Texto básico da palestra proferida a convite do Centro de Estudos Políticos Estratégicos da Escola de Guerra Naval da Marinha do Brasil, proferida no dia 9 de novembro de 2001, na cidade do Rio de Janeiro, Brasil.
A ordem jurídica construída após o término da Segunda Grande Guerra Mundial não sustentou o princípio basilar de direito internacional da prevalência da isonomia dentre os estados soberanos. Ao contrário, a própria criação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1946, patrocinou um regime baseado no equilíbrio das principais forças aliadas durante o referido conflito, que teriam um poder de veto no principal organismo deliberativo, o Conselho de Segurança, criando, por decorrência, duas classes de estados. De fato, tratava-se, na ocasião, de um mundo bi-polar, com um conflito permanente entre as forças capitalistas, de um lado, lideradas pelos Estados Unidos da América (EUA) e, de outro, os regimes comunistas, liderados pela então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
À margem da ONU, outros organismos internacionais foram concomitantemente instituídos no âmbito das duas esferas de poder. Do lado capitalista, foram criados o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), todos sob inspiração inglesa derivada de sua experiência colonial e imperialista e baseada no ideário de Adam Smith a respeito da teoria do livre comércio. Contudo, reservaram-se os EUA o poder de veto tanto no Banco Mundial, como também no FMI. Por sua vez, o sistema consensual do GATT permitia um veto às avessas, já que a ordem multilateral de comércio, que apostamente excluiu os setores agrícola e têxtil, codificou um jogo de cartas marcadas destinado a assegurar a supremacia econômica dos países hegemônicos.
Desta maneira, não se pode dizer que temos vivido, nas décadas que se seguiram à Segunda Grande Guerra Mundial, a um regime democrático nas relações internacionais, nem que tenha prevalecido o estado de direito nas relações entre estados soberanos. Ao contrário, temos observado que o aperfeiçoamento jurídico de direito doméstico, ocorrido na vasta maioria dos países, não tem sido acompanhado da evolução das relações legais e juridicidade internacionais. Tal quadro agravou-se, no início dos anos 90, com o ocaso da URSS que, até certo ponto, tinha tido a meritória função de moderar a intensa fúria predatória dos EUA sobre os demais países em geral e sobre os em desenvolvimento, em particular.
Com a eliminação do principal rival hegemônico, os EUA refizeram sua teoria de segurança nacional de modo a estabelecer que o principal objetivo estratégico econômico do país seria a manutenção de sua hegemonia econômica através da submissão dos demais países. Na prática, todavia, este já vinha sendo um objetivo estratégico secundário, mesmo durante a chamada “guerra fria”, de vez que a competitividade relativa dos EUA, face aos demais países, vinha declinando de maneira acentuada desde o final da Segunda Guerra Mundial. Isto ocorreu, em parte, devido à recuperação econômica de muitas economias destruídas durante o conflito e levou os EUA a uma posição de enorme agressividade, caracterizada também pelo unilateralismo comercial face a seus principais parceiros comerciais, notadamente o Japão e a União Européia (UE).
O Japão foi, juntamente aos principais países em desenvolvimento, a maior vítima da ação unilateral dos EUA que, para burlar a restrição legal do GATT à política de quotas, impuseram a seus parceiros as medidas de contenção voluntária de exportações, ou quotas auto-impostas. A tal ponto chegou a pressão que o Japão solicitou a abertura de uma nova rodada de negociações do GATT, na primeira vez que um país outro que os EUA tomava tal iniciativa. A tal ronda de negociações denominou-se Rodada Uruguai, lançada em 1986 e marcada, desde o início, por uma intensa acrimônia entre os países em desenvolvimento, liderados pelo Brasil e pela Índia, e os países desenvolvidos, notadamente os EUA.
Os EUA desejavam a inclusão das chamadas áreas novas, serviços, investimentos e tecnologia, no sistema multilateral de comércio, porque nelas julgavam ter maiores vantagens comparativas. Os países em desenvolvimento, por sua vez, desejavam a inclusão das áreas tradicionais de comércio, os setores têxtil e agrícola. Os eventos de 1991 definiram a agenda final da rodada; os países em desenvolvimento deixaram de negociar concessões recíprocas no âmbito do GATT para fazer liberalizações comerciais unilaterais, caindo face à especiosa retórica do livre comércio e diante das falácias do livre mercado. Segundo uma ominosa análise do Banco Mundial, os resultados da Rodada Uruguai beneficiariam em 64% os países desenvolvidos contra 36% para os países em desenvolvimento1.
A realidade provar-se-ia muito pior. De acordo com um recente estudo do FMI, os países desenvolvidos ficaram com 73% dos benefícios durante os seis anos de vigência da Organização Mundial do Comércio (OMC)2, entidade que substituiu o GATT em 1995, contra apenas 27% dos países em desenvolvimento3. De acordo com dados da própria OMC, tanto a Ásia como a América Latina tiveram um pior desempenho no comércio de mercadorias no período subseqüente a 1995 do que no período precedente. A participação do Brasil no comércio global, seguindo a regra, caiu de 1.4% para menos de 0.9%. O número de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza no mundo em desenvolvimento aumentou e a concentração de riquezas nos países desenvolvidos atingiu patamares sem precedentes históricos.
As crises econômicas foram seguidas por instabilidade social e política em grande parte do mundo. Na Rússia, o escambo tornou-se o principal meio de troca. Na África, a situação continua dramática e mesmo as experiências bem sucedidas, como é o caso da África do Sul, não lograram obter maior acesso de seus produtos aos mercados internacionais. O quadro institucional na América Latina é grave, com movimentos de insurgência armada no México, Peru, Colômbia, Equador e, até certo ponto, no Brasil e Argentina. O Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), uma meritória iniciativa, está naufragando do ponto de vista comercial, relegado a uma triste situação de trocas administradas, em vista das enormes dificuldades institucionais de seus principais parceiros. Na Ásia, a crise afetou até economias desenvolvidas, como a japonesa, não poupando igualmente a Indonésia, as Filipinas, a Tailândia, a Malásia, etc. A Índia, o mais populoso dentre os 143 membros da OMC4, não teve praticamente nenhum benefício decorrente da nova ordem multilateral do comércio.
Os organismos internacionais, manipulados por um matiz hegemônico sem limites, impuseram a insana e cruel doutrina de que, quanto maior a miséria doméstica, maior a competitividade internacional do país. Hipocritamente, a receita só vale, é claro, para os países em desenvolvimento e é sustentada nos regimes multilaterais e também nos acordos regionais com potências hegemônicas. O México, por exemplo, dentro do Acordo de Comércio da América do Norte (NAFTA), tornou-se um exportador de pobreza. A renda do trabalhador industrial decresceu 50% deste a instituição da área de livre comércio, 80% da população vive abaixo do nível de pobreza, e seus principais produtos de exportação são os derivados da miséria: os produtos maquilados e as remessas dos imigrantes ilegais, que se equiparam aos investimentos estrangeiros em valor!
Desta maneira, a principal ameaça à soberania e à prosperidade dos povos dos países periféricos decorre do chamado processo de globalização, que é a continuada exploração sistêmica dos países em desenvolvimento por um núcleo central de países desenvolvidos, mediante a imposição de valores e padrões culturais etnocêntricos, bem como de normas unilaterais e não eqüitativas sob o manto de uma falaz juricidade internacional, administrada sob a especiosa ideologia do chamado livre comércio, por uma organização internacional sem compromissos com a prevalência do estado de direito e da justiça nas relações internacionais.
Todavia, a natureza perversa da extremada dominação comercial não tem o condão de induzir um respeito à ordem jurídica que a criou, por sua própria fonte inspiradora, os EUA, tal o desprezo que por ela tem, cientes da realidade de sua concepção. Assim, os EUA locupletam-se desta ordem jurídica infame, mas a ela não se submetem. Na hierarquia da normas de seu direito constitucional, os EUA colocam suas leis federais acima dos tratados internacionais5. Mais ainda, na legislação interna de adoção dos tratados internacionais, condicionam sua validade à compatibilidade com o direito doméstico, ao contrário dos demais países. Isto vale até mesmo para os tratados, como os da OMC, que tem cláusula de compromisso único, aceita por todos os demais países. Acresce que os EUA não são signatários de convenções internacionais que visam aumentar a juridicidade nas relações entre estados soberanos, como a Convenção de Viena sobre a Lei dos Tratados.
Isto ocorre porque acreditam os estrategistas estadunidenses poder governar o mundo através de suas idiossincráticas leis e regulamentos internos que promovem o unilateralismo e o exercício arbitrário das próprias razões nas relações internacionais. De fato, crêem aqueles com firmeza, e mesmo profunda convicção, que as sanções unilaterais sejam um importante catalista de ação internacional e um eficaz instrumento de política externa6. Desta forma, seu arsenal antidumping é um arrogante monumento ao arbítrio e vige deste 1916 disseminando a injustiça, promovendo interesses escusos, erigindo proteção ilegal e grassando a miséria e a desesperança mundo afora. Entre 1993 e 1996, mais de 61 leis e atos administrativos federais dos EUA impuseram sanções econômicas unilaterais e ilegais a 35 países7. Em 1998, tal número já havia avançado para setenta e cinco países e compreendia dois terços da população mundial8. Em 2002, o Brasil completará 40 anos como vítima de sanções comerciais ilegais de parte dos EUA. Tal ação tornou-se tão comum que, pelo menos, 36 estados federados e cidades norte-americanas também passaram a impor sanções a governos “ofensivos”!
A doutrina estratégica de uma ordem mundial unipolar, defendida pelos EUA, é na realidade uma grande contradição à maior juridicidade e ao império da lei nas relações internacionais, de vez que o estado de direito internacional exige uma certa medida de renúncia à soberania. Por sua vez, os teóricos norte-americanos9 advogam a doutrina da obsolescência da soberania dos outros países, enquanto os EUA estão, ao contrário, motivados ao exercício de sua soberania além de suas fronteiras e à aplicação extra-territorial de suas leis. Tal atitude e suas manifestações migraram do âmbito exclusivo do governo federal para, conforme já vimos, permear pelos governos estaduais e municipais, como também pelo poder judiciário, e até mesmo agentes de direito privado. Esta postura também impede que os EUA sejam signatários de certas convenções internacionais, como o Estatuto do Tribunal Internacional Criminal de Roma, de 1998, que visa o combate ao crime organizado, porque é bastante provável a hipótese de que inúmeros de seus agentes de direito público interno fossem processados de acordo com o direito internacional.
Face ao histórico apresentado, não é de surpreender que defrontados com o horrível e dramático atentado terrorista do dia 11 de setembro, os EUA tenham optado pela ação unilateral e idiossincrática. De fato, um ato terrorista praticado por indivíduos não é um ato de guerra, mas sim, basicamente, um ato criminoso de direito interno, sujeito às sanções cominadas em lei doméstica. O conceito de guerra no direito internacional público exclui ações contra indivíduos, de vez que é limitado a estados soberanos. Ao dimensionar o combate ao terrorismo como uma “guerra”, os EUA buscaram reconhecimento a uma ação internacional seletiva própria no combate a perigos difusos, a meu ver, muito desproporcional à natureza intrínseca da ação e sem amparo legal10.
De fato, a doutrina jurídica tradicional trata o terrorismo praticado por indivíduos, ou como criminalidade comum, ou como criminalidade política11. De um modo geral, as democracias tratavam da questão como crimes comuns, os regimes ditatoriais tratavam o terrorismo como crime político, e “isto se deve ao fato de que, assim sendo, o governo…, que se considera em estado de guerra permanente, melhor possa exercitar o seu aparato repressivo … e quando lhe convier12.” No Brasil, o terrorismo foi tratado no âmbito da Lei de Segurança Nacional durante o regime ditatorial, tendo sido considerado crime político, mas sendo hoje punido por suas manifestações, tais como homicídio, lesão corporal, seqüestro, roubo, extorsão, etc13. O terrorismo de estado, por sua vez, existe, é muito mais grave do que a modalidade individual e pode ser considerado um ato de guerra, de acordo com o direito internacional.
Assim, os efeitos do trágico atentado de 11 de setembro, cumulados com uma exacerbada mas coerente reação, levaram o mundo a uma crise econômica sem precedentes desde o final da Segunda Guerra Mundial, bem como a uma consciência da fragilidade do sistema econômico mundial assentado sobre a hegemonia dos EUA. Foi provavelmente para tentar dissipar os efeitos potencialmente graves de tal percepção que a Inglaterra ultrapassou, de muito, os termos tradicionais de sua política de alinhamento automático com os EUA, para se considerar um estado diretamente atingido pelo dramático incidente14.
Desta forma, a reação visou projetar a percepção de poderio que sustenta o sistema econômico mundial, ao mesmo tempo em que gera lucros imediatos ao complexo industrial militar, dentro da concepção milenar já consagrada por Cícero “nervos belli, pecuniam infinitam”. Todavia o entendimento, pelos agentes econômicos, da inadequação entre os meios militares adotados e os fins almejados, bem como a compreensão das vulnerabilidades econômicas da ordem mundial, ocasionaram uma queda das atividades econômicas a um patamar sem precedentes nos últimos 60 anos. Sob a perspectiva da doutrina de segurança nacional dos EUA, que estabelece a prevenção de recessões econômicas como um de seus fundamentos15, o uso à reação militar foi contraproducente, já que exacerbou os efeitos da ação terrorista.
Portanto, ao invés de buscar o fortalecimento das instituições legais internacionais para lidar com a preocupante crise do terrorismo internacional, os EUA apelaram para o unilateralismo bélico seletivo, idiossincrático e, até certo ponto, aleatório. Para tanto, saíram prejudicados o direito internacional, de inúmeras maneiras, os direitos humanos e as liberdades individuais. Já se discute, nos EUA, a infame idéia da legalização da tortura nos interrogatórios de suspeitos de terrorismo16. No mesmo país, foi suspensa a confidencialidade entre advogado e cliente. Nos EUA e na Inglaterra, trata-se da restrição à liberdade de imprensa no trato de informações ligadas ao terrorismo. Nos EUA, já foram autorizados os chamados assassinatos de Estado, que haviam sido proibidos há um quarto de século17. Na Inglaterra, foi proposta uma legislação punindo denúncias falsas de atos terroristas com vigência “ex post facto”, ou seja, retroativa.
As repercussões na área comercial, decorrentes da formatação dada ao combate ao terrorismo, tendem a ser profundas, porque vão causar um reforço ao unilateralismo, ao exercício arbitrário das próprias razões, e a uma renovada e mais intensa tentativa de dominação absoluta dos estados periféricos pelo estado unipolar, os EUA. As negociações comerciais internacionais serão mais árduas. No âmbito de tratativas de pactos comerciais regionais, como as da proposta Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), onde já era muito difícil resistir a uma agenda estadunidense, que visa à imposição de um modelo drasticamente hegemônico e profundamente draconiano ao Brasil, o desafio será muito maior. Mesmo na área do sistema multilateral de comércio da OMC, será muito mais árdua a resistência a uma nova agenda de pretensões que visam a assegurar a prosperidade de uns poucos à custa da miséria de muitos.
As poucas alternativas para países como o Brasil, estados nacionais de grande dimensão territorial, populacional e econômica, incluem necessariamente o fortalecimento do estado de direito nas relações internacionais. Para tanto, um sistema de alianças tornar-se-á necessário para promover os interesses de todos os países interessados, certamente a vasta maioria dos estados e das populações afetadas. Qualquer tentativa isolada será fadada ao insucesso, não somente pela disparidade de forças, bem como pelo estigma que será fatalmente aplicado, talvez de estado falido, talvez de estado terrorista, ou algo assemelhado. Como conseqüência, um sistema multipolar deve ser almejado na área política, financeira e comercial, o que envolveria a reformulação da ONU, do Banco Mundial, do FMI e da OMC.
Do ponto de vista econômico-comercial, da mesma forma que se deve resistir a iniciativas hegemônicas, deve-se buscar pactos com países não hegemônicos como a China, a África do Sul, a Índia, a Indonésia, a Malásia, a Coréia do Sul, que juntos tem um comércio exterior superior aos EUA e um potencial de crescimento muito superior. A dependência ao dólar norte-americano deve ser diminuída drasticamente, pois ela é a fonte certa das oscilações econômicas do Brasil e de grande vulnerabilidade no sistema financeiro internacional atual. O fortalecimento econômico interno deve ser buscado com a integração dos 50 milhões de brasileiros que vivem abaixo do nível de pobreza à economia formal.
O desenvolvimento tecnológico e educacional deve sofrer um grande impulso. Por último, a política de defesa deve poder assegurar meios dissuasórios eficazes contra os riscos decorrentes de um mundo onde o respeito à lei está deixando, até mesmo de ser uma vazia figura de retórica, para desaparecer por completo.