Torture Air, a nova estatal dos EUA

Publicado na Coluna Semanal do Dr. Noronha a convite do sítio “Última Instância – Revista Jurídica”, São Paulo, Brasil, 07 de dezembro de 2005.

SÃO PAULO – Os europeus finalmente se aperceberam, após contundentes matérias publicadas pela imprensa, bem como um alarmante relatório divulgado pela respeitável organização não-governamental, Human Rights Watch, que suas leis sobre direitos humanos, bem como o direito internacional de regência, foram solapadas pelo governo tirânico dos EUA (Estados Unidos da América).

Segundo relatos de testemunhas diversas, inclusive no âmbito da própria Comissão Européia e dos governos dos Estados membros da UE (União Européia), centenas de vôos da CIA (Central Intelligence Agency) administrados por um grupo especial, denominado Rendition Group, transportaram suspeitos terroristas para cárceres secretos em território de terceiros países, inclusive europeus. A finalidade de tal criminosa ação empreendida pelo governo dos EUA seria a administração de torturas, prática sabidamente vedada pelo direito internacional.

Conforme já observei em minha coluna “Os EUA e a teoria da obsolescência dos direitos humanos nacionais de terceiros países”, muito embora o ordenamento jurídico doméstico dos EUA já há quase cem anos vede a prática abominável da tortura, na presente administração daquele país, um manual de tortura foi preparado no âmbito da sede de seu poder executivo, a Casa Branca.

Todavia, essas ações têm sido, em grande parte, praticadas fora do território dos EUA, de tal maneira a dificultar o controle pelo poder judiciário daquele país. No entanto, a arrogante prática criminosa esbarra no direito internacional e no ordenamento jurídico interno dos países visitados pelos vôos da Air Torture e daqueles em que as ações odientas são levadas a efeito.

De fato, a Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, de 1984, veda em seu artigo 1.1 inter alia a prática de qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de se obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões. Por sua vez, o artigo 2.2 determina que em nenhum caso poderão ser invocadas circunstâncias excepcionais como justificação para a tortura. O artigo 2.3 determina que a ordem de um funcionário superior não poderá ser invocada como justificativa para a prática da tortura.

Acresce que o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional elenca a prática da tortura como um dos chamados crimes contra a humanidade, ex vi do disposto em seu artigo 5.1.b, combinado com o artigo 7.1.f do mesmo tratado internacional, e coloca a respectiva ação criminosa respectiva sob a jurisdição do Tribunal.

Tendo sido demonstrada abundantemente a prática criminosa, sem que o próprio governo do país responsável tenha se importado em negá-la, resta saber se os governos europeus que ofereceram facilidades de trânsito, como o Reino Unido, a Alemanha, a Itália e a Espanha, irão reagir face ao direito internacional. Da mesma maneira, aguarda-se um posicionamento oficial dos países que ofereceram facilidades carcerárias para a prática do crime, como a Polônia e a Romênia.

Alguns desses Estados, como o Reino Unido, a Itália e a Polônia, são notórios clientes dos EUA, mas a opinião pública respectiva é muito ciosa da importância da observância aos direitos humanos e às liberdades civis. O poder judiciário nesses países é independente dos respectivos governos. Como agirá nas possíveis múltiplas repercussões da questão?

E será que a Comissão dos Direitos Humanos da UE irá se preocupar com as violações legais em seu próprio território ou irá se cingir, como tem feito habitualmente, à situação na África, na China e em Cuba? Por último, que posição tomará o Tribunal Penal Internacional?