Publicado na versão eletrônica no sítio do JB On Line (http:\\www.jbonline.com.br), bem como na versão impressa no Jornal do Brasil, caderno Economia, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 17 de julho de 2005.
O regime jurídico multilateral do comércio foi formatado em 1947 com a assinatura do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt), de inspiração dos EUA e do Reino Unido. O Gatt 47 ainda vigora, com as modificações introduzidas no correr dos anos e, mais particularmente, pelos chamados Acordos de Marrakesh, celebrados na conclusão da Rodada Uruguai, em 1994. O Gatt 47, em seu artigo 24, introduziu a superioridade intrínseca do tratado multilateral sobre os regionais, regulando a maneira em que estes últimos seriam permitidos como exceção à cláusula da nação mais favorecida.
Por muitos anos, os Estados Unidos privilegiaram o regime jurídico multilateral, em detrimento daquele regional. De um modo geral, outros países seguiram essa liderança e, durante décadas, o número dos pactos regionais foi muito modesto. Todavia, durante a Rodada Uruguai do Gatt, lançada em 1986, houve uma grande frustração com o regime multilateral. Essa frustração apareceu inicialmente nos EUA e na União Européia (UE) porque, pela primeira vez na história do sistema, houve uma oposição à sua agenda de negociação.
De fato, o Grupo dos 11, liderado pelo Brasil e Índia, opôs-se à inclusão das chamadas áreas novas no sistema multilateral: serviços, investimentos e propriedade intelectual. Estrategistas desenvolvimentistas, tendo à frente o grande pensador brasileiro, embaixador Paulo Nogueira Batista, indicavam de maneira ominosa que a formatação dada para as novas áreas favoreceria apenas os países desenvolvidos. Também se denunciava a continuada exclusão dos setores têxtil e agrícola, de grande interesse dos países em desenvolvimento.
Durante aproximadamente cinco anos, a resistência do Grupo dos 11 impediu a conclusão da Rodada nos termos desejados pelos EUA e pela UE. Após esse período, cessou a resistência e os países desenvolvidos conseguiram o seu intento. Estatísticas insuspeitas do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e da Organização das Nações Unidas demonstraram que os receios dos estrategistas desenvolvimentistas estavam mais do que justificados. Hoje, os países do chamado Quad (EUA, UE, Canadá e Japão) têm mais de 70% do comércio internacional de serviços e suas vendas no setor crescem três vezes mais do que as dos países em desenvolvimento, que serão possivelmente alijados desse importante segmento.
Pois bem, durante os cinco anos de resistência, os EUA passaram a tomar iniciativas na área do comércio regional, com o objetivo de conseguir o seu intento de dominar o mercado mundial de serviços e de formatar as outras duas áreas à sua conveniência. Elegeram para tal o México, um país então liderado por uma administração corrupta e incompetente, com grande dependência dos EUA no comércio exterior. Juntamente com o Canadá, foi então celebrado o Tratado de Livre Comércio da América do Norte, o famigerado Nafta.
De outro lado, os países em desenvolvimento, frustrados com o papel de eternos perdedores no jogo de cartas marcadas do regime multilateral, passaram também a buscar nas iniciativas regionais de comércio a abertura para seus produtos que não conseguiam no âmbito do Gatt/OMC. Dentre esses casos, destaca-se o Mercado Comum do Sul, o Mercosul, assinado originalmente em 1991 entre o Brasil, a Argentina, o Paraguai e o Uruguai.
Deu-se então uma proliferação quantitativa dos pactos regionais de comércio, que cresceram cerca de 10 vezes num período de apenas 15 anos. Igualmente, houve uma evolução qualitativa de tais acordos, de micro-pactos regionais, passaram em alguns casos a macro-pactos regionais. Um desses exemplos é a infame Iniciativa das Américas, que almeja criar a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), formatada no Nafta e que, se concretizada, representará a ruína do Brasil. O outro é a Comunidade Sul-Americana, com a expansão do Mercosul. Também a UE sofreu um processo semelhante, com o aumento do número de estados membros.
Da mesma maneira, procurou-se adensar os pactos já existentes, o que se verificou principalmente na UE, inter alia com a adoção de moeda única, o euro, além de outras medidas de caráter político. Contudo, vislumbra-se hoje uma crise dos blocos de livre comércio, de uma maneira geral. No Nafta, o México descobre-se a vítima da insana política econômica reservada para si no pacto assentada no especioso e bizarro axioma de que quanto maior a miséria de seu povo, maior é a competitividade internacional do país.
Na UE, a recente rejeição do Tratado Constitucional pelos eleitores da França e da Holanda chamou a atenção para a grave dissidência interna no âmbito europeu, dividido entre aqueles que procuram promover o adensamento das instituições e preservar uma política social que mantenha patamares mínimos de proteção humanista e aqueles que desejam implantar o modelo liberal anglo-americano de valorização do capital e desprezo ao homem. Essa crise manifestou-se ainda de maneira grave na última cimeira européia, onde foi impossível obter-se um consenso sobre o orçamento comunitário.
Não bastasse tal quadro desolador, ainda se apresentou como líder estratégico europeu, perante o Parlamento Europeu dias atrás, oferecendo sua visão reformadora para o bloco, ninguém menos que a triste figura de Tony Blair, um populista barato e um político acusado de praticar crimes de guerra em seu próprio país.
Contemporaneamente à cúpula européia, realizava-se a cimeira do Mercosul, também com resultados frustrantes e reconhecidos publicamente por importantes líderes regionais. Ao contrário da UE, o Mercosul deixou de adensar o seu ordenamento jurídico regional, dependendo muito de negociações políticas, na falta de instituições aptas a solucionar com credibilidade os conflitos econômicos inexoráveis. Essa falha é tão mais decisiva, no caso do Mercosul, porque o bloco é formado por países em desenvolvimento, com sérias dificuldades internas.
De qualquer maneira, a somatória das dificuldades dos países membros tanto do Mercosul como da UE é ainda superior aos problemas dos respectivos blocos, o que nos leva a crer que o adensamento institucional de ambos, embora apresentando riscos, seja o caminho para a superação de crises momentâneas.