte Internacional de Justiça (Estatutos) como parte integrante daquele tratado. Todos os membros da ONU são ipso facto partes dos Estatutos, para os fins de direito,(47) inclusive quanto à obrigatoriedade do cumprimento das decisões da Corte Internacional de Justiça em que forem parte.(48) A Assembléia Geral, o Conselho de Segurança, bem como qualquer outro órgão ou agência especializada da ONU, poderão solicitar pareceres consultivos à Corte Internacional de Justiça. (49) Os esforços para a criação de um tribunal mundial para a comunidade internacional desenvolveram-se originalmente como resultado das conferências de Haia. Como corolário do Tratado da Liga das Nações, foi criada a Corte Permanente Internacional de Justiça, em 1920, tendo iniciado trabalhos em Haia em 1922. Entre 1922 e 1939, a Corte Permanente examinou 79 casos, até que viesse a ser extinta, juntamente com a Liga das Nações, em 1946. Ela foi sucedida pela Corte Internacional de Justiça. A Corte Internacional de Justiça é composta por 15 juízes de diferentes nacionalidades, (50) nomeados por grupos nacionais(51) e que tenham alto caráter moral, qualificações nacionais para indicação ao mais alto tribunal, ou que sejam juristas de reconhecida competência em direito internacional.(52) De acordo com um entendimento oficioso no âmbito da ONU, a distribuição dos juizes por critérios regionais é a seguinte: África: 3; Ásia: 3; América Latina: 2; Europa Oriental: 2; Europa Ocidental e outros: 5. De uma maneira geral, os 5 membros permanentes do Conselho de Segurança estão representados dentre as nacionalidades dos juizes, que são eleitos por um período de 9 anos, podendo ser reeleitos(53) . Há regras absolutas de conflito de interesses para os juizes, impedindo que atuem em casos em que tenha participado como agente, consultor ou advogado, ou ainda como árbitro ou juiz nacional.(54) Os juizes da Corte Internacional de Justiça têm estabilidade funcional garantida(55) e usufruem dos privilégios e das imunidades diplomáticas.(56) A Corte tem um presidente e um vice presidente, eleitos com um mandato de três anos, pelos próprios juízes.(57) Os casos são conduzidos e julgados no idioma inglês ou no francês(58) e são decididos por maioria de votos dos juizes. Se necessário, o presidente terá um voto adicional desempatador, o chamado voto de Minerva. Os casos poderão ser apreciados pelo tribunal pleno, com quorum mínimo de 9 juizes, ou por câmaras compostas de 3 ou 5 juizes.(59) Juizes da nacionalidade das partes num dado caso tem o direito de participar do julgamento.(60) Se este não for o caso, as partes poderão escolher um juiz,(61) regra que tem sido objeto de importantes críticas nos meios jurídicos internacionais, por potencialmente comprometer a própria independência da Corte Internacional de Justiça. A lei aplicável pela Corte Internacional de Justiça é o direito internacional. Dessa maneira, os Estatutos(62) definem as fontes da lei internacional, em ordem hierárquica, da seguinte maneira:
a) os tratados internacionais criando regras expressamente reconhecidas pelos Estados envolvidos numa dada disputa;
b) os costumes internacionais, como evidência de uma prática generalizada aceita como direito;
c) os princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas; e
d) sujeito às limitações quanto ao campo de abrangência,(63) as decisões da Corte e a doutrina internacional de escol.
Caso as partes concordem a Corte poderá julgar as disputas ex aequo et bono, de acordo com a equidade.(64) Somente Estados têm locus standi, podem ser partes, nas disputas submetidas à Corte Internacional de Justiça,(65) que está acessível a todos os Estados membros da ONU.(66) Estados não membros da ONU poderão aderir aos Estatutos,(67) desde que aceitas as condições da Assembléia Geral, o que ocorreu por exemplo com a Suíça, antes do país aceder à Organização. A jurisdição da Corte Internacional de Justiça(68) compreende todos os casos que lhe forem submetidos à apreciação e todas as matérias especialmente objeto da Carta da ONU ou em quaisquer tratados internacionais em vigor.(69) No entanto, lamentavelmente, a jurisdição não tem automaticidade, já que faz-se necessário o consentimento prévio dos Estados para casos contenciosos envolvendo a interpretação de um tratado; qualquer quaestio iuris, questão de direito internacional; quaestio facti, questões de fato, que podem constituir uma violação de obrigação internacional; e reparações conseqüentes.(70) Este consentimento poderá ser formulado incondicional ou condicionalmente à reciprocidade,(71) mediante declarações a serem depositadas com o Secretário Geral da ONU.(72) Qualquer questão preliminar envolvendo sua jurisdição será decidida pela própria Corte Internacional de Justiça.73 Um Estado não diretamente envolvido numa dada disputa poderá intervir no processo, se tiver um legítimo interesse no caso.(74) Em princípio, a Corte Internacional de Justiça poderá decretar medidas cautelares,(75) mas o histórico de cumprimento destas decisões pelas partes afetadas é pobre. O conceito de revelia é aceito no âmbi- to da jurisdição da Corte Internacional de Justiça.(76) A Corte opera em grau único de jurisdição e suas decisões são aplicáveis somente às partes envolvidas num dado caso,(77) o que significa que sua jurisprudência não cria leis nem direito. Para além da jurisdição contenciosa, os Estatutos contemplam a possibilidade de a Corte Internacional de Justiça dar pareceres consultivos sobre qualquer questão legal, de acordo com solicitação formulada em conformidade com a Carta da ONU,(78) que expressamente sobre a questão das opiniões.(79) Os pareceres ou opiniões consultivas da Corte não tem efeito vinculante ou eficácia direta, não podendo ser objeto de execução específica, mas constituem fonte de direito internacional,(80) não podendo por conseguinte serem considerados flatus vocis, sopro de voz. Até hoje, a Corte Internacional de Justiça emitiu 25 pareceres, o último dos quais declarando a ilegalidade do muro construído por Israel no território palestino, adotado por 14 votos a 1. De um modo geral, os pareceres têm sido observados pelos países implicados. Há, no entanto, duas notáveis exceções: o da ocupação ilegal da Namíbia pelo regime racista da África do Sul e o da contestação ilegal da situação fronteiriça com o Chile, pela ditadura castrense da Argentina. Tendo Israel anunciado que não aceita o parecer sobre o caso do muro, o país entrará no rol dos inadimplentes internacionais.
A REFORMA DA ONU
Vimos que a estrutura da ONU, criada no final da Segunda Grande Guerra Mundial, e já com quase 60 anos, padece do vício de sério anacronismo, face à realidade geo-política mundial de hoje. Igualmente, a formatação atual da ONU sofre de falta de legitimidade democrática, pela falta de poderes adequados por parte da Assembléia Geral, e por poderes desmesurados conferidos a alguns pouco representativos membros permanentes do Conselho de Segurança. Da mesma maneira, verificamos que as decisões da Corte Internacional de Justiça não têm eficácia específica. Por conseguinte, a ONU ficou vítima de países que, como os EUA, se locupletam do anacronismo da estrutura para impedir o desenvolvimento do direito multilateral e de promover a subversão da ordem internacional para a condução de uma política hegemônica, que atende exclusivamente aos seus percebidos interesses domésticos, em detrimento do interesse coletivo. Dessa maneira, impõe-se uma ampla reforma estrutural na ONU. Todavia, sua implementação é difícil devido às dificuldades de consenso e ao desinteresse de alguns Estados que se beneficiam da presente ataxia da ordem internacional. Desde 1992, por iniciativa do então Secretário Geral, Sr. Boutros-Gali, busca-se promover a necessária reforma, tendo o Brasil participado ativamente das negociações, com uma pauta própria de reivindicações. Para além das reformas estruturais, também contempla-se reformas operacionais, no tocante aos trabalhos de algumas agências, bem como uma racionalização da vital questão das contribuições financeiras. Devido à ampla desmoralização da presente estrutura da ONU, a falta de uma profunda reforma poderá levar ao ocaso da Organização, ou ainda a uma cisão política. O futuro dirá.
1 Anteriormente a essa iniciativa, os Estados apenas criaram agências internacionais para cooperação em áreas específicas, como no caso da União Internacional de Telecomunicações, criada em 1865, e da União Postal Universal, estabelecida em 1874. Ambas ainda existem hoje como agências especializadas da Organização das Nações Unidas.
2 Com 51 membros originais.
3 Hoje Federação Russa, após o Tratado de Alma Ata de 1991.
4 A respeito da questão de conflito de tratados no direito internacional, V. por Durval de Noronha Goyos, “Arbitration in the WTO”, Legal Observer, Miami, 2003, page 15 et seq.
5 Artigo 103 da Carta da Organização das Nações Unidas. Tradução do inglês feita pelo Autor.
6 Artigo 1 da Carta da Organização das Nações Unidas. Tradução do inglês feita pelo Autor.
7 Artigo 2.7 da Carta da Organização das Nações Unidas.
8 V. nota 5 ut supra.
9 Artigos 33, 36 e 37 da Carta da Organização das Nações Unidas.
10 Artigo 51 da Carta da Organização das Nações Unidas.
11 Peter Malanczuk, “Modern Introduction to International Law”, Routledge, Londres, 7a. edição, 1997. Tradução pelo Autor.
12 Artigo 4 da Carta da Organização das Nações Unidas.
13 Artigo 9.1 da Carta da Organização das Nações Unidas.
14 Artigo 18.1 da Carta da Organização das Nações Unidas.
15 Artigo 18.2 da Carta da Organização das Nações Unidas.
16 V. neste sentido, para este e outros fundamentos básicos do direito internacional, Durval de Noronha Goyos in “Ensaios sobre Direito Internacional”, Obs. Legal Editora, São Paulo, 2000, página 101 et. seq.
17 V. inter alia artigos 10, 11.1, 13, 14 e 17.3 da Carta da Organização das Nações Unidas.
18 Conforme o disposto no artigo 12.1 da Carta da Organização das Nações Unidas, a Assembléia Geral não poderá fazer recomendações com respeito a questões sob exame do Conselho de Segurança.
19 Anexa à Resolução 2625 (XXV).
20 Tradução do inglês pelo Autor.
21 Tradução do inglês pelo Autor.
22 Artigo 24.1 da Carta da Organização das Nações Unidas.
23 Artigo 25 da Carta da Organização das Nações Unidas.
24 Artigo 23.1 da Carta da Organização das Nações Unidas.
25 Artigo 23.2 da Carta da Organização das Nações Unidas.
26 Resolução 1991 da Assembléia Geral da ONU (XVIII).
27 Artigo 27.1 da Carta da Organização das Nações Unidas.
28 Artigo 27.2 da Carta da Organização das Nações Unidas.
29 Artigo 28.1 da Carta da Organização das Nações Unidas
30 Artigo 30 da Carta da Organização das Nações Unidas.
31 Artigo 61.1 da Carta da Organização das Nações Unidas.
32 Artigo 61.2 da Carta da Organização das Nações Unidas.
33 Artigo 67.2 da Carta da Organização das Nações Unidas.
34 Artigo 62.2 da Carta da Organização das Nações Unidas.
35 Artigo 62.1 da Carta da Organização das Nações Unidas.
36 Artigo 62.3 da Carta da Organização das Nações Unidas.
37 Artigo 62.4 da Carta da Organização das Nações Unidas.
38 Artigo 66.2 da Carta da Organização das Nações Unidas.
39 Artigo 77.1 da Carta da Organização das Nações Unidas.
40 Artigo 76 da Carta da Organização das Nações Unidas.
41 Artigo 97 da Carta da Organização das Nações Unidas.
42 Artigo 101.3 da Carta da Organização das Nações Unidas.
43 Artigo 100.1 da Carta da Organização das Nações Unidas.
44 Artigo 98 da Carta da Organização das Nações Unidas.
45 Artigo 99 da Carta da Organização das Nações Unidas.
46 Artigo 92 da Carta da Organização das Nações Unidas.
47 Artigo 93.1 da Carta da Organização das Nações Unidas.
48 Artigo 94.1 da Carta da Organização das Nações Unidas.
49 Artigo 96 da Carta da Organização das Nações Unidas.
50 Artigo 3.1 dos Estatutos.
51 Artigo 4.1 dos Estatutos.
52 Artigo 2 dos Estatutos.
53 Artigo 13.1 dos Estatutos.
54 Artigo 17.1 e 17.2 dos Estatutos.
55 Artigo 18.1 dos Estatutos.
56 Artigo 19 dos Estatutos.
57 Artigo 21.1 dos Estatutos.
58 Artigo 39.1 dos Estatutos.
59 V. Artigos 26, 27 e 29 dos Estatudos.
60 Artigo 31.1 dos Estatutos.
61 Artigo 31.2 e 31.3 dos Estatutos.
62 Artigo 38.1 dos Estatutos.
63 A doutrina stare decisis, ou sumula vinculante, por conseguinte, não é aplicável no direito internacional. Os tribunais internacionais e a própria Corte, por conseguinte, não podem criar leis internacionais. As decisões da Corte só se aplicam aos Estados envolvidos na disputa particular que lhes deram ensejo, ex vi do artigo 59 dos Estatutos. V. nota 75 infra.
64 Artigo 38.2 dos Estatutos.
65 Artigo 34.1 dos Estatutos.
66 Artigo 35.1 dos Estatutos.
67 Artigo 93 da Carta da Organização das Nações Unidas.
68 Sobre a questão da jurisdição da Corte Internacional e Justiça e sobre o conflito de leis, V., por Durval de Noronha Goyos, V. “Ensaios de Direito Internacional”, op. cit.
69 Artigo 36.1 dos Estatutos.
70 Artigo 36.2 dos Estatutos.
71 Artigo 36.3 dos Estatutos.
72 Artigo 36.4 dos Estatutos.
73 Artigo 36.6 dos Estatutos.
74 Artigo 62 e 63 dos Estatutos.
75 Artigo 41.1 dos Estatutos.
76 Artigo 53.1 dos Estatutos
77 Artigo 59 dos Estatutos.
78 Artigo 65.1 dos Estatutos.
79 Artigo 96.1 da Carta da Organização das Nações Unidas.
80 Artigo 38.1 “d” dos Estatutos. V. nota 78 supra. 1 MENDONÇA. E. P. O mundo precisa de filosofia, 8 ed. Rio de Janeiro: Agir, 1987, p. 110.