Entrevista feita pelo jornalista João Silvestre, publicada no Jornal “O Semanário Ecónomico”, Lisboa, Portugal, 26 de maio de 2006.
Por: João Silvestre do Jornal “O Semanário Ecónomico”
O árbitro da Organização Mundial de Comércio considera que os países desenvolvidos estão a bloquear a liberalização do comércio para evitar a perda de benefícios. Durval de Noronha Goyos Jr não está, por isso, muito optimista em relação à conclusão da ronda de Doha.
A ronda de Doha tinha como meta inicial o ano de 2006 mas foi adiada. O que é que falhou?
A ronda de Doha foi lançada com o objectivo de promover a maior participação dos países em desenvolvimento no sistema multilateral de comércio. Ao mesmo tempo, visava reduzir as disparidades resultantes da ronda do Uruguai que a precedeu. Daí ter sido chamada a ronda do desenvolvimento. O Banco Mundial indicava que cerca de 62% dos benefícios da ronda do Uruguai caberiam aos países desenvolvidos.
Isso porque não se deu a devida atenção à agricultura?
Não somente à agricultura mas também às áreas novas. O sector de serviços – que é uma das áreas novas – está a testemunhar uma quase total exclusão dos países em desenvolvimento. Cerca de 80% do comércio internacional de serviços é feito pelos países desenvolvidos. Se continuar esta tendência, isso irá representar a virtual exclusão dos países em desenvolvimento do sector de serviços que hoje representa mais de metade das suas economias.
E é principalmente penalizador para países como o Brasil ou Índia.
Exactamente. Hoje, o sector dos serviços no Brasil representa 52% do PIB, na Índia cerca de 60% e na China mais de 50%.
Atribuíria a culpa do insucesso aos países desenvolvidos que não querem perder os seus ganhos?
Sim. São os grandes beneficiários e procuram evitar a correcção dos desequilíbrios. A perspectiva dos países em desenvolvimento é que não foram feitas concessões suficientes para o fecho da ronda de Doha.
Como é que é possível pressionar os países mais ricos a ceder?
Essas concessões têm que ser conseguidas no âmbito das negociações directas da ronda mas também através da opinião pública internacional. Há várias questões que não são exclusivas da área agrícola ou dos serviços. Há também o problema da propriedade intelectual, das políticas de saúde pública e a questão do sistema de resolução de disputas da OMC que não está a funcionar bem.
Está optimista em relação às novas metas estabelecidas no passado mês de Dezembro em Hong Kong?
Em Hong Kong perspectivava-se um acordo para 30 de Abril. Mas não foi possível. Não há um consenso para a finalização da ronda e há uma generalizada desesperança em relação à sua conclusão num futuro próximo.
Um dos objectivos de Hong Kong é eliminar todos os subsídios agrícolas até 2013. Acha mesmo possível que isso se concretize?
Os subsídios agrícolas atingem um volume global superior a mil milhões de dólares ao dia. A União Europeia é o bloco económico que mais subsidia a agricultura mas não é o único caso. Os EUA também promovem subsídios escandalosos em algumas áreas como o algodão. Têm 11 programas diferentes de subsídios, inclusivamente um que garante um preço mínimo ao produtor. Isso é um grande incentivo para vender algodão no exterior a preços de dumping.
Um sistema que também existe na Política Agrícola Comum (PAC).
Sim, para outras culturas. Este tipo de política promove uma concorrência desleal e afecta de maneira brutal a competitividade dos produtores dos países em desenvolvimento, às vezes nos seus próprios mercados. Ou seja, distorce os mercados, onera o erário público e penaliza os consumidores.
O que é que justifica o proteccionismo agrícola na Europa e EUA? A falta de competitividade externa?
Sim, mas isso faz parte do conceito de liberalização do comércio. O preço da menor competitividade é a perda de quota de mercado. Não se pode pretender que prevaleça a hipocrisia de dois critérios que é liberalizar o comércio dos sectores em que se é competitivo e não liberalizar os restantes.
Quando se fala em eliminar todos os subsídios estamos a falar apenas das ajudas directas e de garantia de preços ou também das ajudas desligadas da produção?
Actualmente, negoceia-se todo o pacote de subsídios. Evidentemente que os países que subsidiam tentam diferenciar os vários tipos de subsídios. Na parte industrial, o acordo definiu quais são os subsídios legais e os ilegais. É uma definição bastante ampla. Para prevalecer a equidade, deveríamos aplicar os mesmos critérios à agricultura.
Sente que há vontade dentro da UE para mudar a PAC, em particular nos países mais beneficiados como a França?
Os franceses são os mais proteccionistas no sector agrícola, mas não são os únicos. Outros países também beneficiam bastante.
É que para haver uma liberalização da agricultura no âmbito da OMC é necessário haver uma alteração da PAC e não parece fácil.
Exactamente. Quando foi fechado o patamar da PAC até 2013, os observadores dos países em desenvolvimento puderem discernir imediatamente que a ronda de Doha estava condenada.
Disse que o mecanismo de resolução de disputas não está a funcionar bem. Quais são os problemas?
As decisões não são vinculativas. São recomendações no sentido do país que perdeu a disputa remover a medida ilegal. Caso se recuse a cumprir, pode fazê-lo. A disputa resolve- se depois numa compensação que pode ser acordada ou unilateral. Significa uma majoração tarifária num sector diferente do sector afectado. Isso permite a continuação da prática considerada ilegal ao mesmo tempo que pune a corrente saudável de comércio entre os países.
Que alterações poderiam ser? Tornar as decisões vinculativas?
Sim. E também permitir retaliações em bloco. Por exemplo, se o Uruguai tem uma decisão favorável contra os EUA, a corrente de comércio entre os dois não permite que o Uruguai imponha qualquer punição aos EUA. É preciso uma decisão colectiva.
O proteccionismo está relacionado com a actual situação económica ou tem sido sempre assim?
O proteccionismo não é de hoje. E tem até sido atenuado pela globalização. Não se pode pretender um regime multilateral de comércio que promova o liberalismo comercial se esse liberalismo for selectivo.
Como é que vê a actual desconfiança em relação à China?
Nenhum país fez mais concessões que a China para aceder à OMC. E foi o país que mais investiu em maquinaria e desenvolvimento tecnológico. Mas a vantagem chinesa é tão grande que tem que ser administrada política e diplomaticamente sob pena de alienar o país.
Mas existem de facto razões para as críticas, em particular no que se refere aos direitos laborais e à protecção social?
As normas chinesas de protecção ao trabalho não têm os paradigmas ocidentais. Estão muito aquém destes. Mas é uma questão de tempo.