Publicado na Revista Seqüência 45, editada pela Universidade Federal de Santa Catarina, Curso de Pós-Graduação em Direito, Ano XXIII, Dezembro/2002, páginas 197 a 227, Florianópolis, SC, Brasil.
1.- O CONTEXTO HISTÓRICO DO ACORDO GERAL DE TARIFAS E COMÉRCIO (GATT) E A TEORIA DO REALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS.
O Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) foi assinado em 1947 originalmente por 23 países, incluindo o Brasil, e fez parte dos acordos internacionais assinados ao final da segunda grande guerra visando a criação de uma nova ordem mundial. Até então, nunca tinha-se verificado, na história moderna, uma tal hegemonia de um país sobre os demais que se permitisse uma imposição de diversos sistemas de direito internacional por um estado aos outros. As condições particulares do final do conflito, em que o mundo achava-se em grande parte destruído, permitiram aos Estados Unidos da América (EUA) que impusessem um regime jurídico comercial internacional, com alguma contribuição ideológica do Reino Unido.
Tal fenômeno recebeu roupagem doutrinária através a chamada “teoria do realismo nas relações internacionais”, mediante a qual os estados hegemônicos deveriam agir puramente no interesse próprio e com o objetivo único da perseguição de segurança política e militar(3). O “desafio realista” impunha o corolário do desprezo à ordem jurídica internacional, condenada a um papel periférico e ocasional na regulação das relações internacionais(4). O sistema internacional resultante de tal quadro foi composto das chamadas instituições de Bretton Woods, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e o GATT. Seu garante seriam os EUA, agindo no seu próprio interesse.
O objetivo jurídico do GATT foi o de estabelecer uma ordem jurídica para o comércio internacional de mercadorias. O objetivo dos negociadores dos EUA era no sentido de que esta ordem jurídica beneficiasse-os a curto prazo e que, potencialmente, não prejudicasse de forma significativa seus interesses econômicos, a médio e a longo prazo. Desta forma, prevendo a probabilidade, num futuro próximo, do aumento da competitividade no setor agrícola, como parte da reconstrução mundial, o segmento foi excluído do sistema multilateral do GATT, apesar de representar a atividade humana econômica mais tradicional e de ser aquela de maior importância para os países em desenvolvimento. Este revés representou a primeira derrota do Brasil no sistema multilateral de comércio, já que tinha sido a única reivindicação levada pelos negociadores brasileiros(5).
O sistema multilateral de comércio foi baseado no pilar do princípio da cláusula da nação mais favorecida (NMF)(6), segundo o qual uma concessão a um país é automaticamente aplicável a todos os países signatários do tratado. Este princípio basilar evitaria as iniqüidades do comércio favorecido e promoveria a liberalização generalizada das trocas e, por conseguinte, a prosperidade geral. O princípio, no entanto, não é absoluto e admite diversas exceções, inclusive aquela consagrada no artigo 24 do GATT, que permite a formação de zonas de livre comércio, mercados comuns e uniões aduaneiras.
Na prática, contudo, o GATT demonstrou-se um jogo de cartas marcadas onde, sob o diáfano verniz da pretensa juridicidade, escondia-se um sistema criado para promover a hegemonia e a prosperidade de uns poucos às expensas de muitos. O sistema do GATT funcionava na base do consenso, que foi a forma encontrada pelos EUA de manter o seu poder de veto às alterações pretendidas à estrutura erigida sob sua inspiração e vontade. Todas as alterações às regras originais, bem como a criação de novas, eram dependentes do sistema de rodadas de negociações, mediante o qual representantes dos países signatários buscavam o consenso a respeito das matérias tratadas. As cinco primeiras rodadas do GATT foram iniciadas sob a inspiração e iniciativa dos EUA. As mudanças obtidas o eram freqüentemente como resultado de pressões políticas e econômicas daquele país(7).
Enquanto todos os países signatários colocavam o ordenamento jurídico do GATT acima de suas legislações nacionais, os EUA faziam o contrário, de tal maneira a permitir que seu ordenamento jurídico interno tivesse medidas que neutralizassem seus compromissos multilaterais(8). Essa idiossincrasia permitiu que os EUA mantivessem normas internas contrárias aos seus compromissos internacionais no GATT, como na área “antidumping”. Desta forma, enquanto os EUA podiam exercer os direitos decorrentes do GATT contra os seus parceiros comerciais, a recíproca não era necessariamente verdadeira.
Muito embora os EUA tivessem uma estrutura realista de poder e uma situação econômica a lhes permitir um abuso devastador na ordem internacional, há de se ressaltar que, na prática, os países em desenvolvimento foram mantidos numa situação que os mantinha na zona limítrofe superior da miséria absoluta. Tal ocorreu, não por decorrência de posicionamentos altruístico ou eqüitativos, mas ao contrário, como corolário da guerra fria, que antagonizava o sistema capitalista ao sistema comunista. A mesma equação permitiu, e até encorajou, o desenvolvimento econômico nos aliados estratégicos dos EUA, para que pudessem juntar forças na oposição aos rivais comunistas. Como corolário deste estado de coisas, deu-se a recuperação econômica do Japão e da Europa. Os países menos desenvolvidos, no entanto, ficaram relegados à miséria absoluta e, por decorrência, tornaram-se joguetes no mundo bi-polarizado.
Todavia, a guerra fria não impediu que as regras do sistema multilateral de comércio continuassem não eqüitativas e prejudiciais aos demais países, inclusive aos aliados estratégicos dos EUA. Como decorrência, em meados da década de 80, o Japão, uma das maiores vítimas das arbitrariedades institucionais dos EUA em matéria comercial, tomou a iniciativa de requerer o início de uma nova rodada de negociações do GATT. Era a primeira vez que um país outro que os EUA tomava a iniciativa de fazê-lo. Ao contrário de oporem-se à iniciativa, os hábeis estrategistas dos EUA cooptaram-na, para melhor servir aos seus interesses. Pretendia o Japão uma maior segurança jurídica no sistema multilateral, para evitar os abusos dos quais era vítima. Os EUA prontamente sugeriram a expansão do campo de abrangência do GATT para a inclusão das áreas novas como serviços, investimentos e propriedade intelectual. Os EUA haviam se apercebido que a dinâmica econômica mundial era tal que havia chegado o momento da convergência de interesses entre os países desenvolvidos, para melhor exploração do potencial dos países em desenvolvimento. A então Comunidade Econômica Européia(9) (CEE) estava de pleno acordo.
A questão da cooperação entre as potências para a exploração dos países menos desenvolvidos não era nova, nem no aspecto prático, nem tampouco sob o prisma teórico. Já em meados do século 19, por exemplo, o Império Britânico, EUA, França e Holanda tinham colaborado ativamente no contrabando de heroína para a China(10), de tal forma a criar naquele país um produto de consumo que devesse ser necessariamente adquirido do exterior, com o objetivo de eliminar os saldos comerciais chineses. Na ocasião, os EUA aproveitaram-se da política exterior inglesa e chegaram a ter cerca de 10% do comércio da droga maldita para a China(11). Para os sagazes estrategistas ingleses, como Benjamim Disraeli, não escapou a constatação de que a expansão das relações comerciais britânicas dependia de uma política de acerto com outras potências(12).
Para a surpresa de todos os envolvidos, a cooperação das grandes potências na Rodada Uruguai sofreu uma tanto inesperada como bem sucedida oposição dos países em desenvolvimento que, pela primeira vez, recusaram-se a aceitar o regime expoliativo proposto. Liderados pela Índia e pelo Brasil, no chamado Grupo dos Onze, tais países foram contrários à inclusão das chamadas áreas novas sem que seus setores de maior competitividade relativa no comércio internacional, o agrícola e o têxtil, fossem incluídos no sistema. Instaurou-se imediatamente grande acrimônia no GATT. As relações entre países desenvolvidos e em desenvolvimento tornaram-se não somente álgidas, mas também acerbas. Os EUA, na administração Reagan, lançaram uma campanha de desestabilização do Brasil(13), então muito vulnerável na reconstrução democrática iniciada no governo Sarney, visando sua exclusão das fontes de financiamento das agências multilaterais de crédito, bem como adotando uma política de juros predatória destinada a arruinar a economia brasileira, numa medida comercial inequivocamente característica de estado de guerra.
No decorrer do impasse, deu-se a queda do muro de Berlim e ocorreu o colapso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) que havia induzido um certo sentido de parcimônia e comedimento aos EUA, em suas relações com o resto do mundo, em geral, e com os países em desenvolvimento, em particular. A mudança da situação geo-política global levou à cessação das resistências às pretensões dos EUA e seus aliados por parte dos países em desenvolvimento, muitos dos quais apressaram-se a ceder às exigências formuladas, sem ao menos negociar as contrapartidas dentro do quadro de negociações da Rodada Uruguai, como foi o caso de Argentina e Brasil. Restou aos países em desenvolvimento lutar pela maior juridicidade do sistema multilateral de comércio e aceitar o compromisso de inclusão efetiva das áreas agrícola e têxtil após um período de desgravação.
Já ao cabo da Rodada, o próprio Banco Mundial e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) apontavam os países em desenvolvimento como perdedores da ronda de negociações. Segundo uma ominosa análise do Banco Mundial datada de 1993, os resultados da Rodada Uruguai beneficiariam em 64% países desenvolvidos, contra 36% para os países em desenvolvimento(14). A realidade provar-se-ia muito pior. De acordo com um recente estudo do FMI, os países desenvolvidos ficaram com 73% dos benefícios durante os subseqüentes 6 anos de vigência da OMC, contra apenas 27% dos países em desenvolvimento(15).
2.- A CRIAÇÃO DA OMC E O DESEMPENHO DOS PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO, NOTADAMENTE OS DO MERCOSUL.
Com a assinatura dos Tratados da Rodada Uruguai, em 1994, foi criada a Organização Mundial do Comércio (OMC), que passou a vigorar a partir de 1995, coexistindo com o tratado do GATT(16). Na ocasião, alardeou-se com gravibundez que uma nova era de prosperidade mundial tinha sido iniciada. Em todo o mundo em desenvolvimento, inclusive no Brasil e na Índia, manifestações houve de importantes lideranças políticas no sentido de que muito se esperava da nova ordem multilateral de comércio. Ocorre que a fase final das negociações da Rodada Uruguai foi marcada por uma grande omissão dos países em desenvolvimento, o que permitiu às principais potências adequar o sistema às suas vontades, culturas e preferências idiossincráticas. Isto sucedeu-se inclusive no sistema de resolução de disputas, depositário de todas as esperanças do fim do arbítrio e da iniqüidade no sistema multilateral de comércio. Assegurado o domínio do sistema pelas potências hegemônicas, foi ele utilizado no sentido de extração de vantagens nacionais ou setoriais, em detrimento do interesse coletivo.
De fato, nos cinco anos subseqüentes à fundação da OMC, em 1995, a prosperidade mundial esteve, mais do que nunca, circunscrita aos países desenvolvidos, particularmente os EUA e a União Européia (UE). Contemporaneamente, os países em desenvolvimento foram vítimas de uma enorme crise de volatilidade financeira internacional; diminuição de exportações; dramática redução dos preços de suas mercadorias agrícolas e demais produtos básicos; crises econômicas; e generalizada desesperança. De acordo com números da OMC, tanto a Ásia como a América Latina tiveram um pior desempenho no comércio de mercadorias nos quatro anos subsequentes a 1995 do que no período precedente.(17) Preços de mercadorias agrícolas caíram consistentemente no período, sendo que mais de 30% somente após 1998.(18) Os preços do café caíram 70% desde 1997(19). De acordo com a OMC, a África e a América Latina dependem em 19% e 36% do setor agrícola em suas exportações(20). Por sua vez, os agronegócios, no Brasil, respondem por 25% do PIB, 37% do total de empregos e 40% das exportações.
A participação do Brasil no comércio global caiu de cerca de 1.6% quando do lançamento da Rodada Uruguai em 1986 para 0.8% hoje. O Brasil exporta apenas US$ 323 per capita, contra US$ 6.000, em média, nos países desenvolvidos. Apenas aproximadamente 3.000 empresas brasileiras são exportadoras e destas, somente cerca de 400 recebem financiamento às suas exportações, sendo que uma só absorve quase 45% dos recursos disponíveis. Desde a criação da OMC, em 1995, o Brasil acumulou um défice comercial de US$ 21 bilhões, maior do que o total agregado desde sua independência. Este défice causou a exportação de mais de 3.5 milhões de empregos. Por outro lado, o crescimento médio da economia brasileira no mesmo período foi de apenas 2.4%, um dos menores do mundo. Este crescimento foi mal suficiente para a absorção do incremento populacional e repercutiu negativamente na criação de mão de obra e assimetricamente na distribuição de renda, de modo a desfavorecer as classes menos privilegiadas.
Balança Comercial
Evolução da balança comercial desde o início do governo FHC, em US$ milhões
Por sua vez, a Argentina foi um dos países mais prejudicados pela ordem econômica multilateral, desde sua criação em 1947, passando da posição duma das 7 maiores economias mundiais do pós-guerra, para um estado virtualmente levado à inviabilidade. É claro que a exclusão dos produtos agrícolas do sistema multilateral de comércio e as montanhas de subsídios tanto ilegais como imorais praticados pelas maiores economias não foram a única causa da derrocada argentina. Igualmente, foi também grandemente responsável a campanha de desestabilização do Mercosul, levada a efeito pelos EUA, e apoiada ao longo de 10 anos pelo FMI, que compreendeu a indução ao governo argentino à adoção da insana, bizarra e grotesca paridade cambial do peso com o dólar. Esta situação levou à queda do PIB argentino em nada menos de 20% nos últimos 4 anos(21), com o nível de desemprego atingindo o terrível patamar de 35%. Desde 1995, o PIB acumulado argentino caiu 4.3%!
As crises econômicas foram seguidas por instabilidade social e política em grandes partes do mundo. Na Rússia, o escambo tornou-se o principal meio de troca. Na África, a situação continua dramática e mesmo as experiências bem sucedidas, como é o caso da África do Sul, deixaram de ter o apoio de maior acesso de seus produtos aos mercados internacionais, tendo resultado num quadro de instabilidade induzida do exterior, inclusive pela grande desvalorização cambial havida desde a democratização do país em 1994. A crise afetou até economias desenvolvidas, como a japonesa. Ainda na Ásia, Filipinas, Tailândia, Indonésia e Malásia, todos tiveram dramáticos problemas econômicos. A Índia, o hoje segundo mais populoso dentre os 144 membros da OMC, mas o primeiro quando de sua criação, deixou de ter qualquer benefício digno de nota como resultado do novo sistema multilateral de comércio.
Na América Latina, é grave o quadro de instabilidade econômica e política, que ameaça a prevalência do estado de direito e a prosperidade dos povos. Há movimentos de insurgência armada na Colômbia, Peru, Equador, México, Venezuela e, até certo ponto, na Argentina e no Brasil. O Mercosul, uma meritória iniciativa, está naufragando sob a perspectiva comercial, relegado a uma situação de trocas administradas decrescentes, em função das enormes dificuldades institucionais na Argentina. Por sua vez, os organismos internacionais, manipulados por um matiz hegemônico sem limites, orientado pela política do realismo, impuseram a estólida insana e cruel doutrina de que, quanto maior a miséria doméstica, maior a competitividade internacional do país. Hipocritamente, a receita só vale, é claro, para os países em desenvolvimento e é sustentada nos regimes multilaterais e também nos acordos regionais com potências hegemônicas.
O México, por exemplo, dentro do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), tornou-se um exportador de pobreza. A renda do trabalhador industrial mexicano decresceu 50% desde a instituição da área de livre comércio e 80% da população vive abaixo do nível de pobreza. Os principais produtos de exportação mexicanos são os derivados da miséria: os maquilados e as remessas dos imigrantes ilegais, que se equiparam aos investimentos estrangeiros em valor(22)!
3.- OS TEMAS DA RODADA DE DESENVOLVIMENTO/DOHA.
Assim, sob a perspectiva dos países em desenvolvimento, a experiência da OMC não foi positiva. De fato, as modestas concessões havidas nas áreas agrícola e têxtil, durante a Rodada Uruguai, não foram suficientes para assegurar sua competitividade natural, já que cuidadosamente feitas para manter as vantagens dos países desenvolvidos(23). Mais ainda, a ordem jurídica da OMC permitiu o aumento não autorizado dos subsídios ilegais agrícolas pelos países desenvolvidos de mais de US$ 1 bilhão ao dia. Estes subsídios distorcem os preços das mercadorias agrícolas e impedem o acesso dos produtos dos países em desenvolvimento não somente ao território dos países que subsidiam, notadamente os EUA, a UE e o Japão, mas também eliminam o acesso a terceiros países e, agora, até passaram a acabar com as próprias indústrias domésticas.
Os EUA, por exemplo, tem hoje nada menos de 10 programas de subsídios diretos aos produtores agrícolas e, ao menos, outros 10 programas indiretos. Em termos de volumes absolutos, os subsídios americanos atingiram hoje o espantoso volume de US$ 150 bilhões, para uma produção agrícola total de US$ 128 bilhões, o que corresponde a 115% do valor efetivamente produzido. Estes números assustadores significam que os EUA deixaram de ser uma economia de mercado no setor agrícola. Os danos causados pelas práticas tanto grotescas quanto ilegais dos subsídios agrícolas dos EUA são devastadores para países como o Brasil, que tem 25% do PIB dependente do agronegócio, responsável por 37% do total de empregos no País, principalmente para aqueles mais humildes e necessitados. Somente os subsídios agrícolas americanos representam 3 vezes a produção rural brasileira, o que significa que os EUA desembolsam US$ 3,00 dólares em subsídios para cada US$ 1,00 produzido no Brazil. Assim, os países desenvolvidos colocam suas mercadorias agrícolas no exterior com práticas de dumping, praticando um preço, na média, pelo menos 1/3 inferior ao custo local(24).
A inclusão das novas áreas no sistema multilateral de comércio permitiu aos países desenvolvidos acesso aos mercados dos países em desenvolvimento, mas não permitiu a estes acesso aos mercados daqueles, fechados por medidas horizontais. O Acordo sobre Medidas de Investimentos relacionadas com o Comércio (TRIMS) deixou de tratar da escandalosa cumplicidade dos países desenvolvidos com a questão das fraudes fiscais e da fuga de capitais nos países em desenvolvimento e da privatização de serviços públicos essenciais. O Acordo Antidumping, sopitado e pusilânime, permitiu aos EUA a manutenção de sua legislação doméstica acintosa à eqüidade e aos mais comezinhos princípios de direito internacional(25).
Por sua vez, o Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio (TRIPS) subordinou as autoridades nacionais dos países em desenvolvimento àquelas dos países desenvolvidos por meios do conceito da proteção “pipeline”. Da mesma forma, o TRIPS deixou de resguardar adequadamente a questão da implementação de políticas de saúde pública, falha que resultou inclusive no confronto entre o Brasil e os EUA no tocante às patentes farmacêuticas, ainda não resolvido, sob o prisma jurídico(26). O Acordo sobre Regras de Origem permite o protecionismo institucionalizado nas áreas de livre comércio e seu uso para desviar as correntes tradicionais de troca, como é o caso no Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), onde se verificou o aumento da dependência mercantil do México aos EUA e um devastador efeito na área do Caribe. Por sua vez, o Acordo Sanitário e Fito-Sanitário apresenta uma enorme zona cinzenta e áreas de omissão, que permitem o arbítrio.
O Acordo sobre Subsídios não é justo nem eqüitativo aos países em desenvolvimento, colocando Índia, África do Sul e Brasil no mesmo nível de países como a Suíça e França. O Acordo Salvaguardas tem mais buracos que um queijo suiço. De mais a mais, práticas altamente danosas aos países em desenvolvimento como o dumping financeiro e tecnológico, largamente utilizadas para assegurar domínio de mercado, não foram contempladas(27). Na área de serviços, a questão da barreira horizontal consubstanciada nas exigências draconianas de imigração aos prestadores de serviços dos países em desenvolvimento, permanece em aberto. Acresce, ainda, que a exceção feita na prática aos EUA, no tocante ao compromisso único compromete decisivamente a isonomia e, por conseguinte, a juricidade do sistema multilateral de comércio.
Até mesmo o sistema de resolução de disputas, depositário de tantas esperanças, deixou muitíssimo a desejar nos anos de funcionamento da OMC. Muitos de seus problemas derivam da falta de regras processuais adequadas, que comprometem a eficácia e juridicidade do sistema(28). Outros problemas decorrem de graves falhas operacionais do sistema de resolução de disputas. Uma revisão do sistema, que deveria ter tomado lugar em 1999 falhou miseravelmente por falta de interesse dos países que dele são beneficiários e por incompetência daqueles prejudicados. Trataremos desta questão com maior profundidade no próximo segmento desta conferência.
4.- AS FALHAS OPERACIONAIS E SISTÊMICAS DO ÓRGÃO DE RESOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS DA OMC.
O sistema de resolução de disputas da OMC não foi concebido por juristas ou advogados, mas sim por diplomatas, muito embora fosse a intenção declarada dos estados signatários do GATT, durante a Rodada Uruguai, a construção de um edifício assentado sobre os sólidos alicerces da juridicidade. Desta maneira, o sistema apresenta falhas sistêmicas gravíssimas, tanto pela falta de um vocabulário claro e inequívoco, bem como pela ausência de institutos processuais fundamentais para se assegurar o equilibrado e eficaz funcionamento do instituto. Assim, o sistema é falho no tocante a certos institutos legais básicos como recovenção e litisconsórcios. A primeira das omissões institucionais implica em que seja instalado um painel de arbitragem para o pedido original e outro para a reconvenção, com árbitros diferentes, embora as partes sejam as mesmas e o objeto conexo, como ocorreu com a primeira rodada de contenciosos Brasil versus Canadá e Canadá versus Brasil, na questão da indústria aeronáutica. Essa situação implica na tangível possibilidade que as decisões dos dois, três ou quatro painéis tratando de matérias conexas sejam diversas e até contraditórias. Por sua vez, a segunda das omissões pode resultar na formação de díspares painéis, com árbitros diferentes e termos de referência diversos, que pode resultar em diferentes decisões para a mesma questão de direito.
Outra falha do sistema diz respeito à impossibilidade da alegação de preliminares, como por exemplo a questão de conflitos entre tratados, que se tornou relevante em painéis de arbitragem julgando recentes casos de interesse do Brasil e Índia. A argüição de preliminares é de fundamental importância para qualquer processo jurisdicional, porque é aí que se propugna pela incompetência de foro e pela incompetência de juízo, questões sabidamente basilares, principalmente no âmbito do direito internacional público. Da mesma forma, o objeto da ação não é dado pela parte, mas sim pela Divisão Jurídica do Secretariado da OMC, o que dá ensejo a graves falhas operacionais, como veremos mais adiante.
O sistema de resolução de disputas da OMC falha ainda ao não admitir o instituto da reconvenção, o que exige a formação de dois painéis de arbitragem, um para a ação, outro para a reconvenção, com termos de referência possivelmente desencontrados e com árbitros diversos. O tratado de regência, O Entendimento sobre Resolução de Disputas, falha ainda por não dispor regras sobre a fase processual probatória e normas atinentes à chamada evidência ou mesmo para a perícia técnica ou especializada. Assim, se na instância superior, o painel não houver conduzido a fase probatória a contento, o painel de apelação não poderá, por exemplo, converter o julgamento em diligência.
O sistema falha ainda na inexistência de um mecanismo eficaz de sanções, com a exeqüibilidade de obrigações de fazer e de não fazer. Ao invés, as sanções previstas dizem respeito ao cancelamento de concessões tarifárias outorgados ao parceiro perdedor, por decorrência da aplicação da cláusula de nação mais favorecida, na medida dos prejuízos sofridos. Assim, uma ilegalidade cometida no setor do aço, por exemplo, pode ser sancionada com uma majoração tarifária em mercadorias agrícolas, o que não tem o condão de remediar o dano e punir o setor infrator. Ao contrário, pune-se o inocente e o fluxo comercial bilateral saudável entre vencedor e perdedor.
Outra falha sistêmica do sistema de resolução de disputas da OMC diz respeito à confidencialidade dos procedimentos, que impede a devida governança e os controles democráticos nos países membros da organização. Igualmente, não faz sentido a existência de um sistema de consultas embutido num sistema contencioso. As regras contenciosas devem tratar do litígio, ficando abertas sempre as oportunidades de consultas a respeito do objeto da lide. Chega a ser escandaloso que o sistema de resolução de disputas da OMC não tenha um processo físico ou virtual, o que diminui dramaticamente a credibilidade do mesmo. Mais ainda os prazos para as diversas fases do processo não são universais, podendo ser aplicados idiossincraticamente, a uma parte e a outra, com grande injustiça, pelos painéis. Por último, como pode um sistema de resolução de disputas no direito internacional público pretender sustentar a prevalência do direito e a juridicidade sem contemplar a participação das profissões legais no processo?!
Por outro lado, o sistema de resolução de disputas da OMC tem inúmeras falhas operacionais a comprometer irremediavelmente a lisura do procedimento. A primeira delas diz respeito à falta de transparência. A Divisão Jurídica do Secretariado da OMC na prática escolhe os árbitros; define os termos de referência, ou o objeto do litígio; e presta assessoria mandatória tanto aos painéis de primeira instância, como ao grau de apelação, já que nem um nem outro tem estrutura administrativa própria. A divisão jurídica do secretariado da OMC tem uma composição altamente etnocêntrica, dominada por nacionais das principais potências. A OMC, em flagrante violação dos mais básicos princípios de governança, inclusive daqueles santimonialmente recomendados pela OCDE, tem se recusado, por escrito, a fornecer a nacionalidade dos componentes de sua divisão jurídica, o que compromete de ampla forma sua credibilidade e dos seus serviços.
Assim, a divisão jurídica da OMC tem sido corretamente acusada de influenciar indevidamente o processo decisório dos painéis, redigindo laudos. Da mesma forma, tem sido corretamente acusada de tentar criar jurisprudência criadora de normas e de impor na prática a doutrina “stare decisis”, ambos institutos vedados pelo direito internacional. Por outro lado, os laudos são freqüentemente imprecisos; sua execução confusa e controversa e, por conseguinte, os painéis são duplicados ou multiplicados desnecessariamente. Acresce ainda que o sistema tem demonstrado cabalmente um viés contrário aos países em desenvolvimento.
Tamanho rol de falhas, imperfeições e distorções fez com que o sistema de resolução de disputas da OMC padeça de inúmeras bizarrias e idiossincrasias grotescas, algumas das quais tive oportunidade de elencar num recente livro(29). A elas pode-se, agora, acrescer a decisão do painel no caso dos EUA versus Austrália(30) na questão de bancos de couro, onde decidiu-se condenar uma empresa privada, portanto fora da jurisdição da OMC, a devolver subsídios. Sua tonalidade tragicômica seria menos leve se tal sistema não tivesse decidido, em devastadora maioria dos casos, contra os países em desenvolvimento, quando em confronto com os países desenvolvidos. Até mesmo os apóstolos do imperialismo reconhecem o favorecimento aos países desenvolvidos pelo sistema de resolução de disputas da OMC(31).
Dos 51 casos decididos definitivamente na OMC(32) desde sua criação, 18 foram pertinentes a confrontos entre países em desenvolvimento e desenvolvidos. Destes, 13 foram ganhos pelos países desenvolvidos, mais de dois terços, e apenas quatro pelos países em desenvolvimento, dos quais dois com recusa de implementação. O sistema mostrou-se ainda direcionado contra os países em desenvolvimento, vítimas de quase 60% dos casos havidos. De mais a mais, algumas dessas derrotas representam tentativas institucionais de mudança dos tratados em detrimento da ordem jurídica e dos interesses dos países em desenvolvimento(33). Apesar da propaganda oficial do governo no sentido contrário, o Brasil foi o grande perdedor do sistema.
5.- A INICIATIVA DA ÁREA DE LIVRE COMÉRCIO DAS AMÉRICAS (ALCA) COMO INSTRUMENTO ESTRATÉGICO DO IMPERIALISMO DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA (EUA).
O Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), assinado em 1992, mas que entrou em vigor em 1.1.1994, entre os EUA, México e Canadá, nasceu, de um lado, das frustrações dos EUA decorrentes da não-imposição de sua vontade na primeira fase da Rodada Uruguai e, de outro, do desejo de criar um mercado regional cativo. O fato que o NAFTA foi negociado pelo México por uma administração notoriamente corrupta e incompetente, que se caracterizou, nas palavras de C. Fred Bergsten, “pela aceitação virtual de tudo o que se lhe pediu e por fazer todas as concessões”, permitiu aos EUA a formatação de um modelo idiossincrático de acordo regional comercial altamente vantajoso, para aplicação a outros países. Este modelo tem as seguintes características básicas(34):
AGENDA AFIRMATIVA:
a) criação do modelo do cubo e dos raios(35), segundo o qual as trocas industriais e de serviços, em como os investimentos de terceiros, vem do cubo para os países raios;
b) a abertura dos mercados de serviços dos países raios;
c) redução tarifária nos países raios;
d) formulação de regras de origem de modo a favorecer largamente os produtos do bloco, particularmente os do país cubo;
e) fluxo livre de moedas e garantia de conversibilidade dos estados raios para os créditos públicos ou particulares do cubo;
f) imposição de critérios legislativos próprios do cubo aos raios nas mais diversas áreas, mas notadamente na área trabalhista, previdenciária e no Judiciário;
emasculação do Judiciário dos países raios para questões comerciais, mediante o desvio de competência para o Judiciário cubo e para tribunais arbitrais; e
h) colheita precoce do que for possível.
AGENDA DEFENSIVA:
a) preservação dos subsídios agrícolas do cubo;
b) manutenção da legislação unilateral idiossincrática, incluindo a pertinente a medidas anti-dumping;
c) preservação do regime constitucional que coloca a legislação ordinária acima dos tratados internacionais, incluindo os comerciais;
d) admissão aos países raios apenas de acesso ao fornecimento ao país cubo de produtos baratos de consumo com baixo valor agregado; e
e) dilação de quaisquer concessões para o futuro o mais distante possível, preferencialmente no âmbito do sistema multilateral da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Tal modelo funcionou admiravelmente bem, para os EUA, no âmbito do NAFTA. Como resultado, as exportações norte-americanas para o México cresceram 50% e a dependência comercial de trocas mexicanas com os EUA aumento de, aproximadamente, 72%, para cerca de 90% nos anos subseqüentes à assinatura do NAFTA. Mais ainda, os EUA dominaram as principais áreas dos mercados de serviços, principalmente no setor financeiro, o mais relevante do segmento, que foi totalmente desnacionalizado. Curiosamente, já em 1995, Noah Chomsky previu tal acontecimento e prognosticou ominosamente que o México perderia, como conseqüência, “a soberania para formular planos econômicos e promover um desenvolvimento independente”(36). E assim foi. Em 2001, um estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade Autônoma do México, conduzido pela Doutora Leticia Campos, chegou à nada surpreendente conclusão de que “o governo mexicano já perdeu o comando da economia local” diante da realidade de que 95% do mercado daquele país, incluindo o setor financeiro, encontra-se sob o controle do capital estrangeiro(37).
Nas outras áreas de serviços, o México perdeu a economia de escala devido a falta de acesso de seus nacionais aos mercados dos EUA (e também do Canadá), sujeitos a uma infame e reduzidíssima quota de 5.000 pessoas por ano. Conseqüentemente, o setor nacional de serviços de alta especialização mexicano deixou de existir. Por exemplo, o México tem apenas um milhão e meio de usuários de internet, contra dez milhões e quatrocentos mil de usuários no Brasil e de um milhão na Argentina, que tem um terço da população mexicana. Seus prestadores de serviços ficaram relegados às tarefas meniais, como cabeleireiras, cozinheiros, atendentes, motoristas, etc.
A UE aprendeu rapidamente as lições dos EUA, tendo adotado quase que a totalidade de sua agenda(38) para a negociação de tratados comerciais regionais com países em desenvolvimento, que agora atingiu o número impressionante de 27 acordos diversos, inclusive um com o México(39). Outros 15 tratados comerciais estão presentemente sendo negociados pela UE. Por sua vez, os EUA tem, no momento, três acordos regionais(40) e perseguem um número grande deles, inclusive a “Área de Livre Comércio das Américas” (FTAA), esforços que estão sendo prejudicados pela falta de autorização apósita do poder legislativo ao poder executivo(41).
Para países como a Argentina e o Brasil, o modelo consagrado pelo NAFTA, que é a plataforma da ALCA, seria um grande desastre econômico e social, que certamente teria conseqüências políticas graves(42). Em primeiro lugar, o setor agrícola, em ambos os países, seria destruído pelos subsídios praticados pelos EUA, no valor de US$ 150 bilhões. Isto comprometeria os setores de trigo, soja, algodão e açúcar, este último responsável por cerca de 1.200.000 empregos rurais no Brasil e 300.000 na Argentina. O setor algodoeiro gera aproximadamente 500.000 empregos apenas no Brasil. Por conseqüência, os segmentos de reciclagem de proteína vegetal em animal, tanto granjeiro, como suíno e bovino, seriam dramaticamente afetados de forma adversa. À guisa de comparação, no México o PIB agrícola diminuiu 17.6% durante o NAFTA, sendo que a produção de grãos caiu 27.6% e a de carnes decresceu 34.6%(43). Por sua vez, a importação de alimentos aumentou de US$ 1,7 bilhão em 1982 para US$ 8,6 bilhões em 99 decorrente da perda de competitividade do setor agrícola local. Mais ainda, no México do NAFTA, o setor açucareiro encolheu cerca de 34%(44). No Brasil, um efeito semelhante, muito provável no cenário da ALCA, ameaçaria a paz social no campo!
Mais ainda, os setores de serviços de alta complexidade seriam desnacionalizados, inclusive pela perda de economia de escala decorrente da falta de acesso aos mercados dos EUA por decorrência das barreiras horizontais de movimento de prestadores de serviços. Assim, os bancos comerciais serão estrangeiros e os de investimentos serão situados em Nova Iorque. As Bolsas de Valores e de Mercadorias regionais desaparecerão. Os advogados, auditores, contadores e consultores especializados em tarefas de alta complexidade serão os estrangeiros. O mesmo ocorrerá com os serviços médicos e hospitalares, de arquitetura, de engenharia e de informática. O setor educacional sofrerá grandemente pois estará fornecendo a educação mínima necessária para o desempenho de tarefas meniais, como servir merendas gordurosas e refrigerantes gasosos.
De fato, os setores domésticos de serviços dos raios serão condenados à função de “depósitos de mão de obra não-qualificada”(45), fábricas de pobreza. No sistema formatado pelo NAFTA, um país é competitivo na direta dimensão de sua miséria. No México de hoje, 80% da população vive abaixo do nível de pobreza. Os salários industriais caíram de US$ 127 em 1982 para US$ 74 em 1999. O país virou um exportador de miséria, de vez que os elementos mais ativos da economia são as remessas dos emigrantes, de cerca de US$ 6.3 bilhões em 1999, e as maquiladoras. A emigração do México para os EUA aumentou de 278.229 entre 1991 e 1997, para 366.000 entre 1998 e 1999, resultado do modelo econômico perverso que gera um défice anual de 500 mil empregos(46).
Por sua vez, numa ALCA erigida sobre os infames alicerces do NAFTA, o setor de audiovisuais mostrará apenas produtos americanos, confeccionados a um preço baixíssimo pela escala, o que eliminará a possibilidade de competição. Desta forma, a produção cultural dos demais países, outros que os EUA, entrará em inexorável declínio. As línguas regionais tornar-se-ão um patoá do dialeto americano.
Na área industrial, devido ao fato de que as tarifas sul-americanas são ainda relativamente altas, a celebração de um acordo comercial regional com um poder hegemônico tem o condão de alienar o outro. Os produtos manufaturados pelo poder excluído perderão drasticamente sua competitividade. No caso, tanto no Brasil como na Argentina, dentre EUA e UE, o principal parceiro econômico é a UE. Mais ainda, aproximadamente 60% dos investimentos estrangeiros recebidos na Argentina, como no Brasil, vem da UE. No Brasil, 82% dos investimentos estrangeiros são hoje direcionados ao setor de serviços!
A diversidade dentre os países tenderá a ser ignorada. Padrões e valores sub-culturais serão impostos para a legislação interna, para as relações sociais, para a vida acadêmica e cultural, para a expressão artística e para o funcionamento dos Poderes Judiciários. Decorrerá um agravamento do fenômeno perverso da globalização, magistralmente lembrado por Ernesto Sabato: “La humanidad está cayendo en una globalización que no tiende a unir culturas, sino a imponer sobre ellas el único patrón que les permita quedar dentro del sistema mundial”(47). Haverá, por conseguinte, uma grande derrogação de soberania também na formulação de política de desenvolvimento social e de afirmação individual. Como corrolário natural, seguir-se-á a transferência total de soberania na formulação das políticas monetária e econômica.
Acresce que Argentina e Brasil, bem como Paraguai e Uruguai, continuarão vítimas do unilateralismo e do arbítrio praticado pelos EUA mediante suas medidas idiossincráticas, como no caso do anti-dumping. Seu direito constitucional continuará a colocar seu ordenamento jurídico interno acima de suas obrigações internacionais e a legislação de implementação de um eventual tratado subordinará sua eficácia às normas domésticas. Um tal acordo comercial valerá contra os países raios, mas não necessariamente contra o cubo.
Um exemplo prático e interessante a respeito da questão da hierarquia das normas do direito americano e o relativo à matéria dos transportes rodoviários. O NAFTA assegurou aos transportadores rodoviários mexicanos o acesso ao território dos EUA. Todavia, as barreiras horizontais administrativas impostas por este país impediu sua ocorrência. Inconformado, México solicitou a formação de um painel de arbitragem para dirimir a questão, havendo recentemente prevalecido a seu favor. Derrotado no painel, o Congresso americano imediatamente aprovou uma lei interna derrogando os direitos mexicanos provenientes do NAFTA.
Mas este cenário dantesco não seria largamente compensado pelo acesso ao mercado dos EUA dos produtos de consumo de baixo valor agregado, que requerem o emprego de mão de obra barata? – Absolutamente, não! O modelo de importação de tais produtos pelos EUA já está esgotado e não se presta para a ampliação em grande escala. De fato, os EUA já tem um défice comercial de US$ 500 bilhões por ano! Até que ponto o consumidor americano tem condições de engordar mais ou de comprar um maior número de camisas e de calçados esportivos do que já adquire? Até que ponto o sistema bancário norte-americano vai conseguir sustentar a alavancagem e endividamento financeiro do consumidor, quando mais expandir o que já é claramente excessivo? Lembre-se que os países da Ásia já exportam para os EUA cerca de 37% do Produto Interno Bruto (PIB) regional(48) e buscam empenhadamente a formulação de estratégias alternativas, regionais e internacionais, pelo esgotamento do presente modelo. Dentre tais alternativas está a criação de uma rede trocas regionais apoiada por US$ 100 bilhões de suporte monetário dentre os membros da ASEAN mais Japão, China e Coréia do Sul(49).
6.- CONCLUSÃO: O MERCOSUL FACE AO GARROTE HEGEMÔNICO.
Vimos como a teoria do realismo orienta os EUA à dominação das estruturas multilaterais existentes com o objetivo da obtenção de vantagens comerciais e políticas que possam promover a prosperidade do povo norte-americano. Esta teoria foi expandida após o final da chamada guerra fria para se tornar também cânone de segurança nacional daquele país. Como o sistema multilateral permite apenas uma larga vantagem hegemônica e não uma dominação econômica completa, os estrategistas americanos procuraram aproveitar-se dos pactos regionais de comércio para atingir o seu objetivo. De fato, segundo tal linha de raciocínio, não haveria lugar melhor para começar do que na América Latina, região definida pela Doutrina Olney, em prática ininterrupta pelos EUA desde o final do século 19, como sujeita a “direito hegemônico” daquele país(50). Já em 1822, o embaixador Mexicano, Zozaya, escrevia a respeito dos EUA “Eles tem um profundo amor por nosso dinheiro, não por nós, e não conseguem celebrar um tratado de aliança ou comércio a não ser no seu direto interesse, sem nenhum pensamento de reciprocidade”(51).
Este infame imperialismo norte-americano, às vezes denominado eufemisticamente de unilateralismo agressivo(52), tem crescido desde o ocaso da URSS, porque o desaparecimento da competição política trouxe a eliminação da auto-contenção, da parcimônia e da moderação no trato dos países em desenvolvimento, dos estados clientes e dos demais países. Assim, o mundo assiste estupefato à derrocada da ordem jurídica nas relações internacionais e a falência da transposição dos valores democráticos e do império da lei dos ordenamentos jurídicos internos para as relações entre estados soberanos. Mais ainda, o mundo testemunha um militantismo fundamentalista do exercício arbitrário das próprias razões nas relações internacionais pelos EUA, em detrimento da ordem jurídica e de princípios basilares do direito.
Desgraçadamente para o direito, para a justiça e para a moral, esta ação imperialista não deixa de ter um determinado suporte nas relações internacionais vinda da parte de países que, como hienas, desejam beneficiar-se marginalmente dos despojos da expoliação organizada da maior parte dos estados e da população mundial. Este apoio existe da parte de países que chegaram ao despautério de alinharem automaticamente suas políticas exteriores à dos EUA, como no caso do Reino Unido, e até certo ponto, da UE. As manifestações diversas e fenômenos correlatos desta ação espúria tem sido chamadas de “globalização”, que não dever ser confundida com internacionalismo ou internacionalização. Enquanto aquela é o resultado de um processo predatórios, estes são fenômenos resultantes de valores positivos como a solidariedade, o conhecimento, a compreensão, o direito e a justiça.
Assim, já tive oportunidade de definir o processo de globalização como a continuada exploração sistêmica dos países em desenvolvimento por um núcleo central de países desenvolvidos, mediante a imposição de valores e padrões culturais etnocêntricos, bem como de normas unilaterais e não eqüitativas, sob o manto de uma falaz juridicidade internacional, administrada pela especiosa ideologia do chamado livre comércio, por uma organização internacional sem compromissos com a prevalência do estado de direito e da justiça nas relações internacionais.
No sistema multilateral, a natureza perversa da extremada dominação comercial não tem o condão de induzir um respeito à ordem jurídica que a criou, por sua própria fonte inspiradora, os EUA, tal o desprezo que por ela tem, cientes da realidade de sua concepção. Assim, os EUA locupletam-se desta ordem jurídica infame, mas a ela não se submetem. Na hierarquia das normas de seu direito constitucional, os EUA colocam suas leis federais acima dos tratados internacionais. Mais ainda, na legislação interna de adoção dos tratados internacionais, condicionam sua validade à compatibilidade com o direito doméstico, ao contrário dos demais países. Isto vale até mesmo para os tratados comerciais, com cláusula de compromisso único, como os da OMC. Desde 1992, os EUA não assinam nenhum acordo comercial internacional sem que este esteja subordinado ao seu ordenamento jurídico interno. Foi assim no caso do NAFTA, daqueles acordos comerciais mais recentes com Israel e com a Jordânia.
Acresce que os EUA não são signatários de convenções internacionais que visam aumentar a juridicidade nas relações entre estados soberanos, como a Convenção de Viena sobre a Lei dos Tratados. Tampouco são signatários do Estatuto do Tribunal Penal Internacional de Roma de 1998, que visa “inter alia” o combate ao crime organizado, porque é bastante provável a hipótese de que inúmeros de seus agentes de direito público interno fossem processados de acordo com o direito internacional. Mais ainda, o legislativo federal dos EUA propôs legislação doméstica com o objetivo de neutralizar tal meritória iniciativa internacional.
Por outro lado, as negociações regionais são conduzidas pelos EUA com o único objetivo de aprofundar as vantagens comerciais e econômicas hegemônicas. Suas leis domésticas prevalecerão sobre qualquer acordo. Vimos que a iniciativa da ALCA, sob a perspectiva econômica, seria um desastre para os países do Mercosul e, especialmente, para o Brasil. Teme-se que o governo brasileiro, apesar de fortes reações da sociedade civil e do legislativo pátrio(53), tenha levado as negociações a um ponto muito adiantado, assumindo compromissos que comprometerão o futuro do País. Alguns agentes do governo brasileiro têm defendido o argumento falacioso de que como os países das Américas, em conjunto, representam os maiores parceiros comerciais do Brasil, uma não participação na ALCA teria o condão de alienar esta corrente comercial. Trata-se de um falso dilema. Basta negociar de maneira competente com todos, isoladamente ou em blocos específicos.
Assim, continuam ainda inteiramente válidas as conclusões de um grande brasileiro, Eduardo Prado(54), numa obra intitulada ‘A Ilusão Americana”, escrita em 1893, numa das primeiras análises das relações bilaterais entre os EUA e o Brasil, mas também pertinentes para toda a América Latina:
” Que a história da política internacional dos EUA não demonstra por parte daquele país, benevolência alguma para conosco ou para com qualquer república latino-americana;
Que todas as vezes que tem o Brasil estado em contato com os EUA tem tido outras tantas ocasiões para se convencer que a amizade norte-americana é nula quando não é interesseira”; e
Que “toda a tentativa para, em troca de qualquer serviço, colocar a pátria livre e autonômica em qualquer espécie de sujeição para com o estrangeiro é um ato de inépcia e é um crime.”
Concluo com as palavras do cacique Delaware, Pachgantschilias, proferidas em 1787, e que se constituíram no epitáfio de sua grande nação(55):
” Remember that this day I have warned you to beware of such friends as these. I know the Long-knives. They are not to be trusted.”
Senhoras e Senhores, muito obrigado.
NOTAS DE RODAPÉ
(1) – Artigo publicado na Revista do Curso de Pós-Graduação em Direito da USFC – Seqüência 45 – ano XXIII, Dezembro 2002. Texto básico da conferência proferida em 25 de abril de 2002 por ocasião do 1º Congresso Internacional de Direito Internacional, em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.
(2) – Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Sócio principal de Noronha – Advogados. Árbitro do GATT e da OMC. Autor de “A OMC e os Tratados da Rodada Uruguai” e ” Ensaios de Direito Internacional”.
(3) – V. Claude E. Barsfield, “Free Trade, Sovereignty, Democracy”, The AEI Press, Washington, D.C., páginas 150 e 151.
(4) – V. Anne-Marie Burley, “International Law a Dual Agenda”, Harvard, pages 208/218.
(5) – V. o testemunho de Roberto Campos que foi, como 3º secretário do Itamaraty, um dos três negociadores brasileiros na ocasião, in “Lanterna na Popa”.
(6) – In inglês, “most favoured nation clause” (MFN).
(7) – Para um histórico da experiência do GATT, v. “GATT, MERCOSUL & NAFTA”, por Durval de Noronha Goyos Jr., Editora Observador Legal, São Paulo, 2A edição, 1996.
(8) – Para uma análise do ordenamento jurídico municipal norte-americano, inclusive de ordem constitucional, e de suas respectivas implicações com referência aos tratados internacionais celebrados pelos EUA, V. por Durval de Noronha Goyos Jr., ” Reflections on Certain US Law Specificities that Constitute Obstacles to the Free Trade Area of the Americas: A Brazilian Perspective”, em Inter-American Law Review, da Universidade de Miami. Vol. 28, número 3, 1997.
(9) – Hoje União Européia (UE).
(10) – Gladstone, na oposição, declarou em debate na Câmara dos Comuns: “Your greatest and most valuable trade is China is…in opium. It is a smuggling trade…it is the worst, the most pernicious, demoralising and destructive of all the contraband trades that are carried upon the surface of the globe.”, in “The Chinese Opium Wars”, Jack Beeching, Hutchinson of London, 1975.
(11) – Parte significativa dos lucros americanos foi investida na compra de escravos chineses, os coolies, enviados para a Califórnia.
(12) – V. “The Chinese Opium Wars”, op. cit.
(13) – As ações de desestabilização do governo democrático brasileiro abrangeram organismos multilaterais e foram inclusive conduzidas pelos serviços de inteligência dos EUA, atuando no Brasil e no exterior.
(14) – V. “Trade Liberalization: Global Economic Implications”, Ian Goldin et al, 1993, The World Bank and the OECD.
(15) – “Meeting in Qatar looks likely to disappoint the WTO’s optmists”, The Times, Londres, 23 de outubro de 2001, página 26.
(16) – V. ” A OMC E OS TRATADOS DA RODADA URUGUAI”, por Durval de Noronha Goyos jr., Obs. Legal Editora, São Paulo, 1995.
(17) – Comunicado de Imprensa OMC número 125, 16 de abril de 1999, página 6.
(18) – The Economist, 21 de agosto de 1999, página 88.
(19) – V. “Rigged Rules and Double Standards: trade, globalisation and the fight against poverty”, OXFAM, Londres, Abril de 2002.
(20) – Comunicado de Imprensa OMC número 125, op. cit., página 9.
(21) – V. Fabio Gianbiagi, “A Argentina e os Interesses Brasileiros”, O Estado de S. Paulo, 19 de abril de 2002, página B-2.
(22) – V. José Luis Calva, “Mexico Más Allá del Neoliberalismo”, Plaza Janés, Mexico, 2000, página 136.
(23) – Para uma análise individual de todos os tratados de Marraqueche, V. “A OMC E OS TRATADOS DA RODADA URUGUAI”, op. Cit.
(24) – V. OXFAM, ” Rigged Rules……”, op. Cit.
(25) – V. por Durval de Noronha Goyos jr., “La OMC y la gobernabilidad mundial” , in Revista del Colegio Público de Abogados de La Capital Federal, Buenos Aires, Argentina, março de 2001, páginas 42 e 43.
(26) – V, por Durval de Noronha Goyos jr. “WTO Pharmaceutical Patents’ Dispute, in “Internationa Trade Law & Regulation”, Oxford, United Kindgdom, volume 7, número 3, julho de 2001.
(27) – Para uma análise das diversas agendas propostas para a frustrada Rodada do Milênio, V. ” Ensaios de Direito Internacional” por Durval de Noronha Goyos jr., Obs. Legal Editora, São Paulo, 2000.
(28) – Um amplo comentário a respeito das dificuldades do sistema de resolução de disputas da OMC é objeto de um dos capítulos de “Ensaios….”, op. cit.
(29) – V. por Durval de Noronha Goyos jr., ” Ensaios de Direito Internacional”, op. Cit.
(30) – International Trade Reporter, vol. 17, no. 7, 17 de fevereiro de 2000, “Countries Blast Panel Ruling on Australian Leather Subsidies”, páginas 259/260.
(31) – V. Claude E. Barsfield in “Free Trade……”, op. Cit, página 35.
(32) – Até 1.2.2001.
(33) – Como no caso da indústria aeronáutica, perdido pelo Brasil contra o Canadá; no caso dos têxteis, perdido pela Índia; e no caso dos bancos de couro, perdido pela Austrália.
(34) – V. por Durval de Noronha Goyos jr., “Comércio Internacional”, in Meio Jurídico, São Paulo, 31 de julho de 2001, página 37 e seguintes.
(35) – Como na roda da bicicleta. O país hegemônico é o cubo e os satélites são os raios.
(36) – “The Masters of Mankind”, Noah Chomsky, “The Nation”, 29 de março de 1995.
(37) – “Estrangeiras controlam 95% da economia do México”, Agencia Estado, 5 de setembro de 2001, 17:55hs.
(38) – Por exemplo, o Acordo sobre Comércio, Desenvolvimento e Cooperação celebrado com a República da África do Sul tem muitos elementos do NAFTA.
(39) – Que também traz muitos elementos do NAFTA, inclusive a garantia de conversibilidade.
(40) – Veja “The President’s 2001 International Trade Agenda”, documento da presidência George W. Bush, de 17 de abril de 2001.
(41) – A chamada autoridade de promoção comercial, “trade promotion authority”, outrora conhecida por autoridade de negociação comercial, “trade negotiation authority” e via rápida, “fast track”.
(42) – V., neste sentido, “Ensaios de Direito Internacional”, por Durval de Noronha Goyos jr., op. Cit.
(43) – V. “México más allá del Neoliberalismo: opciones dentro del cambio global”, José Luis Calva, Plaza Janés, Mexico, D.F., página 168.
(44) – “Vive campo en colapso”, La Reforma, Mexico, 10 de agosto de 2001.
(45) – V., de Samuel Pinheiro Guimarães, “A Alca e o fim do Mercosul”, em “Alca e Mercosul: riscos e oportunidades para o Brasil”, IPRI, Brasília, 1999, página 290.
(46) – V. “México más allá del Neoliberalismo….” op. Cit., página 136.
(47) – Ernesto Sabato, La resistencia, Seix Barral, Buenos Aires, Argentina, 2000.
(48) – V. “The East is in the red”, The Economist, 19 de Maio de 2001.
(49) – V. “America’s Two-Front Economic Conflict”, por C. Fred Bergsten, em Foreign Affairs de Março/Abril de 2001.
(50) – V., por Lars Schoultz, “Beneath the United States: A History of US Policy Toward Latin America”, Harvard University Press, Cambridge, Massachussetts, 1999.
(51) – V. Lars Schoults, op. Cit., página 19.
(52) – Jagdish Bhawati, em “Free Trade Today”, Princeton University Press, 2002, página 95 e seguintes, tenta explicar o unilateralismo agressivo dos EUA através de duas categorias, o “império convidado” e o “império mediante exemplo”. Esqueceu-se ele de outras categorias como “o império mediante força” e o ” império mediante fraude ao direito”.
(53) – V. Moção da Comissão de Relações Exterirores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, de 12 de dezembro de 2001 e de iniciativa da Dep. Aloísio Mercadante, que conclama o governo brasileiro a se retirar das negociações da ALCA, caso o Senado norte-americano ratifique as condições estabelecidas pela Câmara de Representantes daquele país.
(54) – “A Ilusão Americana”, Editora Brasiliense Ltda., São Paulo, 1961.
(55) – V. Helen Jackson, “A Century of Dishonor”, Indian Head Books, New York, 1994, página 32.