Publicado na Coluna Semanal do Dr. Noronha a convite do sítio “Última Instância – Revista Jurídica”, São Paulo, Brasil, 11 de maio de 2005.
LONDRES – No mesmo dia em que são divulgados os resultados das eleições gerais inglesas como dando a vitória ao Partido Trabalhista, com 36,2% do total dos votos apurados, é igualmente publicada a denúncia de que o Reino Unido, tal qual os Estados Unidos da América, praticam a tortura como política oficial de seus governos. O líder do Partido Trabalhista já sofria acusações públicas de prática de crime internacional, por sua responsabilidade na guerra de agressão no Iraque. A situação apresenta-se agora mais grave.
Segundo artigo publicado pelo advogado Phil Shiner no jornal The Guardian, em 6 de maio de 2005, “o governo britânico e suas forças armadas são responsáveis por abusos e tortura sistemáticas, em alguns casos até a morte, de civis inocentes no Iraque. O mesmo ocorre nos EUA. Mas em ambos os países persiste uma campanha de negação coletiva nacional e de relativo silêncio”.
A prática da tortura é vedada já pelo direito internacional costumeiro, que tem a mais alta hierarquia nas normas internacionais, tendo sido consagrada em julgados desde o início do século 20. Assim, a tipificação da tortura como crime de guerra já aparecia nas quatro Convenções de Genebra de 1949. Originalmente, havia uma interpretação restritiva do dispositivo, que limitava a tipificação apósita aos conflitos armados internacionais. A partir do início da década de 90, no entanto, o tipo foi estendido também aos conflitos internos, por decisões dos tribunais criminais internacionais para a Iugoslávia e para Ruanda.
Em 1998, o Estatuto de Roma da Corte Internacional de Justiça (o Estatuto) dirimiu quaisquer dúvidas porventura ainda eventualmente existentes sobre a abrangência da capitulação da tortura como crime contra a humanidade, ex vi do disposto no artigo 7 f da referida convenção internacional. Tais crimes são de responsabilidade dos agentes diretos e de seus superiores (artigo 28), bem como são ademais imprescritíveis, conforme o artigo 29 do Estatuto. As sanções potenciais cominadas incluem a perda da liberdade por prazo determinado não superior a 30 anos ou, mesmo ainda, a prisão perpétua, de acordo com o disposto no artigo 77 do Estatuto.
Para os fins do direito interno britânico, a Lei de Direitos a Lei de Direitos Humanos de 1998 incorporou no ordenamento jurídico municipal o texto integral disposto na Convenção Européia de Direitos Humanos. Em seu artigo 2º, a Lei de 1998 assegura a proteção contra a tortura, o tratamento desumano ou degradante ou a punição desumana. A lei, por conseguinte, veda o espancamento, o confinamento solitário, a privação de água e alimentos, práticas que parecem estar sendo aplicadas, segundo amplamente noticiado, de maneira consistente por agentes governamentais dos EUA e do Reino Unido.
A lei britânica assegura a revisão judicial de tais práticas, com apuração de responsabilidades para eventual punição dos autores, bem como a determinação de eventuais indenizações a serem pagas. No momento, já há um pleito a respeito movido por um grupo de mais de 40 alegadas vítimas dessa prática nos tribunais britânicos. A revisão judicial no Reino Unido, todavia, não exclui o exame da questão no âmbito multilateral da Corte Internacional de Justiça.
Comentam os observadores políticos locais que o desmoralizado líder do Partido Trabalhista não deverá permanecer muito mais tempo na função de primeiro-ministro britânico. Ainda relativamente jovem, o espectro de dever responder a ações criminais do âmbito da Corte Internacional de Justiça o acompanhará pelo resto de seus dias. Um triste fim se preanuncia.