Os derivativos causaram a crise financeira

Publicado na Coluna Semanal do Dr. Noronha a convite do sítio “Última Instância – Revista Jurídica”, São Paulo, Brasil, 03 de dezembro de 2008.

A experiência ensina que homens e governos jamais aprenderam nada da história. F. Hegel

São Paulo – Não se escapa impunemente do desprezo às lições da História, como mais uma vez resultou demonstrado pela crise financeira de 2008. De fato, governos, entidades financeiras, meios de imprensa, investidores, dentre outros agentes, durante as últimas duas décadas, ignoraram que o uso irresponsável dos chamados derivativos foi o fator causador da crise financeira de 1929, fator desencadeante da chamada Grande Depressão.

Assim, os chamados mercados financeiros lançaram-se numa insana orgia especulativa sem precedentes na história mundial, ao ponto de, no final de 2007, o total dos valores em contratos de derivativos ter alcançado o valor de aproximadamente US$ 600 trilhões, contra um montante de apenas US$ 80 trilhões em 1998.

Ora, o valor do PIB (Produto Interno Bruto) mundial é de cerca de US$ 50 trilhões; o valor do PIB dos EUA é de US$ 15 trilhões; o valor do PIB brasileiro é de US$ 1.2 trilhão; e o montante do comércio internacional de mercadorias foi, no ano de 2007, de US$ 13.6 trilhões.

Com a contraposição de tais valores, vê-se com nitidez que os valores dos derivativos não apenas deixam de ter qualquer correspondência com a realidade da economia global, como demonstram categoricamente a natureza criminosamente especulativa das respectivas operações, e bem assim a magnitude do problema, que afetará a economia mundial por muitos anos.

Derivativos, em sua origem, eram contratos a criar obrigações futuras constituídas no presente, com o propósito de transferir riscos a terceiros, mediante um custo. Dessa maneira, em sua concepção original, o instrumento dos derivativos era conservador. Fazia-se, por exemplo, a trava (hedge) do câmbio na venda externa para se fixar o preço real. Seus usuários são partes em negócios diversos, intermediários e arbitradores.

A parte vendedora, também chamada short, coloca o risco, assumido pelo comprador, posição denominada long. Os atores periféricos são os intermediários, normalmente banqueiros, auditores, agências de risco e advogados. Os negócios subjacentes aos derivativos eram mercadorias, como metais, grãos, energia; valores imobiliários como ações e títulos; e moedas.

Os tipos básicos de contratos de derivativos são os chamados forward, ou seja, uma compra e venda futura no mercado de balcão; futuro, uma compra e venda numa data futura em bolsa de valores; swap, série de contratos forward ou futuros com vencimentos seqüenciais; e opções de compra (call) ou venda (put).

No entanto, agentes especuladores logo desvirtuaram o propósito do instrumento, inicialmente na década de 1920, como um meio de realização de lucros artificiais, mediante a alavancagem excessiva com baixas margens nos contratos de opção, conforme bem relatou John Kenneth Galbraith em sua clássica obra, “The Great Crash of 1929”. Naquela ocasião, os valores correspondentes dos derivativos face ao mercado imobiliário eram de 66%.

Com o passar dos anos e, notadamente a partir da década de 1980, constatou-se a existência de distorções profundas no uso dos derivativos. Tais desvios eram fundados na ideologia do neoliberalismo, que promovia um capitalismo irresponsável caracterizado pela falta de controle assegurada pela chamada auto-regulação dos mercados, e apresentava o mito de que derivativos criam novas riquezas a serem partilhadas por todos.

Assim, pouco a pouco, os negócios com derivativos desligaram-se de negócios subjacentes e adquiriram um caráter predominantemente especulativo, não apenas nos montantes apostados sem lastro na economia real, bem como nos chamados especulativos exóticos que procuravam legitimar apostas em fatores como clima, risco financeiro, emissões de gases, custo de frete, etc.

Ao final de 2007, os valores dos mercados globais de derivativos indicavam uma alavancagem de 1.000% acima da economia real, ou seja, uma absoluta descaracterização de seus propósitos originais, um risco desmedido e um concerto global de ações criminosas motivadas pela avidez exacerbada e levadas a efeito por especuladores diversos, dentre os quais instituições financeiras de aparente respeitabilidade.

Tais operações criaram uma prosperidade artificial nos países desenvolvidos, notadamente nos EUA (Estados Unidos da América) e no Reino Unido, uma enorme bolha econômica, pela falta de consistência e irrealismo. Tais países sofrerão, por muitos anos, os efeitos desse desastre e, sem dúvida, tentarão passar o custo para os países em desenvolvimento.

Todavia, mesmo dentre esses últimos, tivemos algumas aberrações no mercado de derivativos, inclusive no Brasil, onde ocorreram principalmente da área de câmbio, setor já marcado pelo artificialismo caracterizado na atuação do Banco Central como autoridade monetária e, ao mesmo tempo, como especulador no mercado futuro (sic).

Grande parte dos produtos derivativos de câmbio apresentados ao público investidor apresentaram graves falhas no sentido da criação de riscos unilaterais e onerosidade excessiva potencial a apenas um dos lados, trouxeram, e ainda trarão, grandes perdas, de um lado, e grandes lucros, de outro.

De nossa parte, urge, na proteção do interesse público, uma maior e mais abrangente regulamentação dos derivativos e a obrigatoriedade de seu registro prévio, quanto à natureza do produto e montantes de cada emissão, na CVM (Comissão de Valores Mobiliários). No âmbito externo, deve o Brasil procurar promover as mesmas ações e a uniformização de conceitos num quadro de desenvolvimento de direito internacional.