Resenha publicada no jornal Diário da Região de São José do Rio Preto, SJRP, 15 de abril de 2023.
Dia desses estive em almoço na residência rio-pretana do humanista, escritor e jurista Durval de Noronha Goyos Júnior e a gentil Amanda, sua esposa. Admirei a bela coleção de pinturas e em cada uma se insinuavam predileções do colecionador pelos estilos, os artistas e temas enfocados. Mais quadros enfeitam outras casas desse intelectual de fina cepa, em especial a lisbonense. Enquanto buscavam o antepasto na cozinha, resvalei num móvel da sala em que se dispunham uma pequena foice e martelo cruzados na imagem dum emblema. Ao retornarem, ele notou o leve desmonte do ícone e o ajeitou na forma condizente.
Laureado em vários países, Goyos escreveu vigorosos livros não só em português, e quase um milhar de textos não só de ficção, História, Sociologia e Direito Internacional. Tenho a honra de ler o original de sua recente obra, basicamente composta em asas de aviões com pousos em Lisboa: ‘O Mundo Segundo Noronha’. Espesso em ideias, laudas e afinco, não é um preito de memórias a se deslizarem em banzos, reminiscências sonhadoras. Quase todos os capítulos emergiram de agendas guardadas como relicários por mais de 50 anos. Porém, não deixa de ser um olhar subjetivo, “nostalgia transfiguradora” no dizer de Antonio Candido em ‘Os Parceiros do Rio Bonito’. Autorreflexivo, é revisão crítica dos fatos, pessoas e afetiva projeção do escritor no espaço e no tempo. Os leitores têm muito que fruir das situações vividas e, sobretudo, da transcendência, atemporalidade e universalidade que as coisas do mundo nos inspiram.
A escrita de Goyos é de uma leveza e fluência admiráveis, literariedade e prosaísmo a conduzir-nos ao prazer do texto, ao refinamento rigoroso dos signos e orações, ao engenho estilístico derramado em narrativas. Tudo floreado com alusões a poetas, antropólogos, cronistas e filósofos antigos e modernos a propor-nos um caleidoscópio de retratos que se mesclam, abonam e prosperam nas reflexões, descrições, informações. Encanta na obra a consciência do não peremptório, a visão não narcísica com que o autor se revela em ‘O Mundo Segundo Noronha’, com ênfase à palavra “segundo” (conforme o pensamento de). Assim, rejuvenesce a assertiva dramática e pós-moderna de Luigi Pirandello: ‘Assim é se lhe parece’.
Durval de Noronha Goyos Júnior aventurou-se num relato autobiográfico com alguma precipitação pois apaixonantes estímulos o esperam adiante. E, neles, se desbordará incansável, sapiente. Atende ao pedido do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, inda que escrituras desse gênero sejam apontadas como “esquisitices”. Reage: “Diz-se que a autobiografia é um obituário precoce, uma obra de ficção em que falta apenas o último capítulo. As críticas (…) deixemo-las aos pobres de espírito”. É um livro em aberto a mais episódios. E, como tudo que concerne a esse meu amigo, espetacular.
ROMILDO SANT’ANNA, Crítico de arte e jornalista. Livre-docente pela Unesp, é membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura (Arlec)