Resenha feita pelo compositor e escritor Emanuel Dimas de Melo Pimenta, Lisboa, março de 2019.
O homem solitário, em comparação com os outros homens, vê melhor, ouve melhor, tem o dom do olfato mais sensível, tem o dom do gosto mais sutil, palpa melhor; isto é, as suas aptidões sensoriais afinam, aguçam-se, desenvolvem-se; falo por experiência própria. E por quê? Talvez – é sempre bom dizer talvez – porque os seus dotes emotivos, expandindo-se pouco, não se gastam, acumulam em reserva energias de sentir que, quando chamadas a exercer-se, acusam dobrada intensidade. Um ligeiro perfume, por exemplo, um leve detalhe de paisagem, por exemplo, que escapam aos outros homens, não lhe escapam.
Wenceslau de Moraes (1854-1929)
Tudo o que é pessoal não tem valor. Explicando melhor: aquilo que é pessoal pode ter valor para a pessoa. Mas, por mais longevos que possamos ser, todos nós temos curta duração. Oitenta, noventa, cem anos? Mas, o ser humano existe tal como o conhecemos há pelo menos duzentos mil anos!
Somente tem valor o que pode ser apreendido por outra pessoa e transformado.
Essa é a importância – e natureza – essencial da memória. Ela nos diz não apenas quem somos, mas sedimenta as bases para o direito, para a ciência, para a arte.
É isso aquilo que Durval de Noronha Goyos oferece ao mundo no seu fascinante e magnético livro Os Monges Guerreiros de Goyos e a Ordem do Hospital em Portugal. Trata-se de uma fabulosa viagem num mundo que já não mais existe. Um mundo povoado por guerreiros e poder.
Relativamente poucas pessoas em Portugal conhecem essa história. Infelizmente, praticamente ninguém no Brasil a conhece, uma história que também é brasileira.
Um mundo da honra e da dominação, do permanente e intenso exercício da autoridade, da fidelidade, mas também da burocracia.
Uma verdadeira fábula, saga, epopeia feita, em grande parte, por espadas, escudos e armaduras.
Tudo sendo a história de uma família que é ela própria uma das histórias fundamentais da emergência de um país, do nascimento de uma nação.
O livro é dinâmico, fluído, prende magneticamente o leitor desde o primeiro momento. E aqui, revela-se outro importante elemento da memória. Durval de Noronha Goyos elaborou, na articulação de fatos ocorridos ao longo de séculos, um surpreendente diagrama cósmico. Nele, todas as partes se relacionam e se encaixam perfeitamente no tempo e no espaço. Percebe-se com clareza que somente alguém que viveu desde a infância o mergulho nesse fabuloso universo de aventuras, através das histórias contadas pela própria família, é capaz de uma tal construção, complexa e clara.
Apenas um homem solitário é capaz de tal poder de introspecção.
Assim, para muito além de um simples livro de história, de um texto sobre uma família, ele é uma arquitetura que viaja velozmente no espaçotempo, como se tratássemos de estrelas e campos gravitacionais passando por diversos personagens, reais, que parecem se metamorfosear uns nos outros, tecendo um encadeamento mágico.
Quem somos? Parte de um contínuo processo de metamorfose? – é a questão subjacente, sempre presente.
Pertencemos, cada um de nós, a essa misteriosa genética histórica? Pertencemos ao nosso passado que impregna os nossos corpos, as nossas mentes? Que memórias constituem aquilo que somos?
Tudo isso me faz lembrar Marcel Proust e o seu encantador Em Busca do Tempo Perdido, onde sonhos nos mostram que aquilo que conhecemos não nos pertence.
Embora seja aparentemente um livro sobre uma família, ele é na verdade um livro sobre a memória, sobre as lutas do poder, sobre um mundo de guerreiros, sobre a metamorfose humana.
Algo para ser apreendido por cada um de nós, mesmo que que transformado no nosso interior para a melhor compreensão de nós próprios.
Memória, seja numa escala neurológica, individual, seja numa dimensão coletiva, nunca é o simples acumular de traços e fragmentos de informação – ela é sempre elaboração, permanente construção.