A natureza jurídica dos memorandos de entendimento no direito internacional público

Publicado na Coluna Semanal do Dr. Noronha a convite do sítio “Última Instância – Revista Jurídica”, São Paulo, Brasil, 12 de janeiro de 2005.

SÃO PAULO – O reconhecimento, pelo Brasil, da República Popular da China como economia de mercado, conforme já comentado em meu artigo A China como economia de mercado, deu-se por via de um memorando de entendimento, um ato idiossincrático no direito internacional público, que difere substancialmente dos tratados.

De fato, enquanto os tratados são regulados pelo direito internacional público, inclusive pela Convenção de Viena sobre a Lei dos Tratados (a Convenção), os memorandos de entendimento são atos regidos apenas pelos costumes.

Como sabemos, os tratados consagram o princípio pacta sunt servanda no direito internacional, no sentido em que criam obrigações às suas partes, as quais devem ser cumpridas de boa fé, ex vi do disposto no artigo 26 da Convenção.

Assim, um tratado é um acordo internacional celebrado entre Estados em forma escrita e regulado pelo direito internacional, que obriga as suas partes. A Corte Internacional de Justiça tem competência para dirimir disputas decorrentes de tratados, ex vi do artigo 36 de seus Estatutos.

Por sua vez, os memorandos de entendimento, ou memoranda of understanding (MOU) na língua inglesa, são atos internacionais que não criam obrigações exigíveis aos seus signatários. Assim, os memorandos de entendimento expressam através de linguagem diplomática, que é freqüentemente imprecisa, dúbia e nebulosa, uma vontade política inexeqüível em qualquer foro internacional.

Assim, o ato correspondente, ainda que registrado na ONU (Organização das Nações Unidas) de conformidade com o artigo 102 da Carta da ONU, não adquirirá o status de um tratado, se não tiver já tal condição por ocasião de sua assinatura.

Mais ainda, os memorandos de entendimento são, muito amiúde, documentos confidenciais na prática diplomática, o que explica uma das razões pelo seu uso. A vasta maioria dos acordos aeronáuticos, por exemplo, é acompanhada de memorandos de entendimento de caráter confidencial. A desnecessidade de maiores formalidades de aprovação no âmbito do direito interno ou doméstico por parte dos signatários é um outro motivo que tem levado à proliferação de tais atos nas relações internacionais.

Como os memorandos de entendimento não criam obrigações, o seu término é bastante simples e informal, sendo que sua respectiva denúncia unilateral por um dos signatários não traz conseqüências de ordem jurídica, mas apenas de natureza política, como retaliações ou represálias comerciais, por exemplo.

Da mesma forma, pela não criação de ônus, à semelhança do que ocorre alhures, os memorandos de entendimento não necessitam, no direito constitucional brasileiro, de aprovação pelo Congresso brasileiro, ex vi do disposto no artigo 49, I, da Constituição Federal, que restringe a competência do Congresso Nacional apenas aos atos internacionais que “acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”.

Em conseqüência, os memorandos de entendimento prescindem de legislação ordinária de implementação de seus termos no ordenamento jurídico de âmbito municipal ou doméstico. Muito embora os memorandos de entendimento não tenham juridicidade, eles têm ampla aceitação internacional pela conveniência diplomática e porque os compromissos políticos sem dúvida empenham a boa fé dos governos nas relações internacionais.

Todavia, como a linguagem dos memorandos de entendimento é sempre evasiva, com o objetivo de não criar obrigações exeqüíveis, com o passar do tempo fica sempre difícil discernir qual era, em realidade, a vontade das partes ao celebrar o ato. Acresce que, com o decorrer dos anos, como muitos memorandos são confidenciais, sua própria localização fica comprometida.

Assim, pode-se dizer que os memorandos de entendimentos mais eficazes são os que expressam vontades políticas a se materializarem no curto prazo. É esse o caso do memorando de entendimento entre o Brasil e a China sobre a Cooperação em Matéria de Comércio e Investimento, celebrado em 12 de novembro de 2004.