Publicado na Revista Crítica Jurídica, editada em conjunto pela Fundación Iberoamericana de Derechos Humanos – FIDH e pelas Faculdades do Brasil, edição nº 22, páginas 271 a 276, julho 2003, Curitiba, PR, Brasil.
Enquanto o direito doméstico de um dado Estado advém de uma estrutura legal formatada de acordo com uma Constituição promulgada por um poder constituinte, o direito internacional não tem a mesma legitimidade, tampouco a clareza normativa do primeiro. Ao contrário, as normas de direito internacional são criadas pelos estados soberanos para regular suas relações, os organismos por eles criados e a atuação, conduta e/ou operação de seus sujeitos em certas áreas domésticas, transnacionais ou multinacionais, de tal maneira que gozem de proteção ou tutela legal. Contudo, como a balança de poder entre os Estados é desigual, o direito internacional, criado por tratados, também tende a refletir a desigualdade em suas normas. Da mesma maneira, o direito internacional também difere do direito doméstico em suas manifestações, devido ao fato de que sua supremacia sobre o poder bruto ainda está por ocorrer[3].
Desta forma, o direito internacional e o bruto exercício do poder, que não são a mesma coisa, mas precisamente o contrário, freqüentemente aparecem como se o fossem. A diplomacia é largamente usada pelos Estados mais poderosos para atingir tal objetivo. O jurista espanhol, Pastor Ridruejo ensina que “o direito internacional clássico foi, em suas origens, basicamente oligocrático, ou seja, concebido por um pequeno grupo de grandes potências para servir e legitimar os seus próprios interesses nacionais [4].” Assim, a falta de implementação de uma ordem legal transnacional causou o questionamento, por parte de muitos juristas, da própria existência do direito internacional, não somente pelo processo ao mesmo tempo ilegítimo e falho de sua criação, mas também pelas dificuldades de execução de suas regras [5]].
Todavia, a segunda metade do século XX presenciou um importante desenvolvimento de normas internacionais, obtido através de muitos tratados iguais e outros que, embora desiguais, representavam um arbítrio menor com relação à prática que substituíam. Tais normas, embora ainda longe da perfeição, inegavelmente criaram importantes regras de relacionamento para os Estados e demais sujeitos de direito internacional, promovendo um certo modus vivendi jurídico nas relações internacionais, bem como valores caros para toda a humanidade, a exemplo da questão dos direitos humanos. Este progresso foi ainda representado por normas internacionais em muitas outras áreas, como ainda no comércio internacional, meio ambiente, desarmamento, trabalho, etc. O referido desenvolvimento normativo do jus inter gentes despertou em muitos a esperança que o tradicional arbítrio e o exercício das próprias razões nas relações internacionais viessem a ser substituídos pelo estado de direito, à semelhança do que tem ocorrido no âmbito do direito doméstico mundo afora.
O colapso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em 1991[6], representou um marco na história das relações internacionais em muitos e diversos aspectos, mas notadamente na formatação da política externa dos Estados Unidos da América (EUA), que livres da concorrência pela hegemonia, abandonaram até mesmo o parco esforço de desenvolvimento do direito internacional levado a efeito em conjunto com a comunidade das nações até então, com o objetivo de construir uma ordem jurídica transnacional que legitimasse seu império, um jus imperium . Tal mudança de atitudes deu-se ainda pela adoção da cândida, brutal e pragmática política externa de substituição do direito internacional pelo diktat do poder maior e absoluto, expresso na conformidade dos percebidos interesses nacionais daquele país.
Assim, em setembro de 2002, a administração Bush, em seu documento de estratégia de segurança nacional [7] repudiou nada menos do que a Carta da Organização das Nações Unidas (ONU), no tocante ao uso da força, ao autorizar o seu uso preventivo e unilateral, ao contrário do disposto no artigo 2 (4) da Carta da ONU que proíbe especificamente o uso da força armada contra um outro país, a menos que em auto-defesa ou sob a égide daquela organização internacional, por meio de apósita deliberação de seu Conselho de Segurança. Logo em seguida, em outubro do mesmo ano, o Congresso dos EUA autorizou o Poder Executivo daquele país a empreender guerra contra o Iraque, mesmo sem a aprovação do Conselho de Segurança da ONU. A diplomacia estadunidense já havia ameaçado (sic) a ONU em setembro de 2003 no sentido de que, recusada a aprovação à guerra, os EUA tomariam a iniciativa unilateralmente [8]. Não obtida a aprovação necessária, os EUA e o Reino Unido (RU), um estado cliente do primeiro, empreenderam uma aventura militar ilegal invadindo o Iraque. Contudo, nenhum dos argumentos políticos utilizados para tentar coonestar o crime são admissíveis como justificativa perante o direito internacional [9].
Ora, se os EUA violaram a Carta da ONU, o tratado internacional de maior hierarquia, o que dizer dos de inferior posição? De fato, tal ação não se apresenta isolada e, como se bem pode imaginar há, ao contrário, uma tendência firme e constante por parte daquele país de abandonar a ordem jurídica internacional. Tal se nota desde a sistemática recusa na ratificação da Convenção de Viena sobre a Lei dos Tratados, de 1969, que inter alia afirma a hierarquia superior dos tratados internacionais sobre o direito doméstico, da mesma forma que impede o uso de argumentos de direito doméstico para exonerar um Estado do cumprimento de uma obrigação internacional, paradigmas que são categoricamente rejeitados pelo ordenamento jurídico constitucional dos EUA.
Da mesma maneira, na área ambiental, o Protocolo de Kyoto de 2001, tratado que procura, num primeiro momento, limitar os danos ambientais para, em seguida, revertê-los, foi repudiado pelos EUA, justamente o país que maior poluição causa. Por outro lado, no campo militar, o Tratado de Banimento de Minas, de 1997, que procura reduzir os danos à população civil do uso de minas, não foi assinado pelos EUA, que alegaram incompatibilidade aos seus interesses militares. Ainda na área militar, os EUA derrogaram, na administração Bush, o Tratado de Mísseis Anti-Balísticos (Tratado ABM) de 1972, que limitaram o expansionismo militarista nuclear, durante a guerra fria. No mesmo setor, os EUA frustraram a Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio Ilícito de Armas de Pequeno Porte, impedindo uma regulamentação internacional eficiente da fonte da violência urbana em muitos países do mundo. Sempre na área militar, os EUA opuseram-se ao Tratado de Banimento de Testes Nucleares de 1996 e frustraram o Novo Protocolo adicional à Convenção sobre a Proibição de Armas Biológicas e Tóxicas (CIAB), de 2001, porque recusam-se a admitir inspeções [10]. Não bastassem tais medidas, os EUA ainda repudiaram a Convenção sobre a Proibição de Armas Químicas (CIAC) de 1993.
No setor de direitos humanos, os EUA rejeitaram o Novo Protocolo sobre a Convenção de 1987 sobre a Tortura, da mesma forma que rejeitaram a Convenção sobre a Eliminação de todas formas de Discriminação contra as Mulheres e, até mesmo, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança. Nem mesmo a criação da Corte Internacional de Justiça, decidida por tratado de 1998, foi apoiada pelos EUA, que temia o enquadramento criminal de agentes políticos e militares de sua administração direta. Neste caso, os EUA inovaram na ordem jurídica internacional pretendendo a remoção de sua assinatura ao tratado, que naturalmente jamais foi ratificado por aquele país. Mais ainda, os EUA buscaram assinar tratados bilaterais de impunidade criminal de seus agentes, como aqueles firmados com Israel, Romênia, Tajiquistão e Timor Leste.
A própria Convenção de Genebra relativa ao Tratamento dos Prisioneiros de Guerra de 1949, um dos principais baluartes internacionais de normatização dos direitos humanos foi repelida em sua quase totalidade pelos EUA nos recentes conflitos em que este país se envolveu, notadamente no Afeganistão e no Iraque, mas já anteriormente no Panamá. A questão do tratamento dos prisioneiros de guerra dos EUA no Afeganistão, regulada pela Convenção de Genebra que, em seu artigo 4 (1) considera até membros de milícias sujeitos à sua abrangência, envolve violações de direitos humanos na vasta maioria de seus artigos, incluindo, mas sem limitação, os de número 13, que trata de tratamento humano, 14, 15, 16, 17,18, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 40, 41, e 118, que trata da repatriação imediata após a cessão das hostilidades.
Ainda no segmento de direitos humanos, os EUA retiraram-se da Conferência Internacional sobre o Racismo, realizada em Durban, na África do Sul, em 2002, iniciativa que contou com o quase unânime apoio da comunidade internacional. À semelhança, os EUA, apenas no ano de 2003, no âmbito da Assembléia Geral da ONU, votaram contrariamente a duas resoluções apresentadas pela Comissão de Direitos Humanos daquela organização internacional. A primeira delas declara o direito humano ao mais alto padrão de saúde física e mental, aprovada com 166 votos, com o voto isolado de oposição dos EUA. A segunda delas dizia respeito ao direito ao acesso a medicamentos no contexto de pandemias como as doenças relacionadas com a AIDS, a malária e a tuberculose, aprovada por 167 votos, novamente com o voto contrário isolado dos EUA [11].
No setor trabalhista, os EUA ratificaram apenas 14 das 185 convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT). À guisa de comparação, o Brasil ratificou 90 convenções. Dentre as convenções não ratificadas pelos EUA estão as de número 100 e 111, por exemplo, que tratam da discriminação no trabalho. Da mesma forma, os EUA não ratificaram a Convenção OIT 138 que trata da proibição ao trabalho infantil. Das duas convenções sobre trabalho forçado, a OIT 29 e a OIT 105, os EUA não ratificaram nenhuma, o que permite a prática de trabalho forçado nas prisões estadunidenses com remuneração simbólica. Pelo menos três estados federados dos EUA exportam bens fabricados em prisões daquele país. Igualmente, os EUA deixaram de ratificar a Convenção OIT 98, que trata do direito de organização sindical e de negociação coletiva e a Convenção OIT 111, que trata de assegurar o direito à remuneração igual por trabalho assemelhado. A falta de adesão a um grande número de normas da OIT faz com que haja severas limitações ao direito de organização sindical e greve nos EUA [12]. Este precário histórico, contudo, não impede uma retórica oficial tanto santimonial quanto especiosa da diplomacia daquele país crítica das normas trabalhistas de outros países.
Os obstáculos colocados pelos EUA à formação e desenvolvimento do direito internacional são ainda freqüentemente acompanhados de uma forte manipulação e desestabilização dos organismos internacionais incumbidos de sua aplicação. Na própria ONU, vimos como uma autorização do Conselho de Segurança, havida no caso do Afeganistão, pode levar a graves violações de direitos humanos e desrespeito ao direito internacional. Na Organização Mundial do Comércio (OMC), criada em 1995, verifica-se uma gigantesca manipulação do sistema, em detrimento dos países em desenvolvimento, para favorecimento de um núcleo central dos países desenvolvidos, notadamente dos EUA [13]. O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial funcionam como departamentos da Secretaria de Comércio dos EUA, promovendo objetivos estratégicos da política externa daquele país, mediante favorecimentos ou sanções, conforme apropriado, como ocorreu no seu vergonhoso tratamento da Argentina, no passado recente. No igualmente escandaloso caso da Organização para a Proibição das Armas Químicas, deu-se o afastamento de seu diretor-geral, o competente diplomata brasileiro, Embaixador José Maurício Bustani, induzido pelos EUA, motivado pelo cumprimento por parte do diplomata de seu dever e dos objetivos estatutários daquela organização, que eram antagônicos aos interesses nacionais daquele país [14].
Não se deve imaginar, contudo, que a formulação de tal política externa de abandono do exercício de desenvolvimento do direito internacional junto à comunidade das nações seja apenas um capricho idiossincrático de um tiranete obtuso, caricato e sanguinário. Tal formatação tem raízes bastante profundas no universo político e econômico dos EUA e, de um modo geral, independem da figura de seu presidente. Não obstante, mesmo dentro da lógica do poder bruto, faz-se necessária a consolidação de um jus imperium, que está sendo promovido por aquele país mediante uma rede de tratados desiguais tanto bilaterais como regionais. Este movimento compreende, mas não exclusivamente, os acordos comerciais e tenderá a acelerar-se num futuro próximo.
NOTAS DE RODAPÉ
(1) – Texto básico da apresentação feita por ocasião da solenidade de abertura do V Modelo da Organização das Nações Unidas em São Paulo, Brasil, no dia 12 de dezembro de 2003.
(2) – Advogado no Brasil, Inglaterra e Gales, e Portugal. Sócio sênior de Noronha Advogados. Árbitro do GATT e da OMC. Professor de pós-graduação de direito do comércio internacional.
(3) – Durval de Noronha Goyos jr., “Arbitration in the World Trade Organization”, Legal Observer, Miami, 2003, página 7.
(4) – J.P. Ridruejo, “Curso de Derecho Internacional Público y Organizaciones Internacionales”, Editorial Tecnos, Madrid, 1996, sexta edição.
(5) – Durval de Noronha Goyos jr., “Ensaios de Direito Internacional”, Observador Legal Editora, São Paulo, 2000, página 102.
(6) – V. Tratado de Alma Ata de 1991.
(7) – The National Security Strategy of the United States of America.
(8) – V. Michael Glennon, “Why the Security Council Failed”, in “Foreign Affairs”, Nova Iorque, EUA, maio/junho 2003, página 16 e seguintes.
(9) – V., neste particular, “Scrutiny by the courts could put a stop to this military adventurism”, por Robert Alexander, The Times’ Legal Supplement, Londres, 14 de Outubro, 2003.
(10) – V. Jean Ziegler, “Os Novos Senhores do Mundo e seus Opositores”, Terramar, Lisboa, páginas 39 e 40.
(11) – V. Rodaldo Sardenberg, “Iniciativas do Brasil na ONU no campo dos Direitos Humanos”, in O Estado de S. Paulo, 6 de janeiro de 2004, página 2.
(12) – V. “Summary of the ICFTU Report on Workers’ Rights in the United States”, International Conference of Free Trade Unions, July 14, 1999.
(13) – V. Durval de Noronha Goyos jr., “Arbitration in the World Trade Organization”, opere citato, página 39 e seguintes.
(14) – V. Phyllis Bennis, “Before & After: US Foreign Policy and the War on Terrorism”, Arris Books, Gloucestershire, Reino Unido, 2003, páginas 192 e 193.