O “jus imperium” e o Direito Internacional

Publicado no Jornal do Brasil, Seção “Outras Opiniões”, Primeiro Caderno, página A10, de 09 de fevereiro de 2004.

O colapso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em 1991, representou um marco na história das relações internacionais em muitos e diversos aspectos, mas notadamente na formatação da política externa dos Estados Unidos da América (EUA), que livres da concorrência pela hegemonia, abandonaram até mesmo o parco esforço de desenvolvimento do direito internacional levado a efeito em conjunto com a comunidade das nações até então, com o objetivo de construir uma ordem jurídica transnacional que legitimasse seu império, um jus imperium. Tal mudança de atitudes deu-se ainda pela adoção da cândida, brutal e pragmática política externa de substituição do direito internacional pelo diktat do poder maior e absoluto, expresso na conformidade dos percebidos interesses nacionais daquele país.

Assim, em setembro de 2002, a administração Bush, em seu documento de estratégia de segurança nacional repudiou nada menos do que a Carta da Organização das Nações Unidas (ONU), no tocante ao uso da força, ao autorizar o seu uso preventivo e unilateral, ao contrário do disposto no artigo 2 (4) da Carta da ONU que proíbe especificamente o uso da força armada contra um outro país, a menos que em auto-defesa ou sob a égide daquela organização internacional, por meio de apósita deliberação de seu Conselho de Segurança. Logo em seguida, em outubro do mesmo ano, o Congresso dos EUA autorizou o Poder Executivo daquele país a empreender guerra contra o Iraque, mesmo sem a aprovação do Conselho de Segurança da ONU. A diplomacia estadunidense já havia ameaçado (sic) a ONU em setembro de 2003 no sentido de que, recusada a aprovação à guerra, os EUA tomariam a iniciativa unilateralmente. Não obtida a aprovação necessária, os EUA e o Reino Unido (RU) empreenderam uma aventura militar ilegal invadindo o Iraque. Contudo, nenhum dos argumentos políticos utilizados para tentar coonestar o crime são admissíveis como justificativa perante o direito internacional.

Ora, se os EUA violaram a Carta da ONU, o tratado internacional de maior hierarquia, o que dizer dos de inferior posição? De fato, tal ação não se apresenta isolada e, como se bem pode imaginar há, ao contrário, uma tendência firme e constante por parte daquele país de abandonar a ordem jurídica internacional. Tal se nota desde a sistemática recusa na ratificação da Convenção de Viena sobre a Lei dos Tratados, de 1969, que inter alia afirma a hierarquia superior dos tratados internacionais sobre o direito doméstico. Da mesma maneira, na área ambiental, o Protocolo de Kyoto de 2001, tratado que procura, num primeiro momento, limitar os danos ambientais para, em seguida, revertê-los, foi repudiado pelos EUA, justamente o país que maior poluição causa.

Por outro lado, no campo militar, o Tratado de Banimento de Minas, de 1997, que procura reduzir os danos à população civil do uso de minas, não foi assinado pelos EUA, que alegaram incompatibilidade aos seus interesses militares. Ainda na área militar, os EUA derrogaram, na administração Bush, o Tratado de Mísseis Anti-Balísticos (Tratado ABM) de 1972, que limitou o expansionismo militarista nuclear, durante a guerra fria. No mesmo setor, os EUA frustraram a Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio Ilícito de Armas de Pequeno Porte. Sempre na área militar, os EUA opuseram-se ao Tratado de Banimento de Testes Nucleares de 1996 e frustraram o Novo Protocolo adicional à Convenção sobre a Proibição de Armas Biológicas e Tóxicas (CIAB), de 2001, porque recusam-se a admitir inspeções. Não bastassem tais medidas, os EUA ainda repudiaram a Convenção sobre a Proibição de Armas Químicas (CIAC) de 1993.

No setor de direitos humanos, os EUA rejeitaram o Novo Protocolo sobre a Convenção de 1987 sobre a Tortura, da mesma forma que rejeitaram a Convenção sobre a Eliminação de todas formas de Discriminação contra as Mulheres e, até mesmo, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança. Nem mesmo a criação da Corte Internacional de Justiça, decidida por tratado de 1998, foi apoiada pelos EUA, que temia o enquadramento criminal de agentes políticos e militares de sua administração direta. Neste caso, os EUA inovaram na ordem jurídica internacional pretendendo a remoção de sua assinatura ao tratado, que naturalmente jamais foi ratificado por aquele país. Mais ainda, os EUA buscaram assinar tratados bilaterais de impunidade criminal de seus agentes, como aqueles firmados com Israel, Romênia, Tajiquistão e Timor Leste. A própria Convenção de Genebra relativa ao Tratamento dos Prisioneiros de Guerra de 1949, um dos principais baluartes internacionais de normatização dos direitos humanos, foi repelida em sua quase totalidade pelos EUA nos recentes conflitos em que este país se envolveu, notadamente no Afeganistão e no Iraque, mas já anteriormente no Panamá.

Ainda no segmento de direitos humanos, os EUA retiraram-se da Conferência Internacional sobre o Racismo, realizada em Durban, na África do Sul, em 2002, iniciativa que contou com o quase unânime apoio da comunidade internacional. À semelhança, os EUA, apenas no ano de 2003, no âmbito da Assembléia Geral da ONU, votaram contrariamente a duas resoluções apresentadas pela Comissão de Direitos Humanos daquela organização internacional. A primeira delas declara o direito humano ao mais alto padrão de saúde física e mental, aprovada com 166 votos, com o voto isolado de oposição dos EUA. A segunda delas dizia respeito ao direito ao acesso a medicamentos no contexto de pandemias como as doenças relacionadas com a AIDS, a malária e a tuberculose, aprovada por 167 votos, novamente com o voto contrário isolado dos EUA.

No setor trabalhista, os EUA ratificaram apenas 14 das 185 convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT). À guisa de comparação, o Brasil ratificou 90 convenções. Dentre as convenções não ratificadas pelos EUA estão as de número 100 e 111, por exemplo, que tratam da discriminação no trabalho. Da mesma forma, os EUA não ratificaram a Convenção OIT 138 que trata da proibição ao trabalho infantil. Das duas convenções sobre trabalho forçado, a OIT 29 e a OIT 105, os EUA não ratificaram nenhuma, o que permite a prática de trabalho forçado nas prisões estadunidenses com remuneração simbólica. Pelo menos três estados federados dos EUA exportam bens fabricados em prisões daquele país. Igualmente, os EUA deixaram de ratificar a Convenção OIT 98, que trata do direito de organização sindical e de negociação coletiva.

Os obstáculos colocados pelos EUA à formação e desenvolvimento do direito internacional são ainda freqüentemente acompanhados de uma forte manipulação e desestabilização dos organismos internacionais incumbidos de sua aplicação. Na própria ONU, vimos como uma autorização do Conselho de Segurança, havida no caso do Afeganistão, pode levar a graves violações de direitos humanos e desrespeito ao direito internacional. Na Organização Mundial do Comércio (OMC), criada em 1995, verifica-se uma gigantesca manipulação do sistema, em detrimento dos países em desenvolvimento, para favorecimento de um núcleo central dos países desenvolvidos, notadamente dos EUA. O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial funcionam como departamentos da Secretaria do Tesouro dos EUA, promovendo objetivos estratégicos da política externa daquele país, mediante favorecimentos ou sanções, conforme apropriado, como ocorreu no seu vergonhoso tratamento da Argentina, no passado recente.

Não se deve imaginar, contudo, que a formulação de tal política externa de abandono do exercício de desenvolvimento do direito internacional junto à comunidade das nações seja apenas um capricho idiossincrático de um tiranete obtuso, caricato e sanguinário. Tal formatação tem raízes bastante profundas no universo político e econômico dos EUA e, de um modo geral, independem da figura de seu presidente. Não obstante, mesmo dentro da lógica do poder bruto, faz-se necessária a consolidação de um jus imperium, que está sendo promovido por aquele país mediante uma rede de tratados desiguais tanto bilaterais como regionais. Este movimento compreende, mas não exclusivamente, os acordos comerciais e tenderá a acelerar-se num futuro próximo.