A Rodada Doha da OMC e o Brasil

Publicado na Coluna “Ensaios” a convite do sítio “Última Instância – Revista Jurídica”, São Paulo, Brasil, 21 de maio de 2007.

A chamada Rodada Doha da OMC (Organização Mundial do Comércio) foi lançada na reunião ministerial deste organismo multilateral havida em Doha, no Qatar, em 14 de novembro de 2001. Foi essa a primeira ronda de negociações multilaterais de comércio havida no âmbito da OMC, já que as anteriores tomaram lugar sob a égide do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), de 1947(1).

A Rodada Doha foi lançada com um grande sentimento de frustração, por parte dos países em desenvolvimento, devido à ampla e irretorquível constatação de que a ronda precedente havia largamente beneficiado os países em desenvolvimento. Mais ainda, a opinião pública internacional passou a acompanhar as arcanas negociações multilaterais, ciente das fraudes perpetradas contra a Humanidade naquele foro.

A OMC foi criada e iniciou suas atividades em janeiro de 1995, como resultado do disposto nos tratados da Rodada Uruguai do GATT, assinados em abril de 1994 pelos então 125 países que concluíram as respectivas negociações. Ao mesmo tempo, anunciava-se com solenidade que uma nova era de prosperidade mundial havia se iniciado(2).

Em praticamente todo o mundo em desenvolvimento, incluindo em grandes países emergentes como o Brasil e a Índia, importantes lideranças políticas manifestaram grandes esperanças nos resultados da Rodada Uruguai(3). Parlamentares não mediram esforços para aprovar os textos dos respectivos tratados para internalização como direito doméstico.

Todavia, na realidade, os chamados Tratados de Marraqueche haviam formalizado uma grande derrota para os interesses dos países em desenvolvimento, que haviam sido, em grande medida, representados durante a ronda lançada em 1986 pelo chamado Grupo dos 11, liderado por Brasil e Índia. Note-se que naquela ocasião a República Popular da China encontrava-se excluída do sistema multilateral do comércio(4).

Durante a Rodada Uruguai, os países desenvolvidos desejavam incluir na formatação jurídica do sistema as chamadas “áreas novas”: serviços, investimentos e propriedade intelectual. O Grupo dos 11 opôs-se baseado no argumento de que não faria sentido incluir novos setores no sistema enquanto as tradicionais áreas agrícola e têxtil, de grande interesse para os países em desenvolvimento, permanecessem inexplicavelmente excluídas.

Mais ainda, o Grupo dos 11 argüiu que a inserção das novas áreas seria detrimental aos interesses dos países em desenvolvimento e favoreceria exclusivamente aqueles desenvolvidos. A resistência então havida da parte dos países emergentes, que foi a primeira na história do sistema multilateral do comércio, colocou o andamento das tratativas num impasse.

Após cinco anos de heróica resistência, os países em desenvolvimento acabaram por ceder, em face de uma sem precedentes campanha de desestabilização movida pelos países desenvolvidos, com o auxílio muito ativo de alguns organismos multilaterais, notadamente o FMI (Fundo Monetário Internacional).

Assim, a fase final da Rodada Uruguai foi caracterizada por uma grande omissão da parte dos países em desenvolvimento, o que permitiu aos países desenvolvidos moldar o sistema aos seus interesses e para seu benefício econômico. Enquanto as novas áreas eram incluídas no sistema com uma formatação destinada a promover a prosperidade seletiva nos países desenvolvidos, os setores agrícola e têxtil foram apenas nominalmente inseridos, já que as políticas de subsídios e quotas continuaram a vigorar nos países desenvolvidos.

Um aspecto, apenas aparentemente, positivo deu-se com relação ao sistema de resolução de disputas, que foi um depositário das esperanças de muitos no fim do unilateralismo e na ação arbitrária no âmbito do sistema multilateral do comércio. Tais esperanças comprovaram-se posteriormente infundadas, como veremos mais adiante no curso desta apresentação.

Uma vez que a formidável engrenagem para a promoção da prosperidade seletiva de uns poucos em detrimento dos muitos foi assentada, uma análise ominosa do Banco Mundial já previa que os resultados da Rodada Uruguai iriam beneficiar em 64% os países desenvolvidos e, em apenas 36% os países em desenvolvimento(5).

A realidade, contudo, provou-se muito pior. De acordo com um estudo pelo insuspeito FMI a respeito dos primeiros seis anos do novo sistema, i.e., até o final do ano 2000, os países desenvolvidos tinham ficado com nada menos de 73% dos benefícios da ronda, contra apenas 27% para os países em desenvolvimento(6).

Por sua vez, um estudo da ONU (Organização das Nações Unidas), de 2005, avaliou as vantagens dos países desenvolvidos em 80%. Tal desequilíbrio é mais sentido nas áreas novas, porém encontradiço em cada um dos Tratados de Marraqueche, da mesma forma em que nos trabalhos administrativos da própria OMC, como veremos a seguir.

O caso do acordo geral de comércio em serviços (GATS) O GATS foi estruturado de maneira a promover a venda internacional de serviços dos países desenvolvidos, nas áreas dos grandes negócios, como a bancária, a de serviços financeiros, a de telecomunicações etc.

No entanto, o prestador de serviços pessoa física, a modalidade de maior interesse para os países em desenvolvimento, foi excluída do sistema, não apenas do chamado modo 4 de prestação de serviços, como também a algumas profissões reguladas individualmente, como nas profissões legais e médicas.

Acresce que barreiras horizontais foram erguidas, notadamente na área de imigração, de maneira uniforme e consistente e contemporaneamente, pelos paises desenvolvidos, de maneira a impedir aos provedores de serviços dos paises em desenvolvimento acesso aos seus respectivos mercados. Durante a Rodada Uruguai, tive a oportunidade de denunciar tal pratica como o “cartel da vergonha” e de denunciar os seus efeitos aos paises em desenvolvimento(7).

A área de prestação de serviços individuais e uma de enorme potencial de interesses para os paises em desenvolvimento. Hoje, em muitos desses, as remessas de seus trabalhadores no exterior, a maioria dos quais em situação ilegal, excedem aos investimentos diretos estrangeiros, o que foi o caso do México, por exemplo, em 2004, quando recebeu US$ 18 bilhões em remessas e US$ 14 bilhões em investimentos. No mesmo ano, a Índia recebeu US$ 21 bilhões de seus trabalhadores no exterior e, o Brasil, US$ 3,6 bilhões(8). Para o ano de 2005, o Banco Mundial estimou um volume total de remessas de trabalhadores no exterior de US$ 167 bilhões(9).

Esse tratamento discriminatório permitiu aos países ricos o acesso aos mercados dos paises emergentes ate que conseguissem os primeiros a dominação do comercio mundial de serviços. De acordo com dados da UNCTAD, os paises desenvolvidos hoje controlam mais de 80% do comercio mundial de serviços. Mais ainda, as vendas internacionais de serviços dos paises ricos cresce aproximadamente três vezes mais do que aquelas dos paises em desenvolvimento, que correm o risco da alienação deste importante segmento econômico.

A formatação cruel, egoística e prejudicial do GATS para os paises em desenvolvimento é hoje amplamente percebida pela opinião publica internacional, o que contribuiu largamente para a ampla desmoralização da OMC. Dessa maneira, a UNCTAD clamou por um “maior e mais previsível acesso a mercado para os paises em desenvolvimento em…. serviços, particularmente no Modo 4(10)”. Contudo, a Declaração Ministerial de Doha(11) é omissa a respeito, tratando de forma tanto genérica quanto descompromissada o movimento de pessoas naturais.

Mencione-se, ainda que o GATS não contempla a existência de salvaguardas na área de serviços. Salvaguardas são uma medida de defesa comercial utilizada na área de trocas de mercadorias quando a indústria domestica perde sua competitividade contra os concorrentes estrangeiros, em face de um surto de importações.

A injustificável e inexplicável ausência de salvaguardas no setor de serviços, desde uma perspectiva lógica, faz com que os paises em desenvolvimento tornem-se ainda mais vulneráveis a concorrência estrangeira e sem meios de fazer frente aos danos causados por um sistema já não eqüitativo e injusto.

O acordo agricultura

O Acordo Agricultura convalidou a manutenção dos subsídios legais e ilegais mantidos pelos paises desenvolvidos na ordem de US$ 1 bilhão por dia. Tais subsídios distorcem os preços das mercadorias agrícolas e impedem o acesso da produção dos paises emergentes não apenas aos mercados que subsidiam, mas também para os mercados de terceiros paises e, em alguns casos, ameaçam devastar ou aniquilam os produtores dos paises em desenvolvimento em seus próprios mercados(12).

Os Estados Unidos da América, por exemplo, tem hoje mais de dez programas diretos de subsídios e mais de dez de natureza indireta para a área agrícola. Em valores absolutos, os subsídios americanos hoje atingem o montante estarrecedor de US$ 150 bilhões, para uma produção agrícola total de US$ 128 bilhões.

Alguns desses subsídios são desembolsados sob o regime da chamada “caixa verde”, mas não deixam de ser ilegais pela roupagem especiosa. Em algumas áreas, como no algodão, as distorções de mercado tornaram-se grotescas e os danos aos países em desenvolvimento massivos. Os números indicados anteriormente comprovam que, apesar da retórica ilusória do livre comercio, os EUA deixaram de ser uma economia de mercado no setor agrícola.

A situação em nada difere na União Européia, no Japão e na Suíça. A Política Agrícola Comum (PAC) da EU é um dos programas mais devastadores de subsídios aos livres mercados e as possibilidades de desenvolvimento dos paises emergentes. Assim, os paises desenvolvidos colocam seus produtos no exterior com margens de dumping caracterizadas por preços que são, em media, um terço abaixo dos custos locais.

Tais práticas escandalosas provocaram a justa indignação na opinião publica internacional. A UNCTAD, por exemplo, clamou pela “eliminação dos subsídios à exportação e pelo apoio domestico substancial na agricultura, numa data credível”(13). Acresce que a mesma agencia da ONU apoiou a “urgente eliminação de subsídios distorcivos ao comercio para o algodão e um pacote de desenvolvimento para os produtores desta mercadoria”(14).

Um dos elementos objetivos mais claros a constituir um obstáculo à conclusão da presente Rodada Doha é exatamente o setor agrícola, que causou o recente impasse responsável pela suspensão das negociações, já retomadas. Desgraçadamente, a Declaração Ministerial de Doha coloca o objetivo de liberalização do setor agrícola no “longo prazo”(15).

O Brasil, como não poderia deixar de ser para um dos maiores e mais produtivos produtores agrícolas no mundo, colocou a questão agrícola na pauta central de suas negociações no âmbito da Rodada Doa, ora ainda em andamento.

O acordo sobre aspectos relacionados ao comercio dos direitos de propriedade intelectual (TRIPS)

A inclusão dos temas de propriedade intelectual no âmbito do sistema multilateral do comercio representou mais uma vitória dos oligopólios internacionais, em detrimento dos interesses dos paises em desenvolvimento e da própria Humanidade.

De fato, como lembro em meu livro “A OMC e os Tratados da Rodada Uruguai”16, o TRIPS trata de matéria já coberta há mais de cem anos por outros tratados internacionais e foi celebrado à margem de um outro organismo multilateral devotado ao tem, a OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual). A OMPI foi fundada em 1967 e já contava com mais membros do que o numero de Estados participantes da Rodada Uruguai do GATT.

Ocorre, todavia, que os países desenvolvidos andavam descontentes com a OMPI, porque ela agia com independência e equilíbrio nas questões atinentes à propriedade intelectual. Note-se que, no âmbito da OMPI, sempre se buscou um equilíbrio entre o monopólio das patentes e o impacto social do seu uso(17).

A referida postura descontentava em muito os paises desenvolvidos, que buscavam a firmação absoluta do monopólio, bem como a exeqüibilidade internacional dos direitos dele decorrentes, em intransigente defesa de interesses de fortes setores dos grandes negócios de suas economias. Assim, os países ricos buscaram, e conseguiram, a inclusão da área de propriedade intelectual no regime multilateral do comercio, apesar da existência de um organismo internacional dedicado ao tema. Essa iniciativa fora inicialmente combatida pelo Brasil, na liderança do chamado Grupo dos 11, sob a inspirada liderança intelectual do embaixador Paulo Nogueira Batista, de saudosa memória.

O professor australiano John Ralton Saul comentou a respeito que “se a criação da OMC em 1995 foi a ultima clara vitória para a globalização, o ponto especifico de maior alcance foi provavelmente a inclusão do regime de propriedade intelectual no sistema de comercio. A estrutura da propriedade intelectual, agora consagrada num patamar internacional, cria níveis de conhecimento que os recém chegados à pesquisa estão impossibilitados de alcançar. Este é um sinal de um sistema efetivo de oligopólio”(18). Note-se que, já no final da Rodada Uruguai, cinco países desenvolvidos já detinham 84% das novas patentes(19).

Acresce que o TRIPS subordinou as autoridades de propriedade intelectual de direito interno dos paises em desenvolvimento àquelas dos principais paises desenvolvidos. Isso se obteve através da institucionalização do conceito denominado pipeline, através o qual o primeiro pedido de privilegio da automaticamente a proteção internacional.

Por outro lado, o TRIPS falhou clamorosamente ao deixar de tratar da importante questão da implementação de políticas de saúde publica, uma omissão imperdoável que afeta adversamente os direitos humanos de bilhões de pessoas. Essa matéria tornou-se mais um foco crescente de conflitos entre os paises em desenvolvimento e o país desenvolvido, como evidenciado pela questão farmacêutica havida entre Brasil e EUA, levada perante a OMC.

Tendo em vista essa preocupante situação, a UNCTAD reconheceu a necessidade de se encontrar, no âmbito da Rodada Doha, uma forma tanto eficaz quanto permanente de lidar com o conflito entre o TRIPS e a saúde pública, de modo a facilitar o acesso a medicação essencial.

Uma outra grande omissão no TRIPS, de interesse dos paises em desenvolvimento, diz respeito à falta de tratamento jurídico do conhecimento tradicional, particularmente na área da medicina. Mais ainda, o TRIPS deixou de tratar da biopirataria, um conceito já existente durante a Rodada Uruguai e, principalmente, reconhecido pelo direito internacional, na CDB (Convenção sobre a Diversidade Biológica), assinada no Rio de Janeiro em 1992.

Segundo a CDB, o acesso às fontes genéticas deve ser feito com base no consentimento, tanto anterior quanto informado, do país de origem. As partes signatárias da convenção obrigam-se também “a tomar medidas legislativas, administrativas, ou políticas com o objetivo de partilhar de uma maneira justa e eqüitativa os resultados de pesquisa e desenvolvimento e dos benefícios decorrentes do uso comercial, ou outro, dos recursos genéticos”.

De maneira a suprir essa imperdoável lacuna no tocante à biopirataria, alguns paises em desenvolvimento propuseram uma alteração ao TRIPS de modo a incorporar os conceitos da CDB. Tal iniciativa foi recusada pela UE, EUA, Canadá, Suíça, Japão, Austrália, Coréia e Nova Zelândia. Por outro lado, a UE, EUA, Japão e Suíça propuseram na reunião do Conselho do TRIPS, realizada em outubro de 2006, um adensamento de medidas no combate à contrafação e à pirataria.

Essa proposta dos paises desenvolvidos ignora a biopirataria, que é convenientemente excluída do problema percebido, quando deveria estar no cerne da questão. Os mais básicos princípios de direito internacional, bem como a decência humana, impões que não se pode considerar qualquer nova alteração no regime jurídico do TRIPS, enquanto as assimetrias não forem resolvidas e a questão da biopirataria não receber um tratamento compatível com o CDB.

Nesse ponto, vale ainda mencionar que não há nos tratados da OMC nenhum dispositivo a regular os conflitos de convenções, como no caso do TRIPS, com outros acordos internacionais, em particular aqueles a regular as questões de desenvolvimento e direitos humanos, que ocorrem ocasionalmente.

O acordo sobre medidas de investimento relacionadas com o comércio (TRIMS)

O Acordo TRIMS tratou de atender as pretensões dos países desenvolvidos de derrogar um grande número de políticas permitidas pelo direito internacional com o objetivo de promover o crescimento econômico, muitas das quais tinham sido desenvolvidas e/ou recomendadas pela própria ONU, ou ainda por outras agências multilaterais. Dentre tais práticas transformadas em ilegais, encontram-se os requisitos de substituição de importações, tais como as obrigações de conteúdo local, restrições a remessas financeiras; compromissos de exportação, necessidade de participação do capital nacional etc.

No entanto, o TRIMS deixou de tratar dos efeitos na competitividade internacional do acesso a fontes de créditos baratos, tais como aqueles existentes para as empresas situadas nos países desenvolvidos. Da mesma forma, o TRIMS absteve-se de tratar do impacto na competitividade internacional das grandes compras governamentais, como aquelas do setor militar, na escala e preços das empresas dos países ricos.

Mais ainda, falhou o TRIMS por não tratar das dotações dadas a universidades e outros centros de pesquisa para o desenvolvimento de produtos para a indústria privada, prática existente nos países desenvolvidos. Da mesma forma, o peso da infra-estrutura disponibilizada pelos países desenvolvidos às empresas neles situados deixou de ser tratado como subsídio.

Acresce que o TRIMS omitiu-se ainda no tratamento da legislação de direito interno dos países desenvolvidos que não apenas apóiam como incentivam a fuga de capitais, em geral, e a fraude e o crime financeiro, em particular, quando ocorrem nos países em desenvolvimento e beneficiam o sistema bancário internacional.

Dessa maneira, o TRIMS assim perdeu a oportunidade de estabelecer um alicerce para a cooperação internacional nas áreas fiscal e financeira, um problema muito sério mundialmente e não apenas nos países emergentes. Igualmente, o TRIMS ignorou os reclamos de desenvolvimento e prosperidade da maior parte da população global.

O acordo sobre subsídios e medidas compensatórias

Como já tive a oportunidade de observar, “a questão dos subsídios é, sem sombra de dúvidas, uma das de maior relevância a afetar o comércio internacional, por distorcer as trocas, penalizar os consumidores, aniquilar a economia dos países menos desenvolvidos, onerar as finanças públicas, além de semear a imoralidade e sua filha bastarda, a corrupção, em escala global”(20).

No entanto, o Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias trata dos subsídios praticados pelos países em desenvolvimento, mais deixa de capitular aqueles verdadeiramente devastadores postos em prática pelos países desenvolvidos.

Acresce que o acordo omite-se ainda em permitir até mesmo as mais básicas alternativas para que os países em desenvolvimento possam proteger suas indústrias nascentes, de tal maneira que cheguem um dia a um patamar de competitividade internacional.

Todavia, por outro lado, o acordo deixa de capitular como subsídios proibidos o crédito barato, o crédito à exportação, a escala gerada por compras governamentais, a custo barato de tecnologia; dotações casadas para a pesquisa em programas universidade/empresa, dentre outros. Tais práticas são hoje utilizadas pelos países desenvolvidos para ganhar vantagens competitivas decisivas e, assim, alienar produtores dos países em desenvolvimento dos mercados internacionais.

O acordo anti-dumping

O acordo anti-dumping permitiu a manutenção, pelos EUA, de sua legislação doméstica tanto idiossincrática quanto protecionista e contrária aos mais básicos princípios de direito internacional, pois permite àquele país impor direitos protecionistas contra todas as importações contra as quais não consiga competir.

Essa situação agravou-se in extremis devido ao fato de que a apreciação do mérito das decisões administrativas de direito doméstico, em questões anti-dumping, foi excluída da competência do sistema de resolução de disputas da OMC. Tal dispositivo, ao mesmo tempo imoral e contrário aos mais comezinhos princípios de direito internacional, permite aos EUA a continuidade da prática do arbítrio unilateral, sem a contenção da lei. De fato, os países em desenvolvimento são as maiores vítimas do unilateralismo das grandes potências, já que são mais vulneráveis e têm menor capacidade de resistência efetiva.

Assim, os direitos anti-dumping têm sido freqüentemente a fonte dos chamados picos tarifários, que representam um dos maiores obstáculos para o acesso dos produtos competitivos dos países em desenvolvimento aos mercados dos países desenvolvidos.

O Brasil é uma das grandes vítimas dessa situação, com os EUA, já que tem vários produtos assim penalizados, como o açúcar, o etanol, o aço, os calçados, os camarões, o suco de laranja etc.

O sistema de resolução de disputas

Até mesmo o sistema de resolução de disputas da OMC, que tantas esperanças trouxera no final da Rodada Uruguai, foi um completo desapontamento da perspectiva da afirmação do estado de direito nas relações comerciais multilaterais. Sempre que o ORD (Órgão de Resolução de Disputas) não se posicionou contrário aos países em desenvolvimento, seus laudos favoráveis não puderam ser executados contra os países desenvolvidos(21).

Isso ocorreu porque falhas sistêmicas no entendimento sobre resolução de disputas não permitem a execução das decisões do ORD, ditas “recomendações” (sic). Por outro lado, as decisões favoráveis aos países desenvolvidos contra os países em desenvolvimento foram sempre executadas, devido a pressões políticas unilaterais e não reconhecidas pelo sistema.

Acresce que o sistema tem por objetivo “a preservação dos direitos e obrigações dos Membros, sob os apósitos acordos, e esclarecer as respectivas provisões”(22). O Entendimento ainda explicitamente proíbe decisões do ORD que “acresçam ou diminuam os direitos e obrigações elencados nos respectivos acordos”(23).

Noutras palavras, o ORD é expressamente desautorizado a criar jurisprudência com eficácia de lei, o que também é consistente com o direito internacional em geral e com os estatutos(24) e jurisprudência da Corte Internacional de Justiça.

Todavia, o ORD tem precisamente procurado criar jurisprudência com efeito de direito internacional, desde sua criação, o que freqüentemente configura-se numa usurpação de direitos contrária aos interesses dos países em desenvolvimento e às normas internacionais de regência da matéria, geralmente aceitas.

A situação é agravada pelo fato de que tradicionalmente os membros da divisão jurídica do secretariado da OMC são indicados pelos países desenvolvidos, com uma predileção tanto estranha como injustificável para uma formação em direito norte-americano.

A predominância de funcionários nacionais de países desenvolvidos é uma regra na OMC. No início de 2005, dos 601 membros do secretariado, nada menos que 360 eram originários da União Européia. Outros 95 funcionários eram nacionais de outros países desenvolvidos, o que representa um grave desequilíbrio funcional(25).

O ORD tem sido acusado de ser objeto de manipulação da parte dos grandes países desenvolvidos, particularmente os EUA, e algumas de suas decisões sofreram denúncias no sentido de que foram escritas pela divisão jurídica do secretariado da OMC, sempre controlada pelos poderes hegemônicos, ao invés de pelos árbitros designados para as respectivas disputas.

Hoje, a falta de credibilidade do Entendimento é tal que, no esforço inconclusivo feito no âmbito da Rodada Doha, foram apresentadas sugestões pelos Estados membros para alterações de todos os seus 24 artigos e dois anexos. O Brasil, um dos países mais prejudicados pelo sistema, não apresentou nenhuma sugestão substancial de alteração.

De acordo com a Declaração Ministerial de Doha, a revisão do Entendimento deveria ter sido finalizada até maio de 2003, o que deixou de ocorrer por falta de consenso. Assim, é preocupante que negociações noutras áreas prossigam, enquanto a reforma do sistema, de vital importância para os países em desenvolvimento, e para o Brasil, é abandonada.

Conclusões

Decorre do acima exposto, com límpida clareza, que a ordem jurídica da OMC tem sido altamente detrimental à causa da Justiça e aos interesses dos países em desenvolvimento. Vimos como a nova formatação do sistema multilateral do comércio promoveu a insana lógica da prosperidade seletiva de uns poucos em detrimento dos muitos.

No entanto, os arautos do imperialismo têm procurado promover a retórica especiosa do livre comércio como o grande remédio, uma verdadeira panacéia, a tratar todos os males que afligem a Humanidade. Essa mensagem não tem iludido, todavia, a opinião pública internacional, que bem se apercebido da triste realidade.

Assim, na verdade, sob o manto da retórica vazia e por detrás da ilusória respeitabilidade jurídica, temos um regime desigual e iníquo em que os países desenvolvidos asseguram-se de meios de crescimento econômico, às expensas das populações dos países em desenvolvimento.

Enquanto os países desenvolvidos mantém suas economias fechadas através das barreiras horizontais, picos tarifários, barreiras não tarifárias diversas, leis injustas, subsídios massacrantes, ação unilateral, os países em desenvolvimento são obrigados a seguir políticas prejudiciais aos interesses de seus povos.

De fato, para os países em desenvolvimento, os poderes hegemônicos reservam a grotesca equação de que quanto mais miserável for sua população, maior será sua competitividade internacional no setor industrial. Os países desenvolvidos manipulam diversos organismos internacionais, e não apenas a OMC, para impor políticas fundadas nessa premissa sofística.

Em oposição a essa visão deturpada, a UNCTAD promoveu o chamado Consenso de São Paulo, em 2004, no sentido de que o comércio internacional não deve ser um fim em si próprio, mas um meio de se atingir objetivos de desenvolvimento econômico, incluindo a redução da pobreza.

Até o momento, o sistema multilateral do comércio da OMC tem falhado miseravelmente em tal desafio e assim caiu na infâmia. Até o final de 2006, mais de 300 tratados preferenciais de comércio haviam sido assinados. Enquanto o sistema multilateral estiver atolado na lama da promoção da injustiça, da miséria e da iniqüidade, haverá uma natural tendência de proliferação dos acordos regionais ou bilaterais, particularmente entre os países em desenvolvimento.

No entanto, não devem cessar os esforços para a promoção de uma ordem jurídica multilateral que promova a causa da Justiça nas relações comerciais internacionais.

(1) – Texto básico da aula magna apresentada na Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, Brasil, em 3 de maio de 2007. Pronunciamento semelhante foi feito em seminário realizado na Unesp, em Marília, São Paulo, em 24 de novembro de 2006 e, em língua inglesa, na Universidade Jawarhalal Nehru, em Nova Delhi, Índia, em 23 de novembro de 2005.
(2) – Veja-se, por exemplo, Durval de Noronha Goyos, A OMC e os Tratados da Rodada Uruguai, Observador Legal Editora, São Paulo, 1995, página 15 et seq.
(3) – Para um histórico das negociações da Rodada Uruguai, veja-se Durval de Noronha Goyos, GATT, MERCOSUL & NAFTA, São Paulo, 1996, segunda edição, página 17 et seq.
(4) – A China somente veio a aceder à OMC no dia 11 de dezembro de 2001. A respeito das negociações de acessão da China ao sistema multilateral do comércio, V., por Durval de Noronha Goyos, “A China Pós-OMC, Direito e Comércio”, Observador Legal Editora, São Paulo, 2002.
(5) – Ian Goldin et al, Trade Liberalization: Global Economic Implications, The World Bank and the OECD, 1993.
(6) – “Meeting in Qatar looks liket to disappoint the WTO optimists”, The Times, Londres, 23 de Outubro de 2001, página 26.
(7) – Durval de Noronha Goyos, “GATT: Derusirt Progress”, Lawyers in Europe, Londres, Reino Unido, Novembro de 1992.
(8) – IMF BoP Yearbook, 2004.
(9) – Inclui os montantes remetidos por cidadãos dos países desenvolvidos no exterior. V. “Migrant’s wages help home country more than aid cash”, in The Times, Londres, 17 de novembro de 2005.
(10) – Review of developments and issues in the post-Doha work programme of particular concern to developing countries, by Mrs. Lakshmi Puri, director, Division on International Trade in Goods, Services and Commodities, Trade and Development Board, 52nd session.
(11) – Adotada em 14 de novembro de 2001, item 15.
(12) – Durval de Noronha Goyos, “The WTO and the consequences of globalization for developing countries”, in La Globalization de la loi e les professions juridiques: Opportunités et Obstacles, Annals of the Congress of the International Union of Lawyers, Lisbon, 2003, page 1474 et seq.
(13) – Lakshmi Puri, op. cit.
(14) – Lakshmi Puri, op. cit.
(15) – Declaração Ministerial de Doha, de 14 de novembro de 2001, item 13.
(16) – Op. cit.
(17) – V. Adhemar Bahadian e Maurício Carvalho Lyrio, “Um balance del Alca”, in Archivos del Presente, Buenos Aires, Argentina, página 193 et seq.
(18) – John Ralston Saul, “The collapse of globalism”, Atlantic Books, London, 2005, page 163 et. seq.
(19) – V. Durval de Noronha Goyos, O Oligopólio da Propriedade Intelectual, in http://ultimainstancia.uol.com.br/colunas/ler_noticia.php?idNoticia=20733&kw=O+Oligop%F3lio+da+Propriedade+Intelectual
(20) – Durval de Noronha Goyos, A OMC e os Tratados da Rodada Uruguai, Observador Legal Editora, São Paulo, 1995, página 85.
(21) – A respeito da questão da execução dos laudos arbitrais da OMC, V. Durval de Noronha Goyos, “Arbitration in the World Trade Organization”, Miami, 2003, página 116 et seq.
(22) – Entendimento sobre Resolução de Disputas, artigo 3.2.
(23) – Entendimento sobre Resolução de Disputas, artigo 19.2.
(24) – Estatutos da Corte Internacional de Justiça, artigo 59.
(25) – V. Durval de Noronha Goyos, “O Novo Direito Internacional Público”, Observador Legal Editora, São Paulo, 2005, página 146.