A sharia como fonte única do direito constitucional

Publicado na Coluna Semanal do Dr. Noronha a convite do sítio “Última Instância – Revista Jurídica”, São Paulo, Brasil, 16 de fevereiro de 2005.

LONDRES – As eleições havidas recentemente no Iraque padeceram de sérios vícios de legitimidade. Contudo, para desapontamento das potências responsáveis pela ocupação ilegal do país, face ao direito internacional, seu resultado indica uma vitória expressiva das forças fundamentalistas xiitas lideradas pelo aiatolá Ali Al Sistani. Esse líder político e religioso, tendo proclamado sua vitória eleitoral, anunciou o seu desejo de que a assembléia constituinte iraquiana promulgue uma constituição tendo como fonte única a sharia.

O direito islâmico é o terceiro maior sistema jurídico existente no mundo, após o direito positivo de tradição latina, que hoje tem raízes até mesmo na China e no Japão, e o direito comum inglês, que prevalece na comunidade britânica e nos Estados Unidos da América. Mais de quarenta países hoje em dia inspiram total ou parcialmente suas leis na religião muçulmana, dentre eles a Indonésia, a Malásia, a Nigéria, o Egito, a Turquia, o Irã, o Paquistão, Bangladesh, a Arábia Saudita, a Bósnia e a Albânia.

As fontes da sharia (o caminho a seguir) são, em primeiro lugar, o Corão, o livro sagrado dos muçulmanos, o qual traz cerca de 600 versículos de temas jurídicos num universo total de 6.237. Depois vem a suna (tradição), coletânea de preceitos de caráter obrigatório extraídos da prática do Profeta Maomé, seguida pelos hadith, normas de comportamento ditadas pela tradição sacra, cujo número correto é incerto, variando de 8 a 300 mil.

Devido aos vínculos freqüentemente bastante próximos entre os delitos e os pecados, conforme definidos pelo Corão, muitas vezes o discernimento clara entre ambos resulta de difícil empreitada. Essas normas penais coexistem com outras de natureza diversa, como as tributárias por exemplo, que se originam em quase sua totalidade em fontes diversas do livro sagrado, tais quais os decretos do soberano (qanun).

A questão da confusão entre os pecados e os delitos é ainda mais complexa ao se considerar que, à semelhança do Cristianismo e ao contrário do Judaísmo, o Islão admite a existência do céu e do inferno.

De acordo com a lei islâmica, os pecados ou delitos são divisíveis em três categorias básicas. A primeira, os hudud, compreende inter alia a apostasia e o adultério, puníveis com a flagelação ou a lapidação. A segunda categoria compreende os qisas, ou delitos de sangue, puníveis com a lei de talião, a indenização ou o cárcere. Em alguns países onde prevalece a ortodoxia, como na Arábia Saudita, há a pena capital, por decapitação pública. Noutros mais liberais, como na Turquia, foi abolida a pena de morte.

Na terceira categoria, os tazir, situam-se os delitos ou pecados mais leves, como o furto, a sodomia, o consumo de bebidas alcoólicas, o falso testemunho e a desobediência aos pais ou ao marido. Esses últimos são puníveis à ampla discrição do magistrado, de forma mais branda ou mais severa, dependendo do caso, da jurisdição e da natureza idiossincrática do julgador.

Por outro lado, o papel dos magistrados confunde-se com aquele dos líderes religiosos, uma agravante da simbiose entre Estado e Igreja. Devido às diversas correntes teológicas de interpretação da sharia, ocorrem com freqüência divergências jurisprudenciais decorrentes de visões religiosas distintas, vindas por exemplo de intérpretes conservadores ou reformadores. Tais magistrados ou líderes religiosos podem ainda sponte própria proclamar fatwas, éditos religiosos decretados de acordo com a lei islâmica.

De um modo geral, os direitos das mulheres, nos regimes de inspiração islâmica não têm correspondência com aqueles decorrentes dos ordenamentos jurídicos existentes nas sociedades ocidentais contemporâneas. Quanto mais ortodoxo o regime, menores serão os direitos das mulheres, vistas elas nesses casos como simples complementos da vida dos homens.

Por sua vez, a sharia veda a usura e o anatocismo. Isso não impede, todavia, a prática bancária. Um empréstimo com hipoteca, por exemplo, é feito mediante a compra desagiada do imóvel, com cláusula de retrovenda a tempo certo. Menciono, por último, correndo o risco de dar uma idéia de tributação adicional às vorazes autoridades fiscais brasileiras, a taxa a ser paga pelas mulheres (e destinada a fins caritativos) quando não usam suas jóias.