Além do Fato: O dever de boa-fé nas negociações de serviços

Publicado na versão eletrônica no sítio do JB On Line (http:\\www.jbonline.com.br), bem como na versão impressa no Jornal do Brasil, caderno Economia, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 20 de fevereiro de 2005.

LONDRES – Na semana passada, esteve visitando o Brasil um vice-ministro inglês, David Lammy MP, do departamento de assuntos constitucionais do governo britânico. O objetivo de sua visita foi o de instar autoridades brasileiras, a Ordem dos Advogados do Brasil e a comunidade jurídica à abertura dos mercados legais brasileiros a terceiros países. Como argumento, o vice-ministro afirmou que “no Reino Unido, assim como em outros países, o mercado jurídico é totalmente liberalizado e a experiência tem sido positiva, inclusive com maior oferta de trabalho”.

Como advogado qualificado na Inglaterra, árbitro do sistema multilateral, e professor em direito do comércio internacional, sei muito bem que a alegação acima representa uma flagrante inverdade. Os mercados jurídicos na União Européia (UE), quem negocia pelo Reino Unido no âmbito multilateral do Acordo Geral de Comércio em Serviços (GATS), foro dessas questões, são totalmente fechados por barreiras horizontais uniformes de imigração, bem como por diversos outros requisitos. Mesmo na Inglaterra, país sabidamente liberal na regulamentação das profissões jurídicas, o mercado não é totalmente liberalizado e as barreiras horizontais são as mesmas.

Esta questão traz à baila o regime jurídico da boa-fé no direito internacional e, especificamente, nas negociações multilaterais de serviços no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). De fato, o princípio fundamental mais importante do direito internacional é aquele da boa-fé. A própria Carta da Organização das Nações Unidas (ONU) determina, em seu artigo 2.2, que os membros devem cumprir de boa-fé os compromissos assumidos naquele tratado internacional da mais alta hierarquia.

Posteriormente, a Assembléia Geral da ONU, mediante a Resolução 2.625, declarou que os Estados estão obrigados a cumprir de boa-fé suas obrigações decorrentes do direito internacional. Por sua vez, a Convenção de Viena sobre a Lei dos Tratados manda aplicar o princípio da boa-fé nas regras gerais de interpretação, em seu artigo 31. A Convenção ainda manda aplicar, em seu artigo 46, o mesmo princípio no tocante ao conflito de tratados internacionais com normas internas.

A contrariu sensu, a Convenção ainda sustenta o princípio da boa-fé nas negociações levando a um tratado quando admite sua invalidação nos casos de erro, fraude, corrupção, coerção e conflito de tratados, conforme estipulado nos artigos 48, 49, 50, 51 e 52. Isto é natural, já que o direito internacional deve desencorajar a fraude e o uso da força nas relações internacionais. Assim, o princípio da boa-fé tornou-se norma peremptória de direito internacional.

Nesse sentido, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) decidiu em 1970 que: “um dos princípios básicos regulando a criação e cumprimento de obrigações internacionais, qualquer que seja sua fonte, é o princípio da boa-fé. A credibilidade e a confiança são inerentes à cooperação internacional, principalmente quando tal cooperação em muitos campos se torna essencial”.

É claro que esse princípio é também aplicável ao direito do comércio internacional, que tem uma hierarquia inferior à Carta da ONU e à Convenção. No sistema multilateral do comércio, para além do dever de boa-fé, deve ser acrescida a devida atenção aos países em desenvolvimento, muitas vezes denominada de “tratamento diferenciado e especial”. A razão disso é a reconhecida posição de vulnerabilidade dos países em desenvolvimento em relação àqueles desenvolvidos.

Assim, o Acordo Geral de Tarifas e Comércio de 1947 (Gatt 47), ainda em vigor, enuncia que os objetivos básicos do sistema multilateral incluem a melhoria dos padrões de vida e o desenvolvimento progressivo das economias de todos os signatários. O Gatt 47 ainda nota o caráter de urgência no alcance de tais objetivos da parte dos países em desenvolvimento. Por sua vez, na área de serviços, o princípio da boa-fé torna-se ainda mais importante porque o Gats não admite salvaguardas neste setor. Salvaguardas são um remédio de defesa comercial utilizado por um setor doméstico sofrendo danos face à concorrência externa.

Assim, o Gats contempla a participação crescente dos países em desenvolvimento por meio de concessões dos países desenvolvidos, que levem ao fortalecimento da capacidade, da eficiência e da competitividade daqueles. O Gats em seu artigo IV 1 ainda prevê que as concessões dos países desenvolvidos levem ao melhor acesso dos prestadores de serviços dos países em desenvolvimento aos seus mercados.

Por outro lado, o Gats em seu artigo IV 2 exige que os países desenvolvidos forneçam aos países em desenvolvimento informações relacionadas aos seus respectivos mercados a respeito dos aspectos comerciais e técnicos da provisão de serviços, normas de habilitação profissional e disponibilidade de tecnologia de serviços. Com base no exposto acima, resulta claro que quando um país desenvolvido faz uma proposta de serviços a um país em desenvolvimento, aquele deverá passar pelo seguinte teste de boa-fé:

o país desenvolvido deverá apresentar ao país em desenvolvimento plenas informações sobre os seus mercados;

o país desenvolvido deverá apresentar ao país em desenvolvimento uma análise de boa-fé a respeito de como as concessões solicitadas podem contribuir para o fortalecimento de seu setor doméstico e como o acesso internacional deste setor pode ser melhorado; e

o país desenvolvido deverá apresentar ao país em desenvolvimento uma declaração sobre como tomou em consideração os problemas e interesses do país em desenvolvimento ao fazer a demanda da concessão em referência.

O infeliz vice-ministro inglês resultou totalmente reprovado no teste.