Publicado na versão eletrônica no sítio do JB On Line (http:\\www.jbonline.com.br), bem como na versão impressa no Jornal do Brasil, caderno Internacional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 18 de dezembro de 2005.
Com o fracasso, nesta semana, da reunião ministerial de Hong Kong, sofreu mais um duro golpe o sistema multilateral da Organização Mundial do Comércio (OMC), fundada em 1995 como decorrência dos chamados Tratados de Marrakech, assinados em 1994 ao final da Rodada Uruguai do antigo Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT). Antes desse malogro, dois graves insucessos já haviam ocorrido por ocasião das reuniões (bienais) ministeriais de Seattle, em 1999, quando se pretendeu lançar uma nova rodada de negociações, e em 2003, já no âmbito da Rodada Doha de Desenvolvimento, lançada no Qatar, em novembro de 2001.
O lançamento da Rodada Doha seguiu-se à clara constatação de que o regime jurídico da OMC continha a maior fraude jamais perpetrada contra os países em desenvolvimento. Assim, a OMC foi configurada de modo a promover a prosperidade seletiva de uns poucos países desenvolvidos, em detrimento da maioria dos 149 estados membros do sistema multilateral de comércio, os países em desenvolvimento.
Já no final da Rodada Uruguai, o Banco Mundial advertia que 64% dos ganhos da ronda de negociações caberiam aos países desenvolvidos. A realidade provou-se muito pior: em 2001, o insuspeito Fundo Monetário Internacional (FMI) constatou que 73% dos benefícios couberam aos países desenvolvidos. Neste ano, a Organização das Nações Unidas (ONU) colocou os proveitos dos países ricos em 80%.
De fato, a formatação da OMC favoreceu os países ricos de múltiplas formas, a começar pela inclusão das chamadas áreas novas: serviços, propriedade intelectual e investimentos. No setor de serviços, foram incluídas no regime multilateral as modalidades de interesse dos países desenvolvidos, i.e., das grandes empresas multinacionais, enquanto as modalidades de interesses dos países em desenvolvimento ficaram excluídas.
Como resultado, os países ricos dominam hoje, segundo dados da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), nada menos de 80% do mercado internacional de serviços. Ainda pior é o fato de que o crescimento das vendas internacionais de serviços é três vezes maior para os países desenvolvidos.
Isso nos leva ao corolário necessário de que, com o tempo, os países em desenvolvimento serão alienados deste importante segmento, a menos que profundas reformas sejam realizadas. Hoje, em todos os países em desenvolvimento, a participação do setor de serviços no PIB é de, ao menos, o dobro daquelas da agricultura e da indústria.
Na área da propriedade intelectual, o chamado Acordo Trips transformou a OMC numa agência de coleta de royalties para as grandes empresas multinacionais; promoveu uma orgia de subsídios governamentais nos países desenvolvidos; desenvolveu a concentração das inovações nos países ricos; encorajou práticas anticoncorrenciais e de concentração de mercado; e, vergonhosamente, denegou os direitos humanos de bilhões de pessoas na saúde pública.
No tocante às chamadas medidas de investimento relacionadas com o comércio, objeto do Acordo Trims, as políticas de desenvolvimento tradicionalmente aplicadas pelos países pobres foram proibidas, mas a questão da assimetria no acesso e custo do crédito, por exemplo, não foi considerada. A cooperação no combate à fraude fiscal não foi promovida. Da mesma forma, a questão do impacto das compras governamentais, notadamente no setor militar, na escala das empresas, não foi tratada.
Por sua vez, o sistema de resolução de disputas da OMC, que tantas esperanças havia dado aos países em desenvolvimento, foi um grande desapontamento. O sistema, desde o início controlado pelas agências de inteligência dos países hegemônicos, caracterizou-se pela falta de transparência; pela usurpação dos direitos dos países em desenvolvimento; por decisões disparatadas; e pela não-execução de suas decisões.
A necessidade da reforma do sistema de resolução de disputas da OMC, essencial para o reconhecimento dos direitos e combate aos abusos, foi amplamente reconhecida pelos estados membros do sistema multilateral do comércio. Assim, foram sugeridas modificações para todos os artigos e anexos do Entendimento sobre a Resolução de Disputas, mas o processo de reforma encontra-se emperrado desde 2003 e não faz parte do chamado compromisso único da Rodada Doha.
O maior foco das negociações no âmbito da Rodada Doha, inclusive para o Brasil, foi colocado no setor agrícola. De fato, esse setor apresenta distorções gravíssimas com os escandalosos subsídios de aproximadamente US$ 1 bilhão ao dia, desembolsados pelos países desenvolvidos, que promovem a miséria e a desesperança numa escala global. Apenas a União Européia dedica 43% do seu orçamento aos subsídios agrícolas.
Todavia, a área agrícola não representa, nem de longe, a única, nem a maior anomalia de um sistema multilateral do comércio que promove a insustentável lógica da prosperidade seletiva de uns poucos, em detrimento dos muitos. Esse sistema, já largamente percebido como injusto e cruel pela opinião pública internacional, carece de uma reforma muito mais profunda. Enquanto ela não ocorre, sua crise de credibilidade irá comprometer o desenvolvimento do direito internacional.