Publicado na Coluna Semanal do Dr. Noronha a convite do sítio “Última Instância – Revista Jurídica”, em 23 de junho de 2004, São Paulo, Brasil.
LONDRES – Estão na fase final as negociações para um acordo sobre a Constituição da União Européia (UE) levadas a efeito pelos 25 países que fazem parte deste bloco político e econômico, cuja formatação jurídica é feita inter alia com base no direito multilateral do comércio internacional e fundada no artigo 24 do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), de 1947. A Constituição da UE substituirá um emaranhado de tratados assinados ao longo de aproximadamente meio século sobre temas, simultaneamente, de larga abrangência e de grande importância institucional.
As negociações foram retomadas recentemente, após a vitória do Partido Socialista nas eleições gerais espanholas, já que estiveram bloqueadas por intransigência do anterior governo espanhol, de extrema direita, apoiado pelos poloneses. Ambos eram incentivados pelos britânicos, que desejam arduamente impedir o aprofundamento da UE. O impasse resultante causou o fracasso da reunião de cúpula européia de dezembro de 2003.
Na cimeira européia presentemente em andamento, pretendem os negociadores do Reino Unido perseguir sua tradicional agenda no sentido de se aproveitarem da UE comercialmente, ao mesmo tempo em que procuram manter o maior número possível de suas leis sobre matérias julgadas de grande relevância e sustentar sua aliança política e militar com os Estados Unidos da América (EUA). No entanto, todos os Estados Membros da UE parecem, em princípio, estarem de acordo com a idéia de uma Constituição Européia.
Restam, assim, apenas alguns poucos pontos pendentes para que se acorde sobre um documento histórico, a mudar substancialmente a história do direito. A maioria destas pendências vêm de parte do Reino Unido e dizem respeito ao poder de veto em questões como política externa, defesa comum, valor das contribuições e. combate à fraude fiscal (sic). Salta aos olhos que, desde uma perspectiva de política de Estado, a discórdia na questão do combate à fraude fiscal não deveria ter o mesmo peso do que a dissidência potencial em matéria da política de defesa comum, por exemplo. Ao contrário, o combate à fraude fiscal deveria, a priori, fazer parte de um consenso ecumênico dentre todos os Estados Membros da UE.
Para que se possa compreender esse ponto aparentemente obscuro e inexplicável da política externa britânica, deve-se atentar para a importância da City londrina para a economia do Reino Unido. O setor britânico de serviços corresponde hoje a aproximadamente 72% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, dos quais a grande maioria representa os serviços financeiros. O saldo comercial do comércio de serviços, os invisíveis, quase que compensam o défice comercial britânico na área de mercadorias. O que falta para fechar o balanço de pagamentos é mais do que compensado pelos investimentos estrangeiros, atraídos pelo mais eficiente regime de paraísos fiscais existente no mundo.
Como a moralidade britânica tradicionalmente não tem podido suportar o estigma de ser o Reino Unido o principal centro internacional de operações do crime organizado, foi estruturada uma rede de paraísos fiscais em dependências territoriais britânicas, que fazem parte do país naquilo que interessa, como o setor financeiro, mas que dele se distanciam daquilo que não é conveniente, como as leis municipais e convenções internacionais de combate à fraude fiscal, ao crime organizado, da recuperação de ativos provenientes de atividades criminosas, etc. Neste sentido, sugiro a releitura de meu artigo ” Jersey: uma jurisdição idiossincrática”. Em Jersey, no que pese estarem em vigor quatro convenções européias sobre vinho, não foi ratificada a Decisão do Conselho Europeu (de junho de 2001) sobre lavagem de dinheiro, congelamento e confisco dos ativos provenientes de atividades criminosas, bem como nenhuma outra convenção internacional sobre a matéria.
De acordo com tal política, por detrás da santimonial legislação britânica e da especiosa moralidade pública vitoriana, permite-se a existência e operação de um sistema voltado a apoiar a fraude institucionalizada e o crime organizado, para lucros abundantes e generalizados no setor de serviços. Desta maneira, pode-se compreender, mas jamais justificar, o porquê de os negociadores britânicos relutarem em abrir mão do veto nacional, em matéria de cooperação em fraudes fiscais no âmbito da Constituição da UE.