Resenha sobre o último livro de Durval de Noronha Goyos Jr. e Wanda La Selva; O Escudeiro de São Jorge – Flávio La Selva, publicada na Folha em 08/11/2020, São Paulo, Brasil.
SÃO PAULO
Há um comentário recorrente no Corinthians quando aparecem membros de torcidas organizadas para protestos na sede do clube ou no centro de treinamento da equipe. “Chegaram os desembargadores”, dizem, em tom jocoso, aqueles que consideram os manifestantes desocupados.
A ironia carrega a ideia de que os torcedores são humildes demais e não têm apreço pelas leis. Os sarcásticos só talvez desconheçam que alguns dos fundadores da Gaviões da Fiel realmente se tornaram desembargadores e que seu grande mentor era um homem extremamente culto.
Flávio La Selva (1948-1988) deu aulas de português, francês e latim. Quando criou a Gaviões e se tornou seu primeiro presidente, era aluno da tradicional Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no largo São Francisco –de onde saíram vários membros da torcida que brotou despretensiosamente de 1964 até sua fundação oficial, em 1969.
Essa história é contada no recém-lançado “O Escudeiro de São Jorge – Flávio La Selva e a Gaviões da Fiel” (Observador Legal). Os autores são Wanda La Selva, 61, irmã de Flávio, e Durval de Noronha Goyos Júnior, 69, um dos jovens estudantes que há meio século se sentiram atraídos pelo Corinthians e pela figura carismática do primeiro gavião.
Flávio morreu jovem, aos 39 anos, por causa de um câncer, mas viveu o suficiente para deixar marcas indeléveis. Elas mal couberam na biografia, tamanho o alcance do paulistano, que foi líder católico, teólogo, linguista, advogado, professor, dirigente de escola de samba, procurador da Alesp (Assembleia Legislativa paulista)…
“Intensamente. Intensamente. Ele viveu intensamente”, diz Wanda. “Meu pai, um trabalhador que se dedicou demais para educar dois filhos, falava: ‘Nossa, eu não fiz um terço do que fez o Flávio com 39 anos’.”
Com sua voz mansa e uma retórica que misturava o Sócrates grego e o Brasileiro, La Selva foi além de juntar alvinegros na curvinha da arquibancada do Pacaembu. Ele é considerado, até hoje, um modelo a ser seguido para os corintianos em geral e para os gaviões em particular.
O estilo agregador do paulistano o fez ser admirado em diferentes círculos: da Igreja, tendo ótima relação com o cardeal dom Paulo Evaristo Arns, às escolas de samba de São Paulo, que viviam momento conflituoso e foram pacificadas com sua atuação decisiva. Querido também entre rivais, foi padrinho de casamento de Cosmo Damião Cid, presidente da Torcida Jovem do Santos.
“Ele era um diplomata, um gigante do diálogo. Falava com todos e tinha uma formulação de diálogo socrático. Nunca agredia a posição das pessoas. Ele perguntava. E a pessoa, o interlocutor, não percebia que estava sendo contestado, era levado a entender o próprio erro, o próprio equívoco, a impertinência de sua posição por meio das perguntas”, afirma Goyos Júnior.
Isso não significava que Flávio não fosse combativo, e essa característica foi decisiva no momento em que tomava forma a Gaviões. O Brasil vivia uma ditadura militar –endurecida com o AI-5, ato institucional que suprimiu direitos fundamentais em 1968–, e a situação do Corinthians era difícil.
Em um jejum de títulos iniciado ainda na primeira metade da década anterior, o clube era presidido desde 1961 por Wadih Helu, membro do partido que comandava o país, a Arena. Com um Conselho Deliberativo conivente e cinco eleições sucessivas, o político foi se perpetuando no Parque São Jorge, o que La Selva via também como uma ditadura.
Aos olhos dos jovens progressistas que se aglutinavam em torno de Flávio, Helu se tornou uma espécie de símbolo de tudo o que havia de errado no Brasil e no Corinthians. A Gaviões se organizou com o claro intuito de derrubá-lo e teve influência grande nas eleições de 1971, quando o cartola foi finalmente derrotado.
“É muito engraçado quando você vê algum gavião ou alguém no Corinthians falando que não se mistura política com futebol. [Se não fosse isso,] a Gaviões não teria nascido. Nós começamos misturando política com futebol”, afirma o hoje publicitário Chico Malfitani, 70, membro da organizada desde os primeiros anos.
“A Gaviões nasceu para interferir na política do clube. Depois, com o tempo, a gente foi percebendo de que lado estava o sistema. Muita gente criou consciência de liberdade e democracia na arquibancada. Eu fui uma dessas pessoas. Vi de que lado estava a polícia, a Justiça, vi como era defendido o cara da Arena que apoiava a ditadura”, acrescenta Malfitani.
Ficaram famosos os “capangas do Wadih Helu”, homens fortes escalados pelo presidente para intimidar os descontentes na torcida, mas a tática não funcionou. Ao contrário, a perseguição do dirigente à organizada e suas tentativas de silenciá-la acabaram a tornando mais popular.
A ousadia cresceu a ponto de os corintianos exibirem uma faixa, em 1979, em jogo contra o Santos, cobrando “anistia ampla, geral e irrestrita” aos que lutavam contra a ditadura. Já no processo de democratização, o famoso comício das Diretas Já, no vale do Anhangabaú, em 1984, teve vários ônibus que saíram da Gaviões, com a logística definida por Flávio La Selva.
Esses episódios foram lembrados neste ano, quando membros da Gaviões organizaram manifestações contra o presidente Jair Bolsonaro. Antes, em 2018, o presidente da uniformizada, Rodrigo Gonzales Tapia, o Digão, publicou um texto intitulado “Gavião não vota em Bolsonaro”, no qual lembrava o passado da torcida e a simpatia do então candidato ao regime militar.
“Mas isso é evidente”, diz Goyos Júnior, tomando seus cuidados de advogado para assegurar que o posicionamento firme seria apoiado por La Selva. “Eu não tenho a menor dúvida. Ele não me mandou uma procuração do céu, mas, assim que tiver a oportunidade, eu te exibo. Protesto pela juntada posterior!”
Já Wanda La Selva não tem tanta certeza de que Flávio apoiaria a posição manifestada pela Gaviões. A irmã do sócio número um ainda é associada da torcida e participa de suas ações assistenciais, mas considerou autoritária a contraindicação ao voto em Bolsonaro e tem restrições também aos episódios de violência ligados à uniformizada.
“A sociedade mudou muito, demais, como um todo. Falei com amigos do Flávio que me falaram: ‘Nossa, se ele estivesse vivo, levaria a torcida, não deixaria chegar ao patamar que chegou’. Você vê determinadas coisas e não concorda. A sociedade está complicada”, afirma ela.
Se não vê a alma do tolerante La Selva em tudo o que a Gaviões se tornou, Wanda ainda a enxerga nos programas sociais da organizada, com atividades culturais e distribuição de alimentos. Ela contribui com essas iniciativas da entidade fundada pelo irmão e também carrega no sangue a indignação que marcou a atuação dele no Corinthians.
“O Andrés [Sanchez] não quer sair”, reclama a advogada, referindo-se ao atual presidente do clube, líder do grupo político que está no poder desde 2007. “Ele não quer sair, mas tem que sair. Será que estamos voltando à era Wadih Helu? Ninguém quer deixar o Corinthians, ninguém quer sair.”
A Gaviões também tem sido crítica. A organizada, que já foi questionada por ter sido anteriormente próxima de Sanchez, não tem poupado o cartola nos protestos que vem realizando em um 2020 ruim para o time. “Alô, Andrés, seu vagabundo, sai do Corinthians e leva todo o mundo” foi um dos gritos entoados em manifestação no mês passado.
Eram os tais “desembargadores”, criticados por quem torce o nariz para torcedores organizados. Eles dão de ombros para a reprovação e agem como determinavam os primeiros estatutos da Gaviões, batidos na máquina de escrever de La Selva: “Nós nos reservamos o direito inalienável de participar da vida política e administrativa do Club”.
“O Flávio será eternamente lembrado por nós. Foi um dos caras que idealizaram e tiraram do papel a ideia de formar a maior torcida organizada do Brasil. Acho que nem ele imaginava que os Gaviões seriam esse movimento tão grande. A cada reunião de novos sócios, fazemos questão de falar dessa história, falamos da ideologia pregada pelo Flávio e pelos demais fundadores”, diz Digão, presidente de uma entidade que hoje contabiliza mais de 110 mil associados.
Fonte: Folha de S. Paulo.