Palestra proferida na Faculdade Ibero-Americana, São Paulo, Brasil, 14 de agosto de 1997.
1. INTRODUÇÃO
1.1. Nunca, na história da humanidade, o Direito Internacional teve uma aplicação tão generalizada e com impacto direto no quotidiano de todos nós como nos tempos atuais. Este fenômeno é decorrente do incremento das relações econômicas internacionais, da maior mobilidade das populações, bem como da generalização de novas tecnologias, disponíveis ao consumo de massa. Atos corriqueiros estão direta ou indiretamente regulados pelo Direito Internacional, como o de enviar uma carta; fazer um telefonema; utilizar-se do transporte aeronáutico; comprar um produto importado; vender um produto ou serviço ao exterior; viajar ao exterior; adquirir um livro; registrar uma marca comercial; usar um cartão de crédito para compras internacionais; etc.
1.2. Por muitos séculos, o Direito Internacional cuidou exclusiva ou primordialmente das relações soberanas entre Estados, o que contribuiu para uma certa solenidade da matéria, outrora de uso prático cingido às chancelarias e demais repartições diplomáticas, o que limitou no passado seu interesse a grupos arcanos. Esta situação não mais prevalece nos dias de hoje e, por conseguinte, o conhecimento dos fundamentos de Direito Internacional passou a ser indispensável não só para o mundo jurídico, como também das relações comerciais e bem assim para todos os que desejam ou precisam compreender o arcabouço da evolução econômica e social dos povos.
1.3. Dividi a apresentação de hoje da seguinte forma:
i. Esta Introdução;
ii. Conceito e natureza do Direito Internacional;
iii. Fontes do Direito Internacional;
iv. A personalidade no Direito Internacional;
v. Direito Interno e Direito Internacional;
vi. A questão da jurisdição e o conflito de leis;
vii. A Lei dos Tratados; e
viii. Conclusão.
2. CONCEITO E NATUREZA DO DIREITO INTERNACIONAL
2.1. O Direito Internacional clássico era, em suas origens, basicamente oligocrático, isto é, concebido por um pequeno grupo de grandes potências para servir e legitimar seus próprios interesses nacionais (3). Tal situação prevaleceu durante séculos e foi apenas com o final da Segunda Grande Guerra Mundial, em 1945, no bojo daquilo que se convencionou chamar de “a nova ordem mundial”, é que foram lançadas as bases de um novo sistema internacional com parâmetros na juridicidade e iluminado pelos ideais democráticos das potências vencedoras do conflito. Isto não significou a instantânea transformação do Direito Internacional, mas assinalou o início de um longo processo de transformação que objetiva a vigência do império da lei nas relações internacionais. A este processo se denomina Direito Internacional Contemporâneo.
2.2. Quando os Estados Unidos pretendem aplicar sua legislação interna extraterritorialmente, como no caso da notoriamente infame lei Helms-Burton ou quando invadem um país soberano como Granada, o fazem em violação ao Direito Internacional. No passado, a exeqüibilidade da primeira situação (de aplicação extraterritorial da lei) seria mais fácil do que se revela no mundo de hoje. Atualmente, a juridicidade da ação dos Estados soberanos é a premissa principal de seu relacionamento e o princípio que orienta as negociações internacionais atuais, como ocorreu, por exemplo, na Rodada Uruguai do Acordo Geral de Tarifas e Comércio – Gatt que resultou na criação da Organização Mundial do Comércio – OMC em 1995 (4). Todavia, alguns autores, surpreendentemente, pretendem, ainda hoje, justificar a coexistência do arbítrio com a da juridicidade do Direito Internacional, como se fossem princípios conciliáveis e não mutuamente excludentes. (5)
2.3. Dentro da perspectiva contemporânea, pode-se conceituar o Direito Internacional como o sistema de regras e princípios supra-nacionais que regulam a relação dos Estados soberanos entre si, bem como a de seus nacionais com terceiros Estados. Originalmente, o chamado Direito Internacional Clássico tinha uma natureza mais flexível e menos adversarial, pela falta de um mecanismo eficaz de resolução de disputas.
2.4. Assim, alguns estudiosos, no passado, questionaram a mera existência do Direito Internacional pela alegada falta de exeqüibilidade de suas normas, ao contrário do que se verifica no Direito Interno. Esta visão não se sustenta no mundo de hoje, muito embora ainda estejamos longe da perfeição. Normas de Direito Internacional são exeqüíveis nos mais diversos foros internacionais. Por exemplo, de acordo com a Carta da Organização das Nações Unidas – ONU, o Conselho de Segurança pode determinar ação contra um Estado quando ele representa uma ameaça à paz ou comete um ato de agressão ou de violação da paz, como ocorreu com o Iraque. Na área do Comércio Internacional, uma violação a uma decisão do sistema de resolução de disputas da OMC dá automaticamente ao Estado prejudicado o direito de impor sanções compensatórias contra o Estado julgado culpado. (6)
2.5. De mais a mais, há a Corte Internacional de Justiça, em Haia, que é o principal órgão judicial da ONU. Não se pode, todavia, obrigar presentemente um Estado soberano a comparecer perante a Corte Internacional de Justiça, mas se uma matéria vem a ser apreciada, então a decisão correspondente deve ser observada. De qualquer forma, dentro da reformulação da ONU para se dar maior representatividade e atenção à juridicidade, faz-se necessária uma reformulação da estrutura da Corte Internacional de Justiça, de tal forma a se dar uma maior amplitude de ação, bem como um sistema de sanções, com automaticidade, à semelhança daquilo que se montou na OMC.
3. AS FONTES DO DIREITO INTERNACIONAL
3.1. O artigo 38 dos estatutos da Corte Internacional de Justiça estabelece como fontes do Direito Internacional:
i. tratados internacionais, quer de caráter genérico ou específico, que estabeleçam regras expressamente reconhecidas pelos Estados soberanos;
ii. o costume internacional, como prática aceita por lei;
iii. os princípios gerais de Direito reconhecidos pelas nações civilizadas; e
iv. doutrina e jurisprudência relevantes.
3.2. Os tratados internacionais são o único mecanismo pelo qual os Estados soberanos podem conscientemente criar Direito Internacional. Podem ser divididos em tratados bilaterais (entre dois países) e tratados multilaterais (entre diversos países). O tratado para evitar a bitributação entre o Brasil e a Alemanha é exemplo de um tratado bilateral. O tratado do Gatt de 1994, que criou a OMC, é um exemplo de tratado multilateral.
3.2.1. Há uma série de princípios que regulam a celebração de tratados e estes como fonte do Direito Internacional. Em primeiro lugar, os tratados são voluntários e nenhum Estado pode ser a um tratado obrigado sem dele ser signatário. Um tratado só vale para um Estado contra os demais signatários da mesma convenção. Quando um tratado apenas codifica o Direito Internacional vigente seus termos são oponíveis a todos os Estados, como é o caso da Convenção de Viena sobre Relações Consulares. Quando um tratado codifica em parte o Direito Internacional vigente e cria novas normas em parte, como é o caso da Convenção de Viena sobre a Lei dos Tratados, então apenas a parte codificada vale contra os não signatários.
3.3. Os costumes internacionais são aceitos como fonte do Direito Internacional, muito embora a sua prova seja freqüentemente bastante árdua. O costume não necessita ser prática corrente na generalidade dos Estados, mas apenas naqueles onde se pretende afirmar um direito. Costumes internacionais têm sido reconhecidos por diversos tribunais internacionais, entre os quais a Corte Internacional de Justiça. (7)
3.4. Os princípios gerais de Direito geralmente reconhecidos pelas nações civilizadas não são, como se poderia a princípio imaginar, facilmente identificáveis e incontroversos. Há diversas teorias a respeito, uma das quais a do Direito Natural, muito utilizada em questões atinentes aos direitos humanos. Durante os anos da chamada Guerra Fria, juristas soviéticos recusavam-se a aceitar princípios gerais de Direito não constantes em tratados internacionais. De qualquer forma, prevalece hoje a posição que os princípios gerais para o Direito Internacional são aqueles aceitos por todos os ordenamentos jurídicos.
3.5. As decisões da Corte Internacional de Justiça são declaratórias a respeito de leis preexistentes, ao mesmo tempo que a aplicação do Direito Internacional em casos concretos, bem como uma referência jurisprudencial para casos futuros. A Corte Internacional de Justiça rejeita o princípio do precedente jurisprudencial obrigatório decorrente da doutrina de stare decisis. Em outros foros, como na OMC, a situação é semelhante na não aceitação da doutrina do precedente obrigatório, mesmo porque o sistema de painéis de arbitragem apresenta uma ampla variedade de árbitros, principalmente na primeira instância, mas também naquela de apelação.
3.5.1. O artigo 38 da Corte Internacional de Justiça coloca a doutrina juntamente com as decisões judiciais como fontes do Direito Internacional. Todavia, parece claro e evidente que o precedente judicial deve ter uma posição hierárquica superior à doutrina. Curiosamente, as decisões da Corte Internacional de Justiça reportam-se parcimoniosamente às citações doutrinárias. De qualquer maneira, não se deve subestimar a contribuição extraordinariamente importante da doutrina no Direito Internacional Contemporâneo, de vez que funciona como motor propulsor da juridicidade das relações internacionais.
3.6. É de se notar que o artigo 38 não se refere às resoluções dos organismos internacionais como fonte do Direito Internacional e a razão deriva do fato de que tais resoluções, por não serem tratados, tecnicamente, não obrigam os Estados soberanos. Este entendimento, todavia, tende a desaparecer. Com a intensificação do processo de globalização e com o decorrente fenômeno da criação de mercados comuns e de áreas de livre comércio, tem ocorrido uma derrogação da soberania dos Estados em favor de órgãos supranacionais, como no caso da Comissão Européia, no âmbito da União Européia. (8)
4. A PERSONALIDADE NO DIREITO INTERNACIONAL.
4.1. Tradicionalmente, tem-se entendido que os Estados soberanos são os principais sujeitos do Direito Internacional, seguidos pelos governos, territórios e populações. Dentro desta perspectiva clássica, não haveria lugar para a pessoa física nem para a pessoa jurídica no ordenamento do Direito Internacional. Todavia, dentro da evolução jurídica que já mencionamos anteriormente, nas últimas décadas foram criadas situações favoráveis para indivíduos bem como pessoas jurídicas reivindicarem direitos conferidos pelo Direito Internacional. Da mesma forma, indivíduos e pessoas jurídicas tornaram-se sujeitos de obrigações impostas pelo Direito Internacional. Essas situações têm-se multiplicado na área comercial (9), de Direitos Humanos e Criminal. O combate internacional ao crime organizado, os blocos comerciais e a globalização das economias, bem como a proteção aos direitos humanos, impõem esta realidade ao Direito Internacional e forçam sua evolução. (10)
4.2. De qualquer forma, os Estados soberanos são os sujeitos mais importantes do Direito Internacional e é a respeito principalmente de seus direitos e obrigações que se dedica a matéria. A natureza do Estado é definida pela Convenção de Montevideo sobre Direitos e Deveres dos Estados, de 1933 (11), segundo a qual o Estado como pessoa de Direito Internacional deve ter os seguintes requisitos: a) uma população permanente; b) um território definido; c) um governo; e d) capacidade de se relacionar com outros países. Tais requisitos são bastante óbvios, à exceção do último, que deve ser interpretado como “Estado legalmente independente”.
4.3. Por sua vez, as organizações internacionais, para poderem cumprir suas funções, também devem ter personalidade jurídica de Direito Internacional. Assim, não somente a ONU tem personalidade jurídica, como também a Organização dos Estados Americanos – OEA, a Organização da Unidade Africana – OUA, a Organização Mundial do Comércio – OMC e a União Européia (12), entre outras.
4.4. Neste ponto, vale a pena tecer alguns comentários sobre o significado jurídico da instituição do “reconhecimento” no Direito Internacional. Se um Estado reconhece um outro, significa que ambos aceitam a personalidade jurídica de Direito Internacional de cada um. Se um Estado reconhece o governo de um outro, significa que o primeiro aceita que o segundo seja representado nas relações de Direito Internacional por aquele governo. Assim, entre dois estados, o reconhecimento recíproco é a premissa básica para representação diplomática e tratados bilaterais.
5. A QUESTÃO DA JURISDIÇÃO E O CONFLITO DE LEIS
5.1. Trata-se de um dos pontos de maior relevância no âmbito do Direito Internacional e que tem hoje fundamental importância nas relações entre os Estados, particularmente no que toca aos acordos de livre comércio e a formação de blocos econômicos, nos quais os países em desenvolvimento têm que se defender dos objetivos hegemônicos das grandes potências econômicas. Esta situação sucede presentemente nas discussões para a eventual formação de uma Área de Livre Comércio das Américas – Alca. (13)
5.2. De fato, de acordo com o Direito Internacional, um Estado tem como a primeira e principal limitação a vedação ao exercício de sua soberania ou poder, de qualquer forma, no território de um outro Estado, a menos que haja consentimento expresso a respeito. Em outras palavras, um Estado não pode exercer sua jurisdição no território de um outro de nenhuma forma, incluindo através da aplicação de suas leis extraterritorialmente. Este princípio foi já consagrado durante a existência da Liga das Nações, antecessora das ONU, pela Corte Permanente de Justiça Internacional, antecessora da atual Corte Internacional de Justiça. (14)
5.3. Deste princípio decorre que a jurisdição de um Estado sobre seu território é absoluta, mas se esgota nos limites de suas fronteiras. Todavia, este claro princípio não elimina as possibilidades de conflito de jurisdição, principalmente em um mundo grandemente internacionalizado. Assim, um nacional de um país pode ser preso em um segundo Estado por uma fraude internacional cometida nos dois países e mais em outros dois. Desta forma, verifica-se o interesse de diversos países em processar, no caso o indivíduo, e pode suceder o chamado conflito de leis. Esses casos ocorrem hoje com freqüência na área financeira, como por exemplo aquele que recentemente envolveu um operador de derivativos do Banco Barings em Cingapura.
5.3.1. Do relacionamento entre o Direito Internacional e os diversos Direitos Internos, desenvolveram-se duas teorias jurídicas com interpretações distintas: o dualismo e o monismo. O dualismo esposa o ponto de vista de que os ordenamentos internacionais e internos decorrem de fontes distintas e coexistem sem influenciarem um ao outro. Adeptos da teoria do monismo, ao contrário, defendem a posição que há uma unidade essencial em ambos ordenamentos. A questão é relevante na prática para saber se um Estado pode invocar o seu ordenamento jurídico interno para se esquivar de cumprir uma norma internacional. A resposta, negativa, foi dada pela Convenção de Viena sobre a Lei dos Tratados. (15) No mesmo sentido pronunciou-se reiteradamente a Corte Internacional de Justiça. (16)
5.3.2. Outra questão relevante sobre o relacionamento entre Direito Interno e Direito Internacional diz respeito a como se situam os tratados internacionais na hierarquia das normas de Direito Interno. Na maior parte dos países do mundo, os tratados têm hierarquia superior e revogam a lei ordinária interna. A grande exceção são os EUA que sobrepõem suas leis internas aos tratados internacionais, em alguns casos, e , em outros, colocam ambas em nível de igualdade, o que permite que a lei interna nova revogue o tratado internacional anterior. Essa situação legislativa bizarra compromete a credibilidade dos EUA em iniciativas como a da Alca ou mesmo no âmbito da OMC. (17)
5.4. Os Estados exercem jurisdição sobre o seu espaço aéreo e sobre seu mar territorial, assim como sobre seu território propriamente dito. Certas áreas, todavia, estão fora da jurisdição de qualquer Estado, como por exemplo o espaço extra-atmosférico. Igualmente, o Tratado da Antártica de 1959 terminou com as reivindicações de soberania existentes a respeito daquele continente.
5.5. Como vimos, os Estados soberanos têm jurisdição absoluta sobre os próprios territórios e proibição do exercício extraterritorial de sua jurisdição. Todavia, no relacionamento entre as nações, é norma de Direito Internacional que um Estado tem certas imunidades a respeito da jurisdição de um outro Estado sobre o seu território. Essas imunidades normalmente dizem respeito aos agentes diplomáticos de um Estado em suas funções em um outro Estado. A respeito, vigem duas convenções celebradas em Viena, uma sobre relações consulares (1963) e outra sobre relações diplomáticas (1961).
5.6. Nas palavras de Rezek, “à parte o tema dos privilégios, as duas convenções encerram norma de administração e protocolo diplomáticos e consulares.” (18) Por sua vez, os chamados privilégios diplomáticos ensejam imunidade tributária, civil e criminal.
5.7. Recentemente, desenvolveu-se uma teoria jurídica limitando a imunidade dos Estados de acordo com o Direito Internacional. De acordo com os autores que a esposam, há que se diferenciar os atos de império dos atos de gestão (entre os quais estariam, por exemplo, as operações comerciais) de um Estado soberano, estando apenas os primeiros sujeitos à proteção das imunidades. Hoje, tal teoria é aceita nos EUA, no Reino Unido (19) e na maior parte dos países da União Européia, sem, contanto, ter fundamento no Direito Internacional.
6. CONCLUSÃO
6.1. Pela sua amplitude e complexidade, um tema como o Direito Internacional, ainda que limitado aos seus fundamentos, não pode se esgotar no tempo alocado a uma palestra, por mais generoso que seja. Outras áreas, além daquelas objeto de minha apresentação de hoje, ensejam um atento estudo por parte dos interessados. Entre elas situam-se a questão da responsabilidade dos Estados; a resolução pacífica de disputas; o uso da força; o Direito dos tratados; direitos humanos; e as organizações internacionais, entre as quais a ONU e a OMC requerem um exame mais aprofundado.