Texto básico da fala de agradecimento por ocasião do recebimento da Medalha 19 de Julho, conferida pela Câmara Municipal de São José do Rio Preto, Estado de São Paulo, Brasil, em 13 de dezembro de 2001, por iniciativa do Vereador Hubert Eloy Richard Pontes.
As trilhas e sendas de minha vida levaram-me, na qualidade de advogado, professor, autor e conferencista, aos freqüentes contatos com jovens em seis continentes nos quais, inexoravelmente, deparo-me com a sua perplexidade e frustração diante do movimento avassalador da globalização, que pretende substituir as culturas tradicionais, alicerce das sociedades, por valores e padrões vazios, fúteis e egoístas. De fato, sob a perspectiva de uma análise estratégica econômica e política, outro não se poderia esperar de um movimento que visa à cruel escravização dos povos, em benefício de um núcleo central de países ensandecidos pela cobiça e com uma especialização histórica na espoliação humana, decorrentes dos fenômenos análogos do colonialismo e do imperialismo. Todavia, tem me chamado particularmente a atenção a tragédia humana individual, decorrente desta condição e consistente na desesperança; na frustração; na depressão; no abandono pessoal; na fuga aos agentes químicos; nas trevas da ignorância; no refúgio à marginalidade; no retiro forçado ao esqualor da miséria.
A reflexão resultante da constatação de tal desditosa situação levou-me, freqüentemente, a reexaminar os valores culturais que orientaram minha infância e adolescência, aqui em São José do Rio Preto, nos já distantes idos das décadas de 50 e 60. Devo confessar que, muitas vêzes, minhas análises introspectivas não foram auto-induzidas mas, ao contrário, estimuladas por terceiros interessados em minha formação. O primeiro de tais valores a me ocorrer é, sem dúvida, a tolerância, da qual já dizia Voltaire ser “o apanágio da humanidade e a primeira lei da natureza”. Aqui em Rio Preto a tolerância foi edificada em resposta à diversidade cultural trazida por imigrantes de todo o mundo. Lembro-me vividamente de que, nos bancos escolares do Grupo Cardeal Leme e do Instituto de Educação Monsenhor Gonçalves, convivíamos jovens de origem indígena brasileira, portuguesa, italiana, palestina, africana, libanesa, francesa, norueguesa, holandesa, inglesa, japonesa, espanhola e alemã, dentre outras etnias. Seus sobrenomes ainda ecoam em minha memória! O calor que irradiava de seus sorrisos ainda aquece meu coração.
Éramos católicos, protestantes, espíritas, muçulmanos, animistas, umbandistas, ortodoxos, batistas, judeus e ateus. Todos juntos cantávamos o hino nacional brasileiro, nosso denominador comum a nos orientar em busca do respeito mútuo. Nossos pais, mestres e orientadores religiosos ensinavam-nos a benevolência. A relativa igualdade econômica e social dos cidadãos desinflava o sentimento acrimonioso da cobiça. Inexistia o consumidorismo obcecado e prevaleciam o comedimento, a parcimônia e o recato. A ostentação era unanimemente execrada. A criminalidade era quase inexistente e estava muito longe da banalização de nossos dias. Não havia a opção ao refúgio nas drogas; não éramos trânsfugas da realidade, não se fazia necessário. A solidariedade social e individual orientava nosso cotidiano e pavimentava nosso progresso. Todos tínhamos nossas dificuldades e o sentimento humano dos amigos amainava a dor, atenuava a frustração e aliviava os sentimentos de perda.
A honestidade era uma virtude que não se exaltava, dado seu lugar comum. A simplicidade e a humildade eram atributos dos grandes. A corrupção não era endêmica e a austeridade na condução da coisa pública era a regra. Nossos estadistas investiam na educação pública, livre e gratuita. Nossos mestres, que pertenciam à mesma classe social de seus alunos, ministravam a filosofia dos valores culturais de nossa terra e de nossas origens. Lembro-me de um querido mestre, de saudosa memória, a recitar o seguinte texto de Dante:
“Considerate la vostra semenza;
Fatti non foste a viver come bruti;
Mas per seguir virtute e conoscenza”.
Foi esta educação pública que permitiu a tantos de meus companheiros de infância e adolescência, e contemporâneos, destacarem-se, nacional e internacionalmente, nas artes, na cultura, na arquitetura, na engenharia, na música, na medicina, no magistério, na pesquisa, na política, no jornalismo, na publicidade, na mercadologia, na agricultura, no comércio, na odontologia, na indústria, nas relações internacionais e no direito. Por experiência pessoal direta, constatamos como a educação liberta, enquanto a ignorância escraviza.
A simpatia era a moeda social de maior valor. A alegria era espontânea e genuína. E o que era tal alegria tão manifesta que foi mesmo celebrada na letra do hino da cidade? A alegria vinha das boas coisas da vida, como de um dia de sol; da revoada das andorinhas; do diálogo com os adultos; da conversa com os amigos; dos namoricos; de uma caminhada ao final do dia; da observação do Cruzeiro do Sul emoldurado pela noite estrelada; do dobrado dos canários; do ciciar das cigarras; da pesca de lambaris; das festas juninas; da sombra das mangueiras; do frescor das brisas de agosto; do perfume das flores das laranjeiras; do lento trote das nuvens brancas no céu azul de anil; do verde dos cafezais; e das cores juá e pitanga do arrebol. Ousávamos ser felizes!
Por mais que o mundo tenha se transformado, nossos valores permanecem e ainda nos orientam na busca de uma sociedade mais justa, mais eqüitativa e que corresponda melhor aos nossos anseios. Tais valores estão firmemente ancorados em nossas consciências e, como dizia Gandhi, que foi homenageado nesta Casa por iniciativa do então Vereador Alberto Andaló, nossas consciências estão dentro de nós. Ou no original, “everyone who wills can hear the inner voice. It is within everyone.” Desgraçadamente, nossos valores não são partilhados por todos neste mundo. Freqüentemente, onde temos a tolerância, noutros prevalece a intransigência; quando somos humildes, deparamo-nos com a soberba; quando somos generosos, confrontamo-nos com a cobiça; nosso recato é contraposto à ostentação; nossa modéstia à vanglória; nossa solidariedade colide com o egoísmo; nosso senso de equidade defronta-se com a hegemonia; e nosso sentimento de justiça choca-se com o exercício arbitrário das próprias razões alheias.
Assim, nossos valores encontram-se, no mundo de hoje, sitiados pelos agentes do mal, da opressão, da miséria, da iniquidade, da discriminação, das trevas e do ocaso. Tais agentes ambicionam o lucro potencializado ao máximo obtido através da conquista, da dominação e da ocupação cultural, social, econômica e política de povos como o nosso. Seu deus é o dólar e sua bíblia a especiosa doutrina do livre mercado. Vale o odioso jogo da soma zero onde o ganho de um é a perda do outro. Seu eufemismo mercadológico chama-se globalização. Estes agentes externos não estão sem seus aliados domésticos, pois nas palavras de Gabriel García Márquez, “hay una fuerza perniciosa y profunda que se siembra en el corazón de los hombres y que no es posible derrotar a bala: la colonización mental.”1 Este sítio decorre da iniciativa da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), em primeiro lugar, e também da ordem jurídica multilateral da Organização Mundial do Comércio (OMC). Não nos iludamos: se não estivermos atentos, tudo aquilo que nos é caro, tudo o que é precioso em nossos valores sucumbirá ante o avassalador quadro de miséria e tenebrosa desesperança que seguirá nosso colapso.
Cabe-nos defender vigorosamente nossa rica herança cultural, nosso valores e padrões, estes mesmos que tem profundas raízes em São José do Rio Preto, bem como assegurar aos nossos filhos a preservação daquilo que nos é precioso, num mundo alicerçado na equidade, no respeito à diversidade, na liberdade, no direito e na justiça. Assim, prevalecendo nesta luta, manteremos nossa índole benevolente, nossa liberdade; e a felicidade estará, onde sempre esteve, junto com Deus, muito perto de nós.
Do que disse, podem as Senhoras e os Senhores depreender facilmente que a homenagem de minha Terra Natal é a maior que poderia receber. Senhores e Senhoras, meu muito obrigado!