A natureza ilícita da oferta dos EUA no âmbito da Alca

Publicado no sítio aeFINANCEIRO (www.aefinanceiro.com.br) em 14 de fevereiro de 2003, São Paulo, SP.

A iniciativa proposta pelos Estados Unidos da América (EUA) da formação de uma Área de Livre Comércio das Américas (Alca), formatada nos moldes do Acordo de Comércio da América do Norte (Nafta), tem sido ampla e abundantemente denunciada como uma armadilha hegemônica com o objetivo da dominação e controle das economias dos 35 países participantes do processo de negociação. Da perspectiva brasileira, a iniciativa da Alca tem sido corretamente interpretada pela sociedade civil como uma equação com a qual o País nada teria a ganhar e tudo a perder.

O anúncio das linhas gerais da proposta dos EUA para a Alca, feita no dia 11 de Fevereiro de 2003, veio a confirmar plenamente as análises supra referidas, pelo seu caráter globalmente acanhado e, muitas vezes, singularmente cosmético e plenamente anódino.

Todavia, um ponto em particular chamou a atenção dos observadores especializados nas questões arcanas do direito do comércio internacional, qual seja o tratamento discriminatório dado às possíveis partes do futuro pacto comercial regional pelos EUA.

Ora, o fundamento básico e arcabouço legal do regime jurídico do comércio internacional é precisamente o princípio da não-discriminação, consagrado no artigo 1 do Gatt 1947, ainda em vigor, pela chamada cláusula da nação mais favorecida, segundo a qual qualquer vantagem, favor, privilégio ou imunidade concedida por um país signatário do tratado a qualquer produto de um país nas mesmas condições será imediata e incondicionalmente estendido a todos os demais signatários. Com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1995, a norma passou a ser aplicada aos hoje 145 países membros.

Trata-se, como visto, de um princípio absoluto, “incondicional”, que não autoriza exceções não autorizadas. O artigo 24 do Gatt 1947 autoriza exceções no tocante às zonas de livre comércio e uniões alfandegárias, naquilo em que o seu regime pode ser mais benévolo do que aquele outorgado aos demais parceiros comerciais.

A justificativa do dispositivo é o reconhecimento de que a liberalização regional é um passo na liberalização global dos mercados, que é o objetivo último do sistema multilateral de comércio. Assim, a discriminação trazida pela liberalização regional traria, numa segunda fase, um benefício global de longo prazo.

De qualquer forma, o parágrafo 5b do artigo 24 do Gatt 1947 determina que as tarifas regionais de uma dada área de livre comércio não poderão ser maiores ou mais restritivas do que aquelas existentes nos respectivos territórios antes de sua formação. O tratado não dispõe se tais restrições devam ser interpretadas em critérios absolutos ou relativos. Desta maneira, a ordem jurídica multilateral da OMC permite, excepcionalmente, nos casos de pactos regionais de livre comércio, a discriminação exógena, ou seja tratamento diferenciado aos não signatários. Todavia, esta autorização legal não é aplicável à discriminação dentre as partes de uma dada área de livre comércio, que continua vedada nos termos da regra geral.

A oferta dos EUA introduz, pela primeira vez na história dos pactos regionais de comércio, o princípio da discriminação endógena, em contundente violação dos dispositivos supra mencionados. De fato, a oferta agrícola, por exemplo, dá tratamento tarifário isento a 85% das exportações do Caricom; 64% dos países da América Central; 68% dos países do Pacto Andino; e 50% àquelas dos países do Mercosul.

Por sua vez, a oferta de bens industriais e de consumo dá uma isenção tarifária a 91% dos produtos do Caricom; 66% dos produtos dos países da América Central; 61% dos produtos do Pacto Andino; e 58% dos produtos do Mercosul. Resta ainda saber ainda, quando da apresentação do texto completo da oferta dos EUA se a, tanto flagrante quanto ilegal, discriminação supra não será agravada por tratamentos díspares aos países membros do Caricom, Mercosul e Pacto Andino e também por tarificação diferenciada de bens e produtos, dependendo da competitividade do país.

O uso de percentuais de liberalização é um argumento tradicional e falacioso dos negociadores americanos. De um modo geral, as tarifas nos EUA já são razoavelmente baixas. Assim uma redução de 91% de uma tarifa de 1% não representa muito em termos de maior concessão de acesso a mercado. O problema está nos picos tarifários, que são sempre mantidos. Até agora, a iniciativa da Alca continua a ser progressivamente desinteressante para o Brasil. O consolo, apenas momentâneo, é que a situação pode piorar muito.