O banquete de Noronha

Resenha publicada no jornal Diário da Região de São José do Rio Preto, SJRP, 23 de abril de 2023.

Corra os olhos ao redor… Caso perceba que, em sua aldeia, alguém se empenha para organizar um banquete de memórias impecavelmente refinado, requintado e tão farto e diverso quanto suas papilas emocionais sejam capazes de degustar, não perca a oportunidade: aceite o convite e mergulhe nesse parque de delícias emocionais. O cenário é o do processo de invenção do povo rio-pretense – tarefa que não seria realizada sem o concurso dos italianos, árabes, mineiros, africanos e toda a sorte de imigrantes trazidos a esta “boca do sertão” no ritmo sacolejante dos vagões da velha EFA.

O leitor que se ache razoavelmente conhecedor dessa parte da história, ao concluir a leitura da autobiografia de Durval de Noronha Goyos Junior – também ele um rio-pretense -, se convencerá de que até hoje ninguém a contou tão apaixonadamente e de maneira comprometida com as nuances de uma deliciosa parcialidade bairrista própria dos que nascem entre os córregos Borá e Canela.

Mas há muito mais do que isso em O Mundo Segundo Noronha, a notável e surpreendente aventura autobiográfica de um autor a quem possíveis pruridos de um ataque de modéstia ou o temor injusto de estar enveredando pelo pântano dos presuntuosos não o afastaram da missão importante de legar as atuais e futuras gerações a história real e bem contada de uma vida dedicada a democracia, à defesa dos direitos individuais, à tomada de posição ao lado dos injustiçados, ao combate mortal a obscurantismos de todas as espécies e graus.

Durval de Noronha Goyos Junior, filho de um cirurgião-dentista e de uma modista, saiu de Rio Preto para tornar-se um cidadão do mundo. Jurista de festejada carreira internacional, com escritórios em várias partes do mundo, escritor de dezenas de livros publicados em diferentes idiomas – alguns sobre sua atividade profissional, outros dedicados a um largo espectro temático, inclusive ficcionais e sociológicos – prepara-se para presentear a cidade com um mimo inesperado: uma visão precisa de como tais valores, quando reforçados pelo apego à cultura humanista, vai desaguar num estuário de grandes conquistas.

Os leitores nascidos em Rio Preto, e os que viveram por estas bandas na mesma época de Durval de Noronha Goyos Junior, recebem ainda um bônus adicional ao ler O Mundo Segundo Noronha: a oportunidade de um feliz reencontro com pessoas que carregavam consigo um quê de divindade municipal.

Desde o ensino regular no Cardeal Leme, o menino Durval, que era canhoto, não demorou a entender e a fazer piada do quanto lhe traria problemas ao longo da vida suas habilidades com a esquerda. Fosse como fosse, o nonno Sabella foi fundamental na percepção do neto quanto ao que chamava de “armadilhas fascistas”.

A chegada ao ginasial, no Instituto de Educação Monsenhor Gonçalves, coloca o leitor em contato com uma série de vizinhos e colegas de escola do menino – rapazotes e moçoilas que jogavam futebol num espaçoso átrio existente no prédio, partiam em passeios de bicicleta pelos arredores do centro da cidade.

É agradável o reencontro com nomes que se tornaram referências profissionais de Rio Preto em áreas como Medicina, Direito, Engenharia, Magistério e diferentes vertentes do empreendedorismo. Além dos amigos de carne e osso, Goyos Junior raramente era visto desacompanhado de seus amigos de papel: leitor contumaz de tantos livros quantos lhes caíssem às mãos, Durval Goyos Junior parecia não escolher os gêneros literários.

Em um cenário carregado de tensões políticas, enfrentou períodos de terror ao longo dos cinco anos do curso de Direito na PUC-SP. Por causa da oposição acadêmica que exercia ante a ditadura, foi denunciado por colegas e perseguido por agentes do DOPS.

A autobiografia, se vale muito por essa disposição de evitar deixar ao largo os fatos importantes, também vale pelo toque de humor, leveza e ironia presentes todo o tempo. O conjunto de tudo isso é um texto saboroso, daqueles em que, a certo momento, passamos a diminuir o ritmo da leitura com o propósito de prorrogar o final.

Transita por ideias e por ideais armado de Humanismo, que, como diz a certa altura, “é a expressão da decência aplicada socialmente”. Diz a mesma coisa de outro modo, quando relata a uma amiga que, na verdade, atua como um alfaiate do Bem, “a costurar a bandeira da liberdade”.

Vá lá, leitor… Corra os olhos ao redor. E farte-se

JOSÉ LUÍS REY, Jornalista em Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço aos domingos