A Questão do Algodão e o Regime das Sanções na OMC

Publicado na Coluna Semanal do Dr. Noronha a convite do sítio “Última Instância – Revista Jurídica”, em 05 de maio de 2004, São Paulo, Brasil.

SÃO PAULO – Em Jersey, não há partidos políticos ou primeiro-ministro. Os três poderes que nos Estados de Direito são independentes, em Jersey confundem-se, na prática, com um só. De fato, os Estados de Jersey, a legislatura local, têm um presidente, que também é o presidente de Jersey e o presidente do poder judiciário. Seu título é o de “bailiff”, um termo do inglês medieval, de significado genérico original de administrador, mas que hoje, à exceção de Jersey, é aplicável somente aos oficiais de Justiça.
Essa estrutura constitucional não é obra do acaso, mas criada apositamente para a proteção da segurança jurídica ordinária de um paraíso fiscal onde hoje estão depositados ativos financeiros superiores a US$ 200 bilhões. Para todos os efeitos práticos, note-se que a moeda local é a libra esterlina. Dessa maneira, grande parte do fluxo financeiro de Jersey passa pela city londrina.
Assim, não é de surpreender que 80% da renda bruta interna de Jersey seja proveniente do setor financeiro. Os restantes 20% vêm, em sua quase totalidade, dos outros serviços periféricos e ancilares ao setor financeiro, como os serviços legais e contábeis, por exemplo. Como resultado, a renda per capta de Jersey é uma das maiores do mundo.

Naturalmente, os provedores de serviço de Jersey têm um grande interesse na manutenção do regime de paraíso fiscal, o que assegura a grande prosperidade de todos, ainda que freqüentemente em detrimento da ordem jurídica interna de terceiros países e do direito internacional.

Dessa forma, por exemplo, a legislatura de Jersey, que deve ratificar os tratados internacionais celebrados pelo Reino Unido, normalmente é relutante em matéria de cooperação internacional contra os crimes financeiros, fraudes fiscais, lavagem de dinheiro e outras atividades assemelhadas.

De qualquer maneira, é difícil provar quais os tratados internacionais ratificados, porque a legislatura de Jersey não publica os respectivos atos!

Acresce que o Poder Judiciário local, liderado, ao mesmo tempo e pela mesma pessoa do presidente do Poder Executivo e do Legislativo, tem sido acusado de conflito de interesses e de parcialidade nos casos a ele submetidos em matéria de cooperação internacional, já que a percepção de qual seja o principal bem a ser defendido é precisamente a da estabilidade do regime jurídico que seria ameaçado por essa cooperação.

Assim, não se pode esperar dos profissionais do direito em Jersey o mesmo padrão deontológico das demais democracias. Há, ainda, em Jersey, a complicar o quadro já grave, um conúbio incestuoso entre os diversos profissionais de serviços, que se freqüentam diuturnamente e que defendem, antes de mais nada, os seus privilégios.

Como conseqüência, os precedentes judiciais de Jersey em casos de matéria de fraudes indicam uma grande relutância na cooperação por parte das autoridades executivas e de uma enorme morosidade do Judiciário.

O próprio poderoso super-presidente de Jersey foi acusado de parcialidade num dos casos de maior notoriedade na jurisdição, tendo dado publicamente uma opinião expressa a respeito de uma ação sob seus cuidados, em favor e em defesa da reputação jurisdicional da ilha.

Igualmente, a jurisprudência local revela poucas vitórias das vítimas de fraudes, que se debatem com uma carência de leis eficazes de proteção ao consumidor e da falta de um “amicus curiae” da parte da autoridade financeira, como a CVM (Comissão de Valores Mobiliários), no Brasil, e da SEC (Securities and Exchange Commission), nos EUA.

Da mesma forma, a prática do contencioso em Jersey revela custos legais elevadíssimos e despropositados, que prejudicam ou impedem o acesso ao Judiciário por parte de vítimas de fraudes.

Em qualquer caso futuro de cooperação internacional naquela jurisdição, não seria de surpreender que haja uma grande dificuldade por parte dos autores.