Por Regina Maria D’Aquino Fonseca Gadelha, janeiro 2017, São Paulo, Brasil.
Tinha pouco mais de 17 anos quando um romance marcou minha existência: La CondiƟ on Humaine (A Condição Humana) de André Malraux. Escrito em 1928, o livro recebeu o maior e mais cobiçado Prêmio de Literatura da França, o Prêmio Goncourt de 1933.
A lembrança me veio à memoria ao ouvir, em 19 de outubro de 2016, a palestra pronunciada por Durval Noronha Goyos Junior para alunos, professores e pesquisadores do Núcleo de Análise de Conjuntura Internacional do Programa de Pós-Graduação em Economia, da PUC/ SP, e ao receber das mãos do autor o texto original de seu novo livro, “Introdução à Revolução Cultural na República Popular da China”.
Quase um paralelismo espontâneo, recordo o grande livro de André Malraux que evoca uma China derrotada pelos ingleses, invadida
por estrangeiros e humilhada desde 1842, com seu território ocupado por aventureiros das principais potências imperialistas ocidentais que, em conjunto, espoliaram e menosprezaram seu povo. Ao evocar a marcha de Tchang Kai Chek sobre Shanghai à frente do Exército dos nacionalistas do Kuomintang (Paria do Nacionalista do Povo) em 1927, Malraux relata a traição deste líder ao esmagar a insurreição dos comunistas e operários ferroviários de Shanghai que, auxiliados pelos soviéticos, prepararam o campo para seu triunfo naquela cidade. O livro é testemunho eloquente da condição humana em que ideais e vontade do poder pessoal se confundem e falam mais alto, desmascarando os homens, realidade e fi cção se misturando na denúncia do relato da linguagem clara e sucinta do grande escritor francês.
De forma romanceada, Malraux toca em problemas profundos ao evocar refl exões sobre o sacriİ cio e o senão do da vida,ao mostrar como Tchang Kai Chek, cooptado pelos imperialistas ocidentais, permitiu assassinar, em 12 de abril de 1927, milhares de dirigentes comunistas e líderes operários devorados vivos nas fornalhas de óleo quente dos trens, levando assim ao fracasso desta tentaƟ va
de revolução nacionalista dos comunistas. Tudo isso sob o olhar impassível e neutro do governo da URSS. Tendo assumido o controle
do Kuomintang (ParƟ do Nacionalista do Povo) em fi nal de 1927, Tchang Kai Chek fi nalmente, em 1928, se tornava chefe do novo governo nacionalista instalado em Nanjing, sendo proclamado “generalíssimo” de todas as forças armadas nacionalistas chinesas.
Recordo este romance para falar do novo livro que nos é agora presenteado por Durval de Noronha Goyos Junior, que traça vasto
panorama sobre a China, desde o século XIX até o fi nal da Revolução Cultural, liderada por Mao Tse Tung em 1966, na República Popular da China. Este advogado de sucesso no mundo empresarial internacional é, porém, também um escritor profundo, autor de vasta obra sobre os tratados internacionais de comércio (GaƩ , Mercosul & Nafta, 1993), as rodadas Uruguai (A OMC e os tratados da Rodada de Uruguai, 1995), Arbitration in the World Trade Organização on (2003); A Marcha da História – Notas Sobre Direito e Relações Internacionais (2008), O Crepúsculo do Império e a Aurora da China (2012), além de vários livros sobre Direito Internacional publico, entre outras obras.
Profundo conhecedor da China, país em que mantém escritórios de advocacia, e admirador do povo chinês, este advogado, jurista de
oİ cio, vem com seu novo livro, Introdução à Revolução Cultural na República Popular da China: aspectos econômicos, sociais e políticos,
preencher o vazio de conhecimento sobre a História desse grande país, ao cobrir o dramáƟ co período que vai do pós-guerra (1948) quando Mao Zedong, mais conhecido entre nós como Mao Tse Tung, derrotou as tropas nacionalistas de Tchang Kai Chek e libertou a China do domínio imperialista, proclamando em 1o de outubro de 1949 a República Popular da China. O livro relata os acontecimentos que se sucederam deste então, até a morte do grande líder comunista chinês, em 1976.
De fato, sem a invasão do Japão à China e consequente ocupação daquele país desde 1937 até 1945, e os acontecimentos desencadeados pela II Guerra Mundial, trazendo seu rastro de miséria e pobreza extremas sobre o sofrido povo chinês, difi cilmente o exército vermelho de Mao Zedong teria podido se formar e triunfar. Mesmo porque, como demonstra Noronha, imediatamente após a rendição do Japão recomeçou a guerra civil entre nacionalistas do Kuomintang e comunistas, estes úlƟ mos reunidos em torno da liderança de Mao Zedong. Perseguidos até a Manchúria, porém, o exército vermelho, comandado por Lin Biao, conseguiu reagir e derrotar os nacionalistas em novembro de 1948. Durval Noronha relata: “Em janeiro de 1949, os comunistas entraram em Beijing e também tomaram em maio do mesmo ano a importante cidade de Nanjing, anƟ ga capital imperial chinesa, que se encontrava devastada pela ocupação japonesa”. Mas a vitória comunista somente foi completada quando, em dezembro de 1949, Tchang Kai Chek fugiu de Chongqing e abandonou a China, instalando-se na ilha de Taiwan ou Formosa. Nomeado Presidente da ilha, Tchang Kai Chek governou Taiwan até sua morte em 1975, quando a ilha foi formalmente devolvida à República Popular da China, por cessão do Tratado de 1842 com os ingleses. Desde então Taiwan vem resistindo a esta anexação. De acordo com Durval de Noronha Goyos Jr., “A criação da
República Popular da China resgatou a dignidade do povo chinês e representou um golpe severo ao regime colonial global e às forças
imperialistas, da mesma forma que trouxe uma nova dimensão à cooperação internacional”. No entanto, segundo o autor, medidas
econômicas urgentes eram necessárias. Como a China devastada e a maioria de sua população sofria fome, era natural que Mao Zedong,
ele próprio de origem camponesa, encorajasse primeiramente o campesinato a tomar as propriedades rurais, patrocinando a formação
das primeiras comunas rurais. Mas já em 1952 lançava o primeiro Plano Quinquenal, que Ɵ nha por objeƟ vo aumentar a participação
da indústria no PIB nacional. Como resultado, entre 1953 e 1957 o crescimento industrial chinês foi de 9% ao ano. Todavia Noronha não esconde os abusos ocorridos em todas as esferas do governo, com o ParƟ do Comunista no comando e a que tudo controlava, desde os governos locais regionais à produção agrícola e industrial até a produção arơ sƟ ca, intelectual e literária, pois todos os setores deviam estar de conformidade com os “valores socialistas”.
Apesar dos ganhos econômicos mais imediatos ocorridos, como a história demonstra, em todos os países em que imperam regimes de partido único e de cunho totalitário, assisƟ u-se a verdadeiras “caças às bruxas”, com expurgos e prisões que aƟ ngiram, na ocasião, mesmo comunistas históricos, colocados sob suspeita, que passaram a ser perseguidos e enviados para prisões e centros de reeducação
(trabalhos forçados). Logo, diante dos inúmeros e incontestáveis abusos começou dos, Mao Zedong se viu obrigado a lançar o programa chamado “Campanha das Cem Flores”, sugerindo tolerância e coexistência entre as diversas correntes de pensamento no socialismo.
País baleia, no dizer do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, terceiro país do globo, com território de 9.596.960 km2, dos quais 1.295.000 km2 pertencente ao Deserto de Gobi, extenso areal entre Manchúria e Mongólia, quarto maior deserto do planeta, a
China possui pequena área arável em relação à sua imensa população. Atualmente a população da China já conta com mais de 1,357 bilhões de habitantes (Banco Mundial, dados de 2013). Desta maneira, natureza e população explicam parte das dificuldades enfrentadas pelo governo comunista para atingir em curto prazo o nível de modernização necessário à superação de seu histórico subdesenvolvimento.
Em consequência, desde 1958, o governo tentava implementar o Plano conhecido por “Grande Salto para Frente”, vasto programa
que priorizava também o desenvolvimento, em curto prazo, da ciência e da tecnologia. No setor industrial eram priorizadas as fundições
domésƟ cas, enorme erro logístico que, de acordo com Noronha, provocou grandes destruições de fl orestas e de recursos naturais,
levando inclusive à destruição de moradias, móveis, implementos agrícolas pertencentes à população rural, como resultado dos esforços exigidos pelos líderes locais aos humildes camponeses. O que trouxe um desproporcional rastro de destruição de recursos ambientais e capital humano. A coletivização agrícola também foi então implementada em larga escala, muitas vezes à revelia da população envolvida. Porém, a queda na produção agrícola se viu agravada pelos inúmeros problemas de ausência de infraestrutura logística, o que contribuiu para ampliar a fome, que uma vez mais devastou a região.
O fracasso do “Grande Salto para Frente” levou à morte de cerca de 30 a 50 milhões de chineses (números díspares e inconclusos)
e provocou a reação contra o núcleo rígido de seguidores estabelecidos em torno da liderança de Mao Tse Tung que, isolado, se senão
momentaneamente ameaçado de perda de poder. Em 1966, Mao denunciava o crescimento do intelectualismo burguês e do revisionismo,
conclamando o Parceiro do a endossar a bandeira da nova “Revolução Cultural Proletária”. A crise geral de autoridade e os desmandos ocorridos no período, o levaram a reconhecer o novo fracasso desta política bem como a reconhecer a gravidade dos problemas econômicos e sociais, que havia resultado no declínio da economia chinesa e na desordem social persistente. Desta forma, oito anos depois de iniciada a chamada “Revolução Cultural”, Mao se viu obrigado a conclamar os chineses à união: “Agora é chegado o momento de estabilidade. Todo o Partido e as forças armadas devem agora se unir”.
Verdadeiro escritor, Durval de Noronha Goyos Jr. deslinda e nos conduz entre os meandros e entremeios da diİ cil política interna chinesa, de forma a nos fazer conhecer a busca determinada deste povo para a superação dos obstáculos maiores ao desenvolvimento de seu país. Ele desvenda de forma clara e simples os fundamentos culturais maiores deste povo, herdeiros das normas pessoais e governamentais prescritas por Confúcio (551 A.C. – 479 A.C.), e que têm permitido ao povo chinês aceitar, dentro da fé, mas também de uma perspectiva dialética, a condução incontestável de seus líderes até os dias atuais.