A China como economia de mercado

Publicado na Coluna Semanal do Dr. Noronha a convite do sítio “Última Instância – Revista Jurídica”, São Paulo, Brasil, 17, de novembro 2004.

BRASÍLIA – Durante os longos 15 anos de negociações para acessão ao regime multilateral de comércio, inicialmente do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) e posteriormente da Organização Mundial do Comércio (OMC), a Republica Popular da China deparou-se com exigências da parte dos Estados Unidos da América e da União Européia, no sentido de que fossem criados mecanismos legais idiossincráticos que compensassem as vantagens comparativas do país por não ser, segundo aqueles, economia de mercado.

Dessa maneira, quando a China acedeu à OMC em 11 de dezembro de 2001 para tornar-se o 143º membro daquela organização, o respectivo Protocolo de Acessão previu dois regimes especiais para as exportações chinesas. Em primeiro lugar, criou-se, conforme o artigo 15 do protocolo, por um período de 15 anos, para os fins de medidas compensatórias e antidumping, uma ficção no sentido de que a China teria sua economia como um todo considerada como não de mercado.

O corolário direto desse dispositivo é que para a determinação do preço doméstico para fins de cálculo da margem de dumping, seriam considerados não os valores efetivamente praticados no mercado chinês, mas preços “sub-rogados” de terceiros países. Essa situação metodológica trouxe dois tipos de abusos, muitas vezes cumulados: em primeiro lugar, as empresas chinesas de economia de mercado, que são hoje a maioria, eram discriminadas; em segundo lugar, os preços de terceiros países, como Índia, Argentina e outros, freqüentemente nada tinham a ver com a real composição do custo chinês.

Por outro lado, o protocolo, em seu artigo 16, baseado na premissa ficta do artigo 15, criou um regime especial de salvaguardas contra produtos chineses, válido pelo período de 12 anos, a contar da data de acessão. De acordo com este regime especial, é possível dirigir uma medida de salvaguarda apenas contra a China, contrariamente ao regime horizontal do Acordo Salvaguardas da OMC que considera a medida contra todos os produtores do bem cuja importação causa ou ameace causar uma perturbação de mercado. O regime especial contempla um mecanismo de consultas e admite a imposição de medida provisória de salvaguardas, de acordo com avaliações preliminares.

Como seria de se esperar, essas medidas protecionistas inspiradas pelos EUA causaram graves danos ao comércio internacional chinês, já que cerca de 70% dos casos de medidas antidumping e de salvaguardas havidos no mundo nos últimos três anos são dirigidos contra os produtores chineses, que não podem defender-se de maneira eqüitativa e justa. Note-se ainda que a China tem uma competitividade relativa, e legal, muito grande em produtos que requeiram grande intensividade de mão de obra, comparativamente barata naquele país, como é sabido.

Ora, o Brasil não exigiu da China um tratamento diferenciado para fins de antidumping e salvaguardas, nas negociações bilaterais no âmbito dos entendimentos multilaterais para a acessão da China à OMC. Ao contrário, o acordo entre os dois países tem apenas duas páginas, contra as centenas de páginas incorporando as demandas dos EUA, aceitas pelos chineses. No entanto, na prática, o Brasil aplicou uma ampla gama de medidas de defesa comercial contra produtos chineses, dentro das normas idiossincráticas do Protocolo de Acessão, sem jamais admitir examinar se as empresas chinesas efetivamente operavam em condições de economia de mercado.

Assim, a China, também no Brasil, tornou-se uma grande vítima de ações infundadas de defesa comercial, que prejudicaram seus interesses. Dessa maneira, quando os chineses se deram conta da magnitude dos saldos comerciais brasileiros com a China, passaram a pressionar nossos agentes políticos e diplomáticos para a revisão, no âmbito bilateral, das onerosas regras do protocolo. O Brasil tinha a opção de, nos termos do protocolo, criar normas pelas quais setores individuais ou empresas chinesas específicas poderiam ser considerados como de mercado. Assim fizeram vários países, como o Canadá e a própria UE. Essa opção permitiria praticar justiça aos setores chineses de mercado, bem como proteger a indústria nacional dos setores em que ainda prevalece a economia estatal.

Vinte outros países, grandemente dependentes do comércio bilateral com a China, como a Austrália e a Nova Zelândia precederam ao Brasil no reconhecimento da China como economia de mercado. Os demais membros da OMC aguardam prudentemente os efeitos do fim da vigência do Acordo Multifibras em 31 de dezembro deste ano, conforme já analisei em meu artigo O fim do Acordo Multifibras e o futuro do setor têxtil. Dessa maneira, fica claro que o Brasil assumiu certos importantes riscos comerciais apostando no crescimento do comércio bilateral com a China que, segundo o presidente Hu Jintao, deverá dobrar em três anos. O futuro dirá se terá valido a pena.