Publicado na Coluna Semanal do Dr. Noronha a convite do sítio “Última Instância – Revista Jurídica”, São Paulo, Brasil, 23 de dezembro de 2009.
São Paulo – Na semana do dia 14 de dezembro de 2009, o Judiciário inglês decretou um mandado de prisão contra Tzipi Livni, ex-chanceler de Israel, por sua participação nos abusos havidos quando da incursão militar israelense na Faixa de Gaza, há um ano.
A mesma doutrina já havia sido utilizada pelos tribunais belgas na perseguição criminal do ex-primeiro-ministro de Israel, Ariel Sharon, por conta de sua participação no massacre dos campos de refugiados Sabra e Shatila, em 1982, no Líbano. Esse foi também o embasamento legal utilizado pelo Judiciário espanhol para a decretação de um mandado internacional de prisão contra o General Augusto Pinochet e, por Israel, para julgar o nazista Adolf Eichmann.
A doutrina da jurisdição universal evoluiu de uma base legal consuetudinária muito limitada ao combate à pirataria, existente desde o direito romano, para dar o substrato jurídico que permitiu a perseguição dos crimes de guerra praticados durante a Segunda Guerra Mundial pelas potências derrotadas, nos tribunais de Nuremberg e Tóquio.
Em realidade a doutrina da jurisdição universal apresenta uma exceção ao princípio da territorialidade, um dos fundamentos do conceito de soberania. Assim, a doutrina sob comento reconhece uma jurisdição extraterritorial no caso de crimes que, por sua gravidade, são reputados cometidos erga omnes, ou seja, toda a comunidade mundial, mas também contra o direito cogente, jus cogens, normas absolutas e irrevogáveis do direito internacional.
A combinação desses dois fatores permitiria a um Estado o processo criminal de cidadãos de terceiros países, nele não residentes, não apenas por crimes cometidos em seu território e contra seus habitantes e suas respectivas propriedades, mas também daqueles sem nenhum vínculo direto com seu ordenamento jurídico de direito interno.
A doutrina da jurisdição universal inspirou a adoção pela comunidade internacional, através do Tratado de Roma de 1998, de um estatuto e estrutura judiciária para a perseguição criminal do genocídio, de crimes contra a Humanidade, crimes de guerra e assemelhados. Todavia, o Tratado de Roma somente é válido para os seus signatários.
Da mesma maneira, as mais recentes convenções internacionais para a supressão do terrorismo, como a Convenção Européia de 1977, e as Convenções Internacionais de 1997 e de 1999, valem-se da doutrina em comento para assegurar a jurisdição extraterritorial nos crimes ali definidos, estabelecendo um mecanismo possível para o respectivo processo criminal.
O próprio Conselho de Segurança da ONU (Organização das Nações Unidas), na Resolução 1566, de 2004, conclama as nações a punir atos criminosos, incluindo os praticados contra civis, praticados com o propósito de provocar um estado de terror no público em geral, intimidar uma população ou compelir um governo ou organismo internacional a praticar ou se abster da prática de qualquer ato.
Por sua natureza consuetudinária e também flexível, a doutrina da jurisdição internacional tem sido historicamente utilizada com erros e acertos e, muitas vezes, até mesmo para justificar o exercício arbitrário das próprias razões de certos Estados. Porém, a mesma doutrina tem sido usada para a perseguição de certos graves crimes ainda não alcançáveis pelo direito internacional, como o Tratado de Roma.
Parece claro que a forma de se dar maior segurança jurídica ao combate dos graves ilícitos criminais na esfera internacional seja o adensamento do direito internacional com a adesão ao Tratado de Roma por todos os países e a conseqüente universalização do aceite de suas normas.