Texto da palestra preparada para o Congresso Internacional “The Importance of Global Feed & Food Safety and Security to the International Food Commerce”, São Paulo, SP, 11 de julho de 2005.
1. Introdução
1. A regulamentação da segurança alimentar tem como principal objetivo reduzir a incidência de doenças relacionadas à ingestão de alimentos e água contaminados.
2. De fato, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), a ausência de segurança alimentar em países menos desenvolvidos faz aproximadamente 1.8 milhões de vítimas fatais por ano, sendo a maioria delas crianças(2).
3. Nesse sentido, a OMS conjuntamente com a Organização das Nações Unidas (ONU), desenvolveu no ano 2000 um programa chamado “Estratégia Global de Segurança Alimentar”, que se presta à definição de metas e procedimentos internacionais, que garantam a segurança alimentar global, evitando a disseminação de doenças.
4. A crescente preocupação em relação a um sistema global de segurança alimentar, é corroborada pela consternação dos Estados Unidos da América (EUA), principalmente em relação à ameaça de ataques terroristas.
5. Deve-se lembrar que em 12 de junho de 2002, o presidente dos EUA George W. Bush assinou o Public Health Security and Bioterrorism Response Act of 2002, ou Lei do Bioterrorismo, como ficou conhecida entre nós.
6. Posteriormente, foi criada lei sobre a proteção das fronteiras norte-americanas contra ameaças de terrorismo e na promoção de uma cadeia de fornecimento global de segurança.
7. Ambas as iniciativas serão detalhadas a seguir, sendo que, no momento oportuno será questionada a utilização de tais mecanismos com vistas a atender aos anseios protecionistas dos EUA. Nesse sentido, será discutida a respectiva legitimidade à luz dos Acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC).
2. Regime jurídico internacional sobre a segurança alimentar
8. A Segurança Alimentar é preocupação mundial desde a década de 60, quando acreditavam que, se todos os países harmonizassem suas leis de alimentação e adotassem padrões em concordância internacional, existiriam um número menor de barreiras tarifárias e movimento mais livre de produtos alimentícios entre os países, o que beneficiaria os agricultores e suas famílias, ajudando a reduzir a fome e a pobreza.
9. De fato, organismos internacionais como a ONU, em seus diversos seguimentos, como a OMS, OMC e a Organização de Agricultura e Alimentação (FAO), vem regulamentando padrões internacionais para tratar de tal tema.
10. A Comissão Codex Alimentarius, criada em 1962 como resultado desta preocupação, é o organismo responsável por compilar os padrões, códigos de prática, orientações e recomendações que constituem o “Código dos Alimentos” (ou Codex Alimentarius) para a OMS e a FAO. Tornou-se o principal mecanismo internacional de incentivo do Comércio Internacional de alimentos, promovendo a saúde e os interesses econômicos dos consumidores.
11. Nesse sentido, o Acordo sobre a Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (SPS), que menciona padrões, orientações e recomendações do Codex como medidas internacionais preferidas para facilitar o comércio internacional de alimentos e o Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio (TBT), também incentivam a harmonização internacional de padrões alimentícios. Os padrões do Codex tornaram-se marcos históricos contra os quais são avaliadas as medidas e regulamentações alimentares nacionais, dentro dos parâmetros legais dos Acordos da Rodada Uruguai.
12. Entretanto, cada país tem total liberdade para definir seus próprios regulamentos, e isso resta evidenciado no exemplo da União Européia (EU), que em 2001, abandonou a doutrina de equivalência substancial, optando por determinação científica de riscos mais rigorosa. As ações a serem conduzidas pela nova Autoridade Alimentar Européia agora cobrem riscos ambientais e segurança de saúde humana e animal, e suas opiniões serão compartilhadas com o público para comentários. A UE possui então um procedimento democrático, através do qual a maioria dos Estados membros do Comitê Regulador da Autoridade Européia de Segurança Alimentar vota para autorizar ou recusar um produto. Ademais, possui um Regulamento que estabelece o quadro para a política e a gestão da ajuda alimentar e as ações relativas à segurança alimentar da Comunidade Européia.
13. Outro exemplo de regulamentação própria é o caso da China, que instituiu um regime de rotulagem para alimentos geneticamente modificados com exigências de rotulagem e rigorosa rastreabilidade, ameaçando o sustento de agricultores e empresas norte-americanas que já estão sofrendo com o resultado da falta de visão reguladora da biotecnologia.
14. No caso do Brasil, apesar de ter firmado compromisso na Conferência de Roma, apenas em 1989, lança as bases de um sistema que jamais se configurou em um sistema formal de alimentação e nutrição. Trata-se de um sistema de informação nutricional, no qual foi incorporado ao conceito de Segurança Alimentar, noções de alimento seguro, não contaminado, de qualidade do alimento nutricional, biológica, sanitária e tecnológica, do balanceamento da dieta e do respeito à cultura, qual seja:
“Segurança Alimentar e Nutricional significa garantir a todos acesso a alimentos básicos de qualidade, em quantidade suficiente, de modo permanente e sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, com base em práticas alimentares saudáveis. Contribuindo, assim, para uma existência digna em um contexto de desenvolvimento integral da pessoa humana”(3).
15. Essa definição implica uma abordagem da segurança alimentar como um direito humano básico, mesmo que no Brasil a produção e a disponibilidade de alimentos em quantidade suficiente não garantem a Segurança Alimentar. Mesmo assim é importante a ampliação da produção de alimentos para viabilizar a constituição de estoques reguladores e ainda melhorar a qualidade de vida no campo consolidando a agricultura familiar.
16. Da mesma forma, os EUA também tem suas regras peculiares quanto Segurança Alimentar, as quais serão devidamente tratadas no item a seguir.
2. Medidas dos EUA em relação à segurança alimentar: preocupação em relação a ataques terroristas
2.1. A Lei do Bioterrorismo
17. A Lei do Bioterrorismo foi promulgada com fins de proteger cidadãos norte americanos, dos perigos do bioterrorismo, ou nos termos empregados no Relatório da Casa Branca “to protect innocent Americans from evil men” (“President Signs Public Health Security and Bioterrorism Bill”, conforme comunicado da Casa Branca à imprensa em junho de 2002).
18. A Lei exige que todas as empresas alimentares que produzem, processam, embalam ou armazenam produtos alimentares para uso humano ou animal, devem cumprir exigências como: fazer registro junto ao governo norte-americano, manter estas informações atualizadas e comunicar às autoridades daquele país a chegada de todos os carregamentos alimentares.
19. O não-cumprimento de qualquer das exigências estabelecidas pela Lei do Bioterrorismo acarreta a denegação de ingresso e a possibilidade de detenção da mercadoria com ônus para o responsável pela carga.
20. O Food and Drug Administration (FDA) é o órgão responsável pela aplicação dos aspectos da Lei relacionados à proteção do suprimento alimentar (Título III, Subtítulo A) e à proteção do suprimento de medicamentos (Título III, Subtítulo B).
21. O Título III (Protecting Safety and Security of Food and Drug Suply) estabelece requisitos para a comercialização e para a importação de alimentos destinados ao consumo humano ou animal nos Estados Unidos. Este Título está dividido em seções, dentre as quais, as que mais causarão impacto sobre as exportações brasileiras são as que estabelecem os seguintes procedimentos: registro de empresas (domésticas e estrangeiras); manutenção do registro; notificação prévia de chegada de carregamentos, rotulagem e detenção administrativa de produtos considerados ilegais.
22. A lei entrou em vigor em 12 de dezembro de 2003, sendo que nos primeiros 5 meses sua implementação teve caráter educativo visando à adaptação dos exportadores. Somente a partir de 4 de junho de 2004 a lei está vigorando plenamente.
2.2. Proteção de fronteiras dos EUA
23. Mais recentemente, e no mesmo sentido a autoridade do governo norte-americano encarregada da proteção aduaneira e de fronteiras, “U.S. Customs and Border Protection” se concentrou na proteção das fronteiras norte-americanas contra ameaças de terrorismo e na promoção de uma cadeia de fornecimento global de segurança.
24. Com vistas ao aprimoramento dos procedimentos de segurança o governo norte-americano implementou o programa Customs-Trade Partnership Against Terrorism, ou em Português: Parceria Alfândega-Comércio Contra o Terrorismo (“C-TPAT”).
25. O C-TPAT é um programa voluntário desenvolvido pela “U.S. Customs” que visa instituir medidas mínimas de segurança para melhor lidar com as ameaças do terrorismo. Estas medidas mínimas de segurança entraram em vigor em 25 de março de 2005 e devem ser implementadas em médio prazo.
26. A rigor, tais medidas encontrariam guarida nas regras da OMC, como será visto a seguir, mas deve-se ressaltar que podem representar nova restrição não-tarifária para acesso ao mercado dos Estados Unidos.
27. Outrossim, cumpre ressaltar que se estima que somente as implicações da Lei do Bioterrorismo afetam cerca de 20% das importações totais dos EUA, ou mais de US$ 200 bilhões/ano.
3. Barreiras não tarifárias e os Acordos da OMC
28. Via de regra, barreiras não tarifárias são desenvolvidas ao amparo de acordos assinados na esfera da Organização Mundial do Comércio (OMC).
29. Cumpre notar que podem ser consideradas barreiras não tarifárias: barreiras sanitárias e fitossanitárias, barreiras técnicas ao comércio, medidas de defesa comercial como medidas antidumping, medidas compensatórias e salvaguardas, licenciamento de importação, regras de origem e valoração aduaneira(4).
30. É importante frisar que, nos termos do Acordo sobre a Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias da OMC, em se tratando de barreiras sanitárias e fitossanitárias, caso seja configurada falta de transparência, falta de base técnico-científica e discriminação, as mesmas serão consideradas ilegais.
4. O Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias da OMC
31. O Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias da OMC dispõe sobre a adoção de medidas para proteger a saúde humana, animal e vegetal no curso do comércio de produtos, com o fim de garantir transparência, equivalência, harmonização e a não discriminação nas transações comerciais internacionais.
32. É permitido que os países membros da OMC adotem medidas que visem proteção da vida e da saúde de seres humanos, animais ou plantas, desde que tais medidas não sejam aplicadas de maneira “arbitrária e não justificada”. Nesse sentido, as medidas aplicadas devem ser precedidas de “avaliação da possibilidade de entrada, estabelecimento ou propagação de praga ou doença dentro do território de um Membro importador de acordo com as medidas sanitárias ou fitossanitárias que podem ser aplicadas, e o potencial biológico e conseqüências econômicas associadas; ou a avaliação dos efeitos adversos potenciais para a saúde humana ou animal advindos da presença de aditivos, contaminantes, toxinas ou organismos causadores de doenças nos alimentos, bebidas ou rações.”
33. Na avaliação do risco, os países membros da OMC, são solicitados a apresentar provas científicas, métodos de produção e processos relevantes, métodos de inspeção, amostragem e certificação consistentes, prevalência de doenças e pragas específicas, existência de áreas livres de doenças e pragas, condições ecológicas e ambientais adequadas, bem como quarentena e tratamentos quarentenários eficientes.
34. É de se notar que os termos do Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias é apresentado em linguagem muito abrangente, que dá margem à interpretação distorcida, conforme o interesse envolvido, seja ele protecionista ou não.
5. Conclusão
35. Tendo em vista que a regulamentação internacional da segurança alimentar tem como principal objetivo resguardar a saúde da humanida, reduzindo a possibilidade de contaminação, é notável o esforço da comunidade internacional no sentido de se criar uma política global de segurança.
36. Certamente, iniciativas da OMS e da ONU somam-se à crescente preocupação norte-americana sobre o tema. Como restou cosignado nesta apresentação, tanto a Lei do Bioterrorismo e quanto a lei sobre a proteção das fronteiras norte-americanas contra ameaças de terrorismo e na promoção de uma cadeia de fornecimento global de segurança foram implementadas com o intuito de se proteger a segurança alimentar.
37. Não obstante, como demonstrado nesta apresentação, cabe o questionamento acerca da utilização de tais mecanismos com vistas a atender aos anseios protecionistas dos EUA. Nesse sentido, será discutida a respectiva legitimidade à luz dos Acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC).
38. De fato, considerando a abrangência do Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias da OMC, bem como a especificidade das medidas adotadas pelos EUA com o intuito de coibir ataques terroristas, há que se questionar a legitimidade das últimas, tendo em vista o grande impacto em termos financeiros que representam para a economia norte-americana.