OMC: A Constitucionalização do Direito Internacional ou a Normatização da Tirania?

Texto básico da conferência proferida em Buenos Aires, República Argentina, no dia 13 de junho de 2002, por ocasião do seminário ” Io. Encuentro sobre Inmunidades Diplomaticas en el Derecho Laboral”, pela Sociedad Argentina de Derecho Laboral.

É sabido que, enquanto o direito nacional ocupa-se dos direitos e obrigações das pessoas físicas e jurídicas, dentro de um dado ordenamento jurídico doméstico ou municipal atinente a um Estado, o direito internacional, por sua vez, de acordo com sua concepção tradicional, trata dos direitos e deveres dos Estados. Assim, o direito nacional derivaria duma estrutura jurídica reconhecida pela Constituição, promulgada por um Poder Constituinte legítimo, e com poderes e autoridade para fazer e aplicar as leis que o criam. Por outro lado, ao direito internacional faltaria o ente superior e o Poder Constituinte, pelo que sua abrangência seria restrita às regras e princípios que regulam as relações internacionais entre estados soberanos e outras instituições sujeitas às normas transnacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) (3).

Hans Kelsen propôs, no início do século passado, uma nova concepção segundo a qual o sistema jurídico internacional devesse ser concebido como a fonte suprema de toda formação e constituição jurídica nacional. Segundo ele, os limites do estado-nação criariam obstáculos intransponíveis à realização da idéia de direito. Kelsen buscava uma organização da humanidade de tal maneira que “os Estados individuais possam ser vistos juridicamente como entidades de igual categoria” e um “Estado mundial e universal” possa ser formado, organizado como “comunidade universal superior aos Estados individuais, envolvendo-os a todos como uma capa.” (4)

Desde uma perspectiva de política de relações internacionais, a construção legal teórica, e fundamentalmente utópica de Kelsen, do direito internacional, foi cooptada para a estruturação da chamada nova ordem jurídica internacional criada após a segunda grande guerra mundial, de tal maneira a assegurar a hegemonia internacional dos principais estados vencedores daquele conflito, e principalmente aquela dos Estados Unidos da América (EUA). De fato, os EUA tiveram uma participação decisiva na formatação de todos os organismos e/ou tratados internacionais criados na ocasião, sendo que naqueles de perfil econômico, como o do Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), detinham o controle absoluto do sistema. Na ONU, o mecanismo do Conselho de Segurança, situado acima da Assembléia Geral, conferiu o poder de veto às principais potências vencedoras do referido conflito, e assim solapou os princípios democráticos na ordem internacional.

Desta maneira, a formatação jurídica da nova ordem mundial do pós-guerra coexistiu ao lado da teoria do realismo nas relações internacionais, mediante a qual os estados hegemônicos deveriam agir puramente no interesse próprio e com o objetivo único da perseguição de segurança política e militar. O “desafio realista” impunha o corolário do desprezo à ordem jurídica internacional, condenada a um papel periférico e ocasional na regulação das relações internacionais. O estado-nação com intenções de atingir uma posição hegemônica procurava assegurar sua segurança nacional mediante a projeção do conceito de soberania a um território maior ou ao acesso a recursos naturais e/ou matérias primas. O advento do poderio nuclear, numa primeira fase, e o colapso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), numa segunda, vieram a alterar a doutrina de segurança nacional dos EUA, de tal maneira que esta passou a ser concebida como a promoção do interesse econômico nacional no sentido mais amplo possível. Outros Estados seguiram-lhe o exemplo.

A consecução de tal objetivo dependia do chamado jogo de soma zero, no qual o ganho econômico ou comercial de um Estado representa uma perda equivalente de outro. Dependia, ainda, duma ordem jurídica supranacional, que obrigasse os Estados Presa, a generalidade dos países em desenvolvimento, a adotar uma estrutural legal, comercial e econômica, nos seus ordenamentos jurídicos de direito municipal, que permitisse aos Estados Predadores, o núcleo central de países desenvolvidos, a obtenção do maior número possível de vantagens. Por outro lado, esta mesma ordem jurídica econômica supranacional deveria poder sancionar os Estados Presa, mas ao mesmo tempo permitir uma exceção aos Estados Predadores. A justificar a regra, foi desenvolvido o conceito da “obsolescência da soberania”, ou a substituição do princípio da não interferência nos assuntos internos de um país por outro pelo conceito de jurisdição universal (5). A contrário senso, a fundamentar a exceção foi criada, nos EUA, uma “nonpolicy” (6) no sentido de sustentar a superioridade da norma interna sobre os tratados internacionais, negando-lhes vigência naquilo que não fosse de seu interesse (7).

Impunha-se, assim, nas palavras de Hardt e Negri (8), “um aperfeiçoamento do imperialismo, com uma nova noção de direito, um novo registro de autoridade e um projeto original de produção de normas e de instrumentos legais de coerção”. A oportunidade apresentou-se com a Rodada Uruguai do GATT que, lançada em 1986, encontrava-se em situação de impasse quando do colapso da URSS e do muro de Berlim, por força de desavenças no rumo estratégico das negociações entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento. Queriam estes a inclusão no sistema multilateral de comércio das áreas econômicas tradicionais da agricultura e dos produtos têxteis, enquanto aqueles demandavam a ampliação do sistema para compreender as chamadas áreas novas, dentre as quais serviços, investimentos e tecnologia, que passaram a ser as mais importantes atividades para seus agentes. Somente o setor de serviços representava cerca de 70% das economias dos países desenvolvidos e um maior volume financeiro global do que as áreas tradicionais de comércio de mercadorias.

Sucumbiram os países em desenvolvimento em face ao deus Mamon da globalização, não sem a indução decisiva da desestabilização incitada pelos EUA e articulada com as agências multilaterais de crédito, para aceitar a imposição do novo sistema multilateral econômico implantado com os chamados Tratados de Marraqueche (9) e com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1995. Este aperfeiçoamento do sistema multilateral, nos moldes impostos pelos EUA e EU (10), importou na criação de regras globais para o comércio de mercadorias, e medidas correlatas; investimentos; tecnologia; políticas fiscais; e serviços, compreendendo aqueles financeiros, securitários e profissionais, dentre outros. Importou ainda na edificação de um eficaz sistema de sanções, destinado a punir infrações às novas normas. Por último, o aperfeiçoamento da eficácia da ação do sistema multilateral por parte dos Estados Predadores importou na manutenção de sua aceitação seletiva de suas normas, de modo a resultar no seu benefício do sistema, sem a necessária contrapartida da submissão a ele, através da manutenção de lacunas não colmadas e da aceitação tácita da “nonpolicy” da supremacia da lei interna.

Já ao cabo da Rodada Uruguai, o próprio Banco Mundial bem como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) apontavam os países em desenvolvimento como perdedores da ronda de negociações. Segundo uma ominosa análise do Banco Mundial, datada de 1993, os resultados da Rodada Uruguai beneficiariam em 64% os países desenvolvidos, contra 36% para os países em desenvolvimento (11). A realidade provar-se-ia muito pior. De acordo com um recente estudo do FMI, os países desenvolvidos ficaram com 73% dos benefícios durante os subseqüentes 6 anos de vigência da OMC, contra um montante de apenas 27% para os países em desenvolvimento.

No setor de serviços, os benefícios decorrentes da ordem jurídica da OMC couberam, quase que na totalidade, aos países desenvolvidos, que se aproveitaram também da combinação de um regime mais favorável nas áreas de investimentos (Acordo Trims). Assim, desde a fundação da OMC, em 1995, as exportações de serviços dos EUA cresceram aproximadamente 10%

Ao ano; as do Reino Unido, 7%; as da França, 5.7%; e as do Japão, 4.8%. Por sua vez, as exportações de serviços do Brasil e Argentina cresceram aproximadamente 0.6% ao ano; as do México, 0.9%; as da Índia, 1.2%; e as da África do Sul, 0.3%. Como resultado, os EUA, a União Européia (UE) e o Japão tem sós, aproximadamente 70% do volume total mundial da exportação de serviços, segundo dados da própria OMC, com forte tendência de crescimento, como já vimos.

Esta trágica dicotomia do processo de globalização, ou a insularização da prosperidade num oceano de miséria, tem sido reconhecida universalmente. O insuspeito Henry Kissinger observou que “apenas talvez 20% das economias dos países em desenvolvimento venham a se tornar parte do sistema internacional, tipicamente como componentes de grandes empresas multinacionais. O restante, e talvez a maioria de suas populações, poderia ser relegada sem acesso a renda, empregos e oportunidade geradas pela globalização” (12).

Desta maneira, o aprofundamento da espoliação dos miseráveis pelos poderosos exigiu uma formatação jurídica em que o desejo de hegemonia não mais conflita com o processo de constitucionalização do direito internacional, desde que este último possa ser aplicado seletivamente e esteja, na hierarquia das normas, abaixo do ordenamento jurídico de direito doméstico dos países hegemônicos. Esta plataforma jurídica tem sido implantada no âmbito da OMC, no qual estão em andamento as negociações de uma nova ronda de negociações, denominada Rodada Doha de Desenvolvimento, na qual os países desenvolvidos, no afã do aperfeiçoar dos sistema, procurarão incluir as novas áreas dos critérios trabalhistas e ambientais, direito de competição e compras governamentais. Além disso, procurarão aperfeiçoar as normas de investimentos, práticas comerciais, tecnologia e, principalmente, o sistema de resolução de disputas. Tudo isto, é claro, sem abrir mão dos privilégios dos subsídios agrícolas, das barreiras horizontais ao movimento de prestadores de serviços e do unilateralismo.

O vil garrote não pára de estrangular!

Senhoras e Senhores, muito obrigado!

NOTAS

(1) Texto básico da conferência proferida em Buenos Aires, República Argentina, no dia 13 de junho de 2002, por ocasião do seminário ” Io. Encuentro sobre Inmunidades Diplomaticas en el Derecho Laboral”, pela Sociedad Argentina de Derecho Laboral.

(2) Advogado qualificado no Brasil, Inglaterra e Portugal. Sócio principal de Noronha-Advogados. Árbitro do GATT e da OMC. Autor de “A OMC e os Tratados da Rodada Uruguai”. Professor de pós-graduação de direito do comércio internacional.

(3) V. por Martin Dixon, “Textbook on International Law”, Blackstone Press Limited, Londres, 3a. edição, página 2.

(4) V., por Michael Hardt e Antonio Negri, “Império”, Editora Record, Rio de Janeiro, 2a. edição, 2001, página 23.

(5) V. Henry Kissinger, “Does America Need a Foreign Policy?”, Simon & Schuster, New York, 2001, página 21.

(6) V. Claude E. Barfield, “Free Trade, Sovereignty, Democracy”, AEI Press, Washington, D.C., 2001, página 133.

(7) V., por Durval de Noronha Goyos jr., “Ensaios de Direito Internacional”, Obs. Legal Editora, São Paulo, 2000, página 303 et. Seq.

(8) Op. Cit., página 23.

(9) Para uma análise sistemática do tema, V., por Durval de Noronha Goyos jr., “A OMC E OS TRATADOS DA RODADA URUGUAI”, Editora Observador Legal, São Paulo, 1995.

(10) Algumas vezes, a imposição dos critérios é referida nos escritos jurídicos com o eufemismo “forte influência”. Neste sentido, V. Ernest-Ulrich Petersmann, em “Constitucionalism and WTO Law..”, em The Political Economy of International Trade Law”, Cambridge University Press, 2002, página 33.

(11) V. Ian Golding et al, “Trade Liberalization: Global Economic Implications”, The World Bank and the OCDE, Washington, 1993.

(12) “Does America Need a Foreign Policy”, op. Cit., página 87.