Resenha por Claudio Willer, julho de 2018.
Antonio Paixão, o pseudônimo literário de Durval de Noronha Goyos, na abertura deste recém-lançado A história da literatura erótica & meus contos malditos (Editora UBE, 2018), declara “o caráter ficcional de maneira absoluta” de seus contos, cujos “personagens fictícios” são “criações puramente imaginárias”. Não obstante, chama a atenção o seu realismo. Seriam narrativas “à clef”, com personagens existentes, apenas disfarçados, por razões evidentes? Arnaldo Mendonça, o venal auditor aposentado a desfiar memórias, poderia, sem tirar nem pôr, ser alguém com quem cruzamos, em lugares por onde passamos – no relato, o decadente entorno da Avenida São Luís, Rua Martins Fontes e imediações. Quantas pessoas já não vimos que poderiam ser o pacato e bem-sucedido oportunista, um auditor aposentado que enriqueceu através dos expedientes tão notórios? Não fosse o desempenho sexual um traço diferenciador de Otavianinho do Som, vítima do seu priapismo, seria outro desses tipos que preenchem o cotidiano da metrópole, assim como o promíscuo Afonso, descobridor da própria bissexualidade, ou o promotor Reginaldo, outro bissexual. Os abusados e iniciados por padres: quantas histórias análogas já não circularam em bastidores e agora – finalmente – se tornaram públicas? E o casal formado por um brasileiro insaciável e uma fogosa soviética que conseguem chegar a termos na ascética China da Revolução Cultural maoísta? Pode não ter sido exatamente assim, porém encontros quebrando as regras da ascética militância chegaram, sim, a nosso conhecimento. Discreparia desse elenco de personagens comuns a grotesca Mafá, desenfreada e corrupta advogada portuguesa. Porém as situações em que se envolve essa êmula de Bernie Madoff e outros sociopatas são do mesmo naipe daqueles que vêm, há tempos, alimentando noticiários sobre golpes financeiros.
Semelhante realismo é acentuado pelas referências a restaurantes, hotéis e uma diversidade de lugares, no Brasil e nos demais países, onde transcorre a ação, bem conhecidos por Paixão / Noronha Goyos. Os exageros – do pênis de um, do desempenho sexual de outro, da voracidade de uma protagonista, do colossal fluxo de esperma e líquidos na China – podem comprometer a verossimilhança, mas não a veracidade. São recursos da sátira, modalidade literária à qual pertencem esses relatos. Sátira implacável, diria. Seus alvos são o arrivismo, a mediocridade, a dissimulação, submissão e conformismo em todas as suas manifestações. Vêm personificados não penas por um elenco de anti-heróis, mas por seus entornos e circunstâncias. Em primeira instância, pela ordem estabelecida, aparentemente estável, mas sob cujo manto tudo pode acontecer. Usando categorias de Freud e da psicanálise, estamos diante de conteúdos manifestos, que se apresenta como realidade, mas sob os quais mal se ocultam conteúdos latentes, algumas vezes grotescos, em outras tenebrosos. Recorrer a Freud cabe, ao examinar esses relatos, pois é de perversões que tratam; daquelas dissimuladas, mas que constituem uma realidade a custo camuflada.
Aliás, uma realidade histórica. Não foram satíricos também autores arrolados em A história da literatura erótica, o artigo que abre esse livro, a exemplo de Catulo, Marcial, Aretino, Rabelais, Gregório de Mattos, Bocage e tantos outros? Um Casanova, não expunha ele as entranhas de uma aristocracia decadente? Cabe observar, a propósito desse artigo, como consegue, em poucas páginas, oferecer um informativo panorama das expressões dessa modalidade, mostrando, inclusive, sua universalidade, seu caráter trans-histórico, bem como a fragilidade da fronteira entre os “clássicos”, como Shakespeare, e os cultores especialistas no gênero. Complementa obras de porte como História da literatura erótica, de Sarane Alexandrian, com o mérito adicional de abranger a lusofonia, os autores da nossa língua.
Por isso, no prefácio e no artigo de abertura Paixão / Goyos apresenta-se como incondicional defensor da liberdade de expressão. Coloca-se no polo oposto ao “discurso de ódio e suas manifestações”, observando, com razão, a afinidade dos totalitarismos e regimes autoritários com a repressão sexual. É oportuna – necessária, diria – essa tomada de posição, diante do que temos visto ultimamente no Brasil e em outros lugares, com a reaparição dos fanáticos, dos arautos da censura. Ao que parece, organizados e em número considerável, investindo contra manifestações artísticas, mobilizando-se para enquadrar o ensino, para fazer com que tudo volte a ser como era há meio século. A difusão de obras como A história da literatura erótica & meus contos malditos torna-se, nesse contexto, não apenas ocasião para a fruição da literatura, mas um oportuno antídoto