A Disputa acerca de Proteção Patentária de Farmacêuticos entre os EUA e o Brasil e o Sistema de Resolução de Disputas da OMC

Texto da apresentação feita aos alunos de Pós-Graduação da Universidade de Witwatersrand, em Johanesburgo, África do Sul, 19 de março de 2001.

A Lei de Propriedade Intelectual brasileira, lei no. 9279 de 15 de Maio de 1996, trata do tema da licença compulsória nos artigos 68 e 71. O Artigo 68 sanciona a prática de abuso do poder econômico incluindo a formação de cartéis e trustes, desde que esses tenham sido constatados pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica ou por decisões judiciais. O artigo 71 trata da licença compulsória derivada de uma situação de emergência nacional. Até o presente momento o Brasil nunca se auto beneficiou de tais possibilidades legais. Por um lado, a atual produção de medicamentos anti-retrovirais pelos laboratórios governamentais, parte do programa contra AIDS no país, é admitida, assim como as respectivas patentes não são protegidas pela lei de propriedade intelectual brasileira, que entrou em vigor em 1997. Por outro lado, o Brasil ainda não declarou um estado de emergência nacional no que concerne a uma epidemia de AIDS.
Não obstante, o Brasil tem iniciado negociações para a licença de novos medicamentos com o propósito de produzi-las no país com custos baixos, para distribuição gratuita à parcela da população afetada que se utiliza dos relevantes programas nacionais de saúde. Tais negociações têm se tornado acrimoniosas em reflexo à grande relutância por parte dos laboratórios multinacionais em conceder licenças. Esses laboratórios temem a adoção do sistema brasileiro por parte de outros países em desenvolvimento e o suprimento internacional de medicamentos licenciados nesses termos dentre economias emergentes, fato esse que afetaria negativamente a quantia extraordinária lucrada por essas multinacionais.
Em 1º de fevereiro de 2001, data em que foi estabelecido painel da Organização Mundial do Comércio (OMC) para examinar a disputa, a organização Prêmio Nobel, Medecins sans Frontieres, promulgou uma declaração em Genebra solicitando aos EUA a retirada de seu pedido de intervenção perante a OMC contra o Brasil. A organização alegou que a Impugnação dos EUA “pode vir a dificultar o bem sucedido programa brasileiro contra AIDS, que tem suas bases basicamente sobre a capacidade do Brasil em produzir um tratamento acessível.”1 O grupo Paris-Act Up (Aids Coalition To Unleash Power), grupo ativista contra a AIDS, também se declarou na mesma data indagando “as vidas de 1.000.000 de pessoas HIV positivo no Brasil estariam em jogo”, na pendência do resultado da decisão da OMC.2
Essa ação dos EUA contra o Brasil sob o Sistema de Resolução de Disputa da OMC visa não somente negar o benefício do artigo 31 do acordo TRIPS (acordo sobre propriedade intelectual), mas constitui em si uma tentativa de derrogar outros tratados internacionais em benefício dos interesses de seus laboratórios farmacêuticos. Incluem-se em tais tratados, não se limitando apenas a esses, o Estatuto de Roma da Corte Internacional Criminal de 1998, o qual em seus artigos 7, 2, define extermínio como “a repressão intencional de condições de vida, “inter alia” a privação do acesso a comida e medicamento, confabular para causar a destruição de parte da população.”3 Além disso, o artigo 12 da Convenção Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ratificada pela Resolução 2,200-A da Assembléia Geral das Nações Unidas4, determina que os Estados parte do pacto reconheçam o direito de todo indivíduo de gozar do mais alto nível de saúde mental e física. Ademais, nessa mesma Convenção, as partes concordaram em tomar as medidas necessárias para assegurar a prevenção de doenças profissionais, endêmicas e epidêmicas, assim como combate-las, por meio da criação de condições de assegurar toda a assistência e serviços médicos pertinentes a cada caso. Tais direitos são ainda reconhecidos pelo Protocolo Adicional para a Convenção Inter-Americana de Direitos Humanos relacionados a Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.5
O tratado internacional de maior importância e que trata do assunto é indubitavelmente a Carta das Nações Unidas (NU), a qual em seu artigo 55 estabelece que o Estado membro deverá promover soluções de problemas internacionais econômicos, sociais, de saúde e correlatos (b) e respeitar os direitos humanos e prerrogativas fundamentais, sem qualquer distinção. O órgão judicial das NU é o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) (artigo 92). Enquanto nada na carta das NU dispunha sobre estados membros encaminharem a solução de seus conflitos para outros tribunais (artigo 95), os Estados têm o direito de demandar à jurisdição do TIJ.
Os tratados da Rodada do Uruguai do GATT, os quais deram origem a OMC, não possuem uma hierarquia superior em relação a outros tratados internacionais. Por outro lado, não foram concedidos poderes à DRS (Sociedade Médica de Reforma) da OMC por qualquer tratado de relevância, incluindo aqueles da Rodada do Uruguai, no que tange ao exame de assuntos pertinentes ao conflito de tratados. O Acordo de Resolução de Disputas nem ao menos permite o exame de assuntos preliminares pelo Corpo de Resolução de Disputas. Porque, em vista das importantes considerações legais expostas e da difamada reputação da DRS, veio o Brasil aceitar a jurisdição da OMC, primeiramente no painel da aeronáutica e mais recentemente no caso das patentes? Incompetência talvez? O futuro o dirá.